África do Sul planeja acabar com controversa indústria de leões cativos

O ministério do meio ambiente do país deixará de emitir autorizações para criar, manter, caçar ou interagir com leões criados em cativeiro.

Em 2019, foi constatado que diversos leões da fazenda Pienika, na província do Noroeste, na África do Sul, apresentavam sarna, sofriam de desnutrição e estavam malcuidados. Os animais eram de propriedade de Jan Steinman que, na ocasião, estava entre os membros do conselho da Associação Sul-Africana de Predadores. Defensores do bem-estar animal afirmaram que este não foi um incidente isolado — outros leões estavam sofrendo em muitas das mais de 250 fazendas de animais em todo o país.
FOTO DE NICHOLE SOBECKI

A África do Sul adotou medidas para acabar com a indústria multimilionária de criação de leões que fornece filhotes para fins turísticos, leões para a caça esportiva de animais selvagens como troféus e ossos para a medicina tradicional chinesa.

Em uma declaração datada de 2 de maio, Barbara Creecy, ministra do Departamento de Silvicultura, Pesca e Meio Ambiente da África do Sul, reconheceu a “perspectiva de que a indústria de criação de leões em cativeiro não contribuiu para a conservação e estava causando danos à preservação e reputação do turismo no país”.

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A partir dessa declaração, o governo deixará de emitir autorizações para criar, manter, caçar ou interagir com leões cativos e revoga as autorizações de criação em vigor. Diversos fatores influenciaram essa decisão, incluindo a crescente oposição pública à indústria por ser desumana, ter possíveis relações entre o comércio legal e ilegal de ossos de leões e pelo maior entendimento das doenças que os animais podem transmitir aos humanos.

Estima-se que haja entre seis mil e oito mil leões cativos em instalações privadas por todo o país, mas Ian Michler, diretor da Blood Lions, organização sem fins lucrativos sul-africana que se dedica a extinguir a indústria de leões cativos, declara que pode haver cerca de 12 mil.

Existem aproximadamente dois mil leões selvagens na África do Sul e uma estimativa de 20 mil em todo o continente. Esses números caíram quase pela metade durante os últimos 25 anos, a medida que os habitats foram se fragmentando e presas como antílopes se tornaram escassas. Consequentemente, os leões passaram a ter contato com pessoas em comunidades rurais com mais frequência, com resultados fatais para ambos. E de acordo com Creecy, o comércio legal de membros de leões cativos poderia aumentar a caça ilegal de populações selvagens.

Relatórios sobre a indústria de leões cativos da África do Sul mostraram que frequentemente os animais eram mantidos em condições cruéis, como por exemplo, em espaços superlotados com nutrição e tratamento veterinário inadequados.

O recente anúncio do governo, portanto, é considerado não apenas uma vitória para os conservacionistas, mas também para os defensores de animais. “Milhares de leões de fazendas nascem todos os anos na África do Sul, em meio à miséria de cativeiros comerciais cruéis”, escreveu por e-mail Edith Kabesiime, líder da campanha a favor da vida selvagem fomentada pela organização sem fins lucrativos World Animal Protection. “Essa última medida tomada pelo governo da África do Sul é corajosa — dando os primeiros passos em comprometer-se com uma mudança significativa e duradoura. É uma vitória para os animais selvagens.”

Em alguns cativeiros em todo o mundo, turistas pagam para acariciar, dar mamadeira, tirar fotos com filhotes de leões e andar próximo aos animais já adultos. Críticos declaram que esse turismo interativo leva a práticas de reprodução cruéis e abusivas, como acelerar a procriação, retirando os filhotes de suas mães de forma precoce para que elas possam se reproduzir mais.

Segundo Michler, muitos leões cativos no fim de suas vidas são vendidos para estabelecimentos de caça, onde são alvejados por caçadores esportivos de animais selvagens, às vezes em caças “enlatadas”, em que o animal e o caçador estão em uma área confinada. Caçadores de animais selvagens como troféus guardam suas peles e cabeças, e os ossos dos animais geralmente são exportados para a Ásia para uso na medicina tradicional chinesa.

