As mudanças climáticas irão remodelar fundamentalmente a vida na Terra nas próximas décadas, mesmo que os humanos consigam domar as emissões de gases de efeito estufa que causam o aquecimento do planeta, de acordo com um relatório preliminar dos consultores de ciência do clima da ONU revelado nesta quarta-feira (23/06) pela agência de notícias AFP.
Dezenas de milhões de pessoas a mais deverão sofrer de fome, seca e doenças nas próximas décadas devido às mudanças climáticas, conforme o cenário traçado num relatório preliminar do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
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“O pior ainda está por vir, afetando muito mais a vida de nossos filhos e netos do que a nossa”, diz o texto.
Em 4 mil páginas, os mais de 700 autores mostram, entre outras coisas, como o aquecimento global afeta a saúde humana. As decisões políticas que estão sendo tomadas agora podem mitigar essas consequências, mas muitas já são inevitáveis, de acordo com o relatório da ONU.
Extinção de espécies, maior disseminação de doenças, calor insuportável, colapso de ecossistemas, cidades ameaçadas pela elevação do mar – esses e outros impactos climáticos devastadores estão se acelerando e devem se tornar evidentes de forma dolorosa nos próximos 30 anos.
“Peça de acusação”
O catálogo mais abrangente já reunido até agora sobre como a mudança climática está transformando o mundo, o relatório se assemelha a uma volumosa peça de acusação à administração do planeta pela humanidade.
O relatório é muito mais alarmante que o antecessor, divulgado em 2018. O documento deve ser publicado em fevereiro de 2022, após a aprovação pelos 195 Estados-membros da ONU e depois da conferência climática COP26, marcada para novembro, em Glasgow, na Escócia.
Prevista originalmente para novembro de 2020, a 26.ª Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP26).
Em resposta à divulgação do texto, o IPCC divulgou uma nota dizendo que “não comenta o conteúdo dos relatórios preliminares enquanto o trabalho ainda está em andamento”.
Há pelo menos quatro conclusões principais no relatório preliminar, que pode estar sujeito a pequenas alterações nos próximos meses.
A primeira é que com o 1,1 grau Celsius de aquecimento até agora, em relação aos níveis pré-industriais, o clima já está mudando.
Uma década atrás, os cientistas acreditavam que limitar o aquecimento global a 2 graus Celsius acima dos níveis de meados do século 19 seria o suficiente para salvaguardar o futuro da humanidade.
Essa meta está consagrada no Acordo de Paris de 2015, adotado por quase 200 nações que prometeram limitar coletivamente o aquecimento para “bem abaixo” de dois graus Celsius – e 1,5 grau, se possível.
Aquecimento de 3 °C
Seguindo as tendências atuais, o mundo ruma para um aquecimento de 3 graus Celsius, na melhor das hipóteses.
Mas o relatório preliminar da ONU diz que o aquecimento prolongado, mesmo além de 1,5 grau Celsius, pode produzir “consequências progressivamente sérias, de séculos e, em alguns casos, irreversíveis”.
No mês passado, a Organização Meteorológica Mundial projetou 40% de chance de que a Terra supere o limite de 1,5 grau por pelo menos um ano até 2026.
Para algumas plantas e animais, pode ser tarde demais. “Mesmo com 1,5 grau Celsius de aquecimento, as condições irão mudar além da capacidade de adaptação de muitos organismos”, observa o relatório. Os recifes de coral – ecossistemas dos quais dependem meio bilhão de pessoas – são um exemplo.
Fome crônica e pobreza extrema
O aquecimento global também aumentou a duração das temporadas de incêndios, duplicou áreas potenciais para incêndios e contribuiu para as perdas nos sistemas alimentares.
O mundo deve enfrentar essa realidade e se preparar para reagir, o que é uma segunda lição importante do relatório. “Os níveis atuais de adaptação serão inadequados para responder aos riscos climáticos futuros”, adverte.
Dezenas de milhões de pessoas a mais provavelmente enfrentarão a fome crônica até 2050, e mais 130 milhões poderão experimentar a pobreza extrema em uma década, se a desigualdade continuar se aprofundando.
Em 2050, centenas de milhões de moradores das cidades costeiras na “linha de frente” da crise climática serão afetadas por enchentes e tempestades cada vez mais frequentes, tornadas mais mortais pela elevação do mar.
Ondas de calor extremas
Cerca de 350 milhões a mais de pessoas que vivem em áreas urbanas estarão expostas à escassez de água devido a secas severas, consequências do 1,5 grau Celsius de aquecimento – 410 milhões com 2 graus Celsius.
Esse meio grau adicional também significará 420 milhões de pessoas expostas a ondas de calor extremas e potencialmente letais. “Prevê-se que os custos de adaptação para a África aumentem dezenas de bilhões de dólares por ano com o aquecimento superior a dois graus”, adverte o relatório.
Em terceiro lugar, o relatório descreve o perigo de impactos compostos e em cascata, juntamente com limites de ponto de não retorno no sistema climático, conhecidos como pontos de inflexão, que os cientistas mal começaram a medir e compreender.
Uma pesquisa recente mostrou que o aquecimento de 2 graus Celsius poderia empurrar para além do ponto de não retorno o derretimento das camadas de gelo na Groenlândia e na Antártida Ocidental – com água congelada o suficiente para elevar os oceanos em 13 metros.
Calamidades em áreas costeiras
Outros pontos de inflexão poderão levar à transformação da Bacia Amazônica de floresta tropical em savana, e fazer com que bilhões de toneladas de carbono escapem do permafrost da Sibéria, alimentando ainda mais o aquecimento global.
Em um futuro mais imediato, algumas regiões – leste do Brasil, sudeste da Ásia, Mediterrâneo, China central – e litorais em quase todos os lugares podem ser atingidos por várias calamidades climáticas ao mesmo tempo: seca, ondas de calor, ciclones, incêndios florestais, inundações.
Mas os impactos do aquecimento global também são amplificados por todas as outras maneiras pelas quais a humanidade destruiu o equilíbrio da Terra. Isso inclui “perdas de habitat e resiliência, superexploração, extração de água, poluição, espécies não nativas invasivas e dispersão de pragas e doenças”, diz o relatório.
“Não há solução fácil para esse emaranhado de problemas”, diz Nicholas Stern, ex-economista-chefe do Banco Mundial e autor do histórico estudo sobre alterações climáticas Relatório Stern.
“O mundo está enfrentando um conjunto complexo de desafios interligados”, disse Stern, que não contribuiu para o relatório do IPCC. “A menos que você os enfrente juntos, você não vai se sair muito bem em nenhum deles.”
Fonte: Deutsche Welle