Eles estão isolados em uma pequena ilha do litoral de Santa Catarina há cerca de 8 mil anos. E, quase por todo esse tempo, viveram sem grandes riscos, mantendo uma comunidade de apenas 50 membros.
Como companhia tinham apenas pássaros que, durante o ano, ali aterrissam para se reproduzir. Porém, recentemente esse cenário de tranquilidade mudou: o ser humano virou sua maior ameaça.
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Os preás-de-moleques-do-sul, um mamífero da família da capivara e do porquinho-da-índia, existem em um só lugar no mundo: uma ilha de 10 hectares no Arquipélago de Moleques do Sul, a cerca de 10 km da costa de Florianópolis.
O baixo número de indivíduos e seu isolamento no oceano fazem dos preás um dos animais mais raros do planeta – também é um dos que mais correm riscos de serem extintos.
Neste ano, porém, um grupo de biólogos e ambientalistas decidiu instalar câmeras de monitoramento na ilha para tentar salvar a espécie.
“Esse tipo de preá foi classificado como criticamente ameaçado em todos os níveis possíveis, do estadual ao mundial. Além do baixíssimo número de indivíduos, cerca de 50, uma alteração mínima no habitat pode extermina-lo”, explica Carlos Salvador, biólogo do Instituto Tabuleiro e coordenador do projeto que nos próximos meses vai instalar por volta de 15 câmeras pela ilha.
A função será estudar o comportamento dos preás, verificar as condições da cobertura vegetal e principalmente monitorar a presença ilegal de seres humanos no arquipélago, processo que tem colocado a vida da espécie em risco.
A ilha onde os roedores vivem, a maior das três do arquipélago, faz parte do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. A área é classificada como “zona intangível”, ou seja, com visitação proibida.
Na prática, porém, a proibição nem sempre é respeitada. Desembarques ilegais ainda acontecem nas ilhas, mesmo com o monitoramento da costa pela Polícia Militar Ambiental.
“As ilhas da região têm certa visitação ilegal ao longo do ano. A do preá, em especial, é inóspita e não tem praia. Mas mesmo assim algumas pessoas contratam embarcações e atracam no arquipélago. Às vezes, passam o fim de semana, algo totalmente desnecessário”, diz Salvador.
A presença de pessoas na ilha pode causar uma série de problemas ao animal, explica o biólogo. “Já houve casos de pequenos incêndios. O fogo pode rapidamente destruir a vegetação que serve de alimento para o preá”, diz.
“Outro problema é que as pessoas podem levar animais como gatos e cachorros, que, além de serem predadores para o preá, podem transmitir algum tipo de vírus, bactéria ou fungo para os roedores”, afirma Salvador.
Carlos Cassini, coordenador do parque da Serra do Tabuleiro, conta que recentemente sua equipe encontrou vestígios de um churrasco em uma das onze pequenas ilhas que compõem a unidade de conservação, a maior de Santa Catarina com 84 mil hectares.
“A presença de pessoas não preocupa por sua intensidade, porque ela é pequena. Mas, como qualquer alteração no ambiente pode afetar o preá, temos que tomar precauções”, explica.
Recentemente, a direção do parque colocou placas informando ser proibido desembarcar no local e incluiu a ilha dos preás na carta náutica, ressaltando a restrição. “Depois dessas placas, não tivemos mais informações de desembarques sem autorização”, aponta Cassini.
As câmeras para monitorar a ilha devem ser instaladas nos próximos meses. Segundo Cassini, o parque e os pesquisadores ainda estão tentando solucionar questões técnicas, como a energia para abastecer o equipamento e a transmissão das imagens para o continente em tempo real.
Isolamento
O preá-de-moleques-do-sul (Cavia intermedia) só foi descrito pela ciência em 1999, após especialistas em aves marinhas encontrarem o roedor na ilha de Santa Catarina. Em seu nome científico, o termo intermedia foi posto porque ele tem características morfológicas intermediárias entre duas espécies de roedores do continente.
Existem apenas hipóteses para explicar como um roedor tão pequeno foi parar em uma ilha isolada no oceano. Uma delas suspeita de que alguém possa ter espalhado os animais pelo local em algum momento, mas essa opção não é muito bem aceita pelos cientistas.
Segundo o biólogo Carlos Salvador, as três ilhas que compõem o arquipélago, na verdade, estão conectadas debaixo d’água. “É como se fosse um iceberg. O que vemos é apenas a ponta, mas há uma porção de terra conectada”, explica.
“Pela característica do animal como uma espécie diferente de outros preás, acreditamos que ele possa ter ficado na ilha quando o nível do oceano subiu e cobriu parte do arquipélago”, explica Salvador.
Ou seja, há cerca de 8 mil anos, quando a água do oceano avançou e criou várias pequenas ilhas na região, um grupo de preás ficou preso em uma delas. Eles acabaram evoluindo separadamente, tornando uma espécie à parte: têm coloração, pele, tamanho e o número de cromossomos diferentes do preá do continente.
“Essa espécie é única. É impressionante como ela conseguiu se manter saudável por 8 mil anos tendo uma população que varia apenas entre 30 e 60 indivíduos”, diz Salvador.
Depois de uma gestação de 60 dias, o preá-de-moleques-do-sul nasce sempre como “filhote único”, com quase 20% do peso da mãe, tamanho considerado grande para um mamífero. Precoce, já nasce preparado para se locomover e procurar grama para comer, além do leite materno.
Segundo o biólogo, a competição por comida é grande na ilha, e um animal vive cerca de 400 dias, mas há alguns mais fortes que conseguem chegar a cinco anos.
Na ilha, eles só têm a companhia de quatro espécies de aves que usam o local para se reproduzir.
Dever moral
Em 2020, biólogos e pesquisadores criaram um plano de ações para conservar o preá. Entre os 28 objetivos, há a colocação de placas, câmeras de monitoramento e conscientização da população local sobre a importância do animal.
“O plano tem ações específicas para engajar a sociedade e mostrar o papel da população nesse processo de conservação de uma espécie tão especial e única. Já na escola, as crianças precisam aprender a importância do preá e o que devemos fazer para preservá-lo”, diz Karynna Tolentino, especialista em ciência da conservação da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, entidade que financia o projeto de monitoramento da ilha.
Já Fabiano de Melo, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), explica que ações de conservação não dão certo sem a participação ativa da sociedade. “A parte mais difícil do trabalho é convencer as pessoas de que temos o dever moral e ético de proteger a natureza. Como seres humanos não temos o direito de extinguir uma espécie”, diz.
Fonte: BBC