A África do Sul havia estabelecido um limite anual para exportação legal de esqueletos de leões quando, em 2018, o Conselho Nacional de Sociedades para a Prevenção da Crueldade contra Animais do país entrou com uma ação para interromper essa prática. Naquele ano, o governo havia praticamente dobrado o limite de exportação anterior de 800 para 1,5 mil.

O Departamento de Silvicultura, Pesca e Meio Ambiente da África do Sul suspendeu futuras autorizações para criar, manter, interagir ou caçar leões cativos. Além de revogar todas as autorizações existentes.
FOTO DE NICHOLE SOBECKI

Recomendações aceitas 

Em outubro de 2019, Creecy criou um comitê para analisar políticas referentes ao controle, criação, caça e comércio de elefantes, leões, leopardos e rinocerontes sul-africanos. Em um relatório de quase 600 páginas apresentado em dezembro de 2020, o comitê recomendou que, além de proibir a criação e manutenção de leões em cativeiros e a venda dos membros desses animais, caças enlatadas e interações de turistas com esses leões (incluindo acariciar filhotes) deveriam ser interrompidas imediatamente. Também foi recomendada a destruição de estoques de ossos de leões e a eutanásia humanizada de todos os leões cativos existentes. (Animais cativos liberados na natureza raramente sobrevivem pois nunca aprenderam a caçar e não desenvolveram um medo natural das pessoas.)

Creecy e o ministério sul-africano declararam que aceitaram essas recomendações.

Esse é um “grande passo”, comemora Michler. “Acreditamos que é uma mudança significativa de mentalidade e uma ordem bastante clara da ministra para todos de que essas práticas devem acabar.”

Agora cabe ao parlamento sul-africano converter essas recomendações em lei. Considerando o nível de apoio que já temos do governo, “não esperamos que o parlamento vete”, comenta Michler.

A Associação Sul-Africana de Predadores, organização a favor da criação em cativeiro, não respondeu aos pedidos de comentário.

Michael ’t Sas-Rolfes, conservacionista e economista sul-africano que fez parte do comitê, era um dos poucos a favor da eliminação da criação de leões em cativeiro, mas acredita que o comércio de ossos do animal deveria ser mantido. Ele defende uma “abordagem cautelosa” — um comércio de ossos de leão reformulado e sustentável a partir dos estoques existentes, leões cativos mortos e com a possibilidade de administrar populações selvagens no futuro — até que se saiba se o comércio pode ser encerrado “sem estimular uma crise de caça ilegal de grandes felinos”. ’T Sas-Rolfes alerta que pôr fim ao comércio legal pode impulsionar o comércio clandestino de ossos de leões, sendo mais difícil de monitorar e controlar. “Essa medida efetivamente acaba com o último meio legal oficial para exportar membros de grandes felinos para o mercado em todo o mundo”, escreveu ele por e-mail. “Ainda deve ser analisado se isso importa ou não em termos de valor e incentivos à caça ilegal.” A opinião de outra minoria apoiava manter a indústria e aumentar a regulamentação.

Outros argumentaram que, ao fornecer ossos de leão aos países asiáticos, a África do Sul fez com que a demanda se intensificasse. De acordo com um relatório de 2018 da Traffic, organização de monitoramento de comércio de animais selvagens, evidências isoladas sugerem que há um aumento na demanda por produtos de ossos de leão no Vietnã. Em parte porque ossos de tigre, há muito apreciados, se tornaram ainda mais raros à medida que as populações selvagens declinavam para menos de 3,2 mil indivíduos atualmente. Como é difícil distinguir os ossos de leões e de tigres, uma maior demanda pode impulsionar a caça de ambas as espécies.

Neil D’Cruze, chefe de pesquisa de vida selvagem da World Animal Protection, afirma que a possibilidade de que as proibições possam aumentar o comércio ilegal “não deve ser ignorada, mas também não é uma questão que não possa ser resolvida”.

O Departamento de Silvicultura, Pesca e Meio Ambiente também acatou as recomendações do comitê de que a África do Sul não pressione mais para reabrir o comércio de chifres de rinoceronte e marfim.

Fonte: National Geographic Brasil