O governo Jair Bolsonaro retoma nesta semana o controverso projeto de construção da usina nuclear de Angra 3, no Rio de Janeiro. As obras foram iniciadas ainda durante a ditadura, em 1984, mas estão paralisadas desde 2015, após escândalo de corrupção.
Até o momento, 65% das obras estão finalizadas, ao custo de R$ 7,8 bilhões. Para o resto, estima-se que serão necessários mais 15 bilhões. O edital já foi lançado, e o processo continua nesta terça-feira (29/06), com a abertura de propostas do setor privado.
O objetivo é adiantar as atividades de construção antes mesmo da contratação da empresa que fará a obra em sua totalidade. Segundo a Eletrobras, estatal do setor de energia elétrica, mostraram interesse na conclusão de Angra 3 mais de 20 empresas, como a Westinghouse (EUA), EDF (França) e Rosatom (Rússia), além de CNNC e SNPTC (China).
No Brasil, a exploração da energia nuclear é monopólio da União, segundo a Constituição. O governo Bolsonaro quer, com o edital, atrair um parceiro para a Eletronuclear, subsidiária da Eletrobras responsável pela usina.
O ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, defende a construção de usinas nucleares como alternativa para minimizar crises hídricas como a atravessada pelo Brasil atualmente.
Se concluída, a unidade terá uma potência de 1,4 GW e poderá atender 4,5 milhões de pessoas. Para críticos, o custo é muito alto frente à capacidade de geração da usina.
Projeto dos anos 1970
A retomada das obras gera, além disso, apreensão entre especialistas, que veem Angra 3 como um projeto obsoleto. Uma usina essencialmente idêntica na Alemanha, parceiro histórico do Brasil no desenvolvimento de energia nuclear, foi desligada devido aos riscos.
“A tecnologia de Angra 3 é basicamente a mesma do projeto original, definido há mais de 40 anos”, diz Célio Bermann, professor associado do Instituto de Energia e Ambiente da USP. “As mudanças alegadas pelo governo são superficiais, não atingem os equipamentos mais importantes. Essa é uma pseudomodernização.”
O Ministério das Minas e Energia (MME) não vê problema no fato de a usina ter sido planejada nos anos 1970. Procurada pela DW Brasil, a pasta disse que foram feitas “mudanças na concepção original” e incorporadas “modernizações tecnológicas” ao longo do tempo.
Várias alterações ainda estão previstas, segundo o ministério, que cita “a adoção de controles digitais” e “um reforço na resistência a terremotos e maremotos”, desenvolvido depois do desastre de Fukushima, em 2011, no Japão.
Angra 3 foi planejada no âmbito do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, assinado em 1975. As obras foram paralisadas após descoberta de um esquema de corrupção investigado pela Operação Lava Jato. As investigações levaram à prisão de executivos da Eletronuclear, como o almirante Othon Pinheiro da Silva, ex-chefe da companhia.
Alemanha não aprovaria Angra 3 hoje
Com uma experiência de quase 40 anos em vários ministérios alemães na área de segurança nuclear e proteção contra a radiação, o engenheiro Dieter Majer diz à DW Brasil que hoje uma usina baseada no modelo previsto para Angra 3 não seria aprovada na Alemanha, “por não corresponder à situação atual no campo da ciência e da tecnologia”.
Pouco depois da catástrofe na usina nuclear japonesa de Fukushima, em 2011, a chanceler federal alemã, Angela Merkel, se comprometeu a desligar todas as usinas nucleares do país. À época, os planos determinaram a paralisação das oito unidades mais antigas do país, além do fechamento de outras nove, até 2022.
Majer lembra que a usina de Grafenrheinfeld – “essencialmente idêntica às unidades de Angra 2 e Angra 3” – teve que ser retirada precocemente da rede, depois do acidente de Fukushima. O motivo foram “déficits de segurança relevantes”, mesmo após ser modernizada ao longo dos anos.
Para atingir os atuais padrões internacionais tecnológicos e científicos, Angra 3 teria que ser totalmente replanejada, segundo o especialista alemão: “Uma reforma apropriada não é possível em termos de tecnologia de construção e maquinário.”
Na contramão da Alemanha, o governo Bolsonaro promete agora voltar a investir no setor, considerado prioritário. Entre os motivos para a retomada, o Ministério das Minas e Energia cita “os grandes recursos de urânio” e o “pleno domínio do ciclo do combustível nuclear” já alcançado pelo Brasil, além da necessidade de instalação “de 8 a 10 GW de fonte nuclear”.
A Eletrobras destaca que Angra 3 vai produzir “energia limpa”, “ao contrário das termelétricas movidas a combustíveis fósseis”, que precisam ser acionadas para aliviar hidrelétricas em caso de estiagem.
Especialista denuncia falta de transparência
Autora de três livros sobre a questão nuclear no Brasil, entre eles, Bomba atômica! Pra quê? Brasil e energia nuclear, recém-lançado em versão ebook, a jornalista Tania Malheiros diz que o acesso a informações sobre o setor ficou mais difícil no governo Bolsonaro.
Segundo Malheiros, há cerca de um ano, a usina de Angra 2 precisou ser desligada “depois que foram detectados problemas de ferrugem nos tubos das varetas de combustível nuclear”. Mas, apesar de seus inúmeros pedidos de explicação, “nada foi divulgado”. “Não há transparência”, afirma.
A jornalista lembra que o histórico da usina é marcado por “denúncias de corrupção e sangria de recursos provocada por má gestão”, e lamenta a dívida acumulada pela Eletronuclear, gestora de Angra 3, que ainda deve R$ 6,6 bilhões ao BNDES e à Caixa Econômica Federal. “Só por causa de uma única usina, o Brasil produziu uma dívida dessa ordem. Como chegamos a esse ponto?”, indaga.
Acordo com a Alemanha em xeque
Assinado nos anos 1970, o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha prevê uma cooperação bilateral para “uso pacífico da energia nuclear”. Pelo acordo, oito usinas nucleares seriam construídas – mas apenas Angra 2 virou realidade. Angra 3 deve entrar em operação em 2026, se os planos do governo Bolsonaro derem certo.
Até lá, no entanto, é possível que o acordo não esteja mais em vigor. Renovado a cada cinco anos, ele expira em 2025. Ele poderá ser torpedeado pelo Partido Verde alemão, que, segundo pesquisas, tem chances de fazer parte de uma coalizão de governo após as eleições gerais de setembro na Alemanha. Para os verdes, o país deveria se tornar um modelo mundial para o abandono da energia nuclear.
O governo alemão admite que a situação mudou. Em resposta à DW Brasil, o Ministério do Meio Ambiente disse que, com a mudança de atitude do governo federal da Alemanha em relação ao uso de energia atômica, “os acordos e arranjos de cooperação bilateral da década de 1970” na área do uso pacífico da energia atômica com o Brasil “tornaram-se, em grande parte, obsoletos”.
Mas, para o governo alemão, eles ainda podem ser úteis em termos de cooperação bilateral, para melhorar a segurança das instalações nucleares por meio de trabalho técnico e científico conjunto. O que não significa um sinal verde para novas instalações: “A Alemanha se recusará a trabalhar em conjunto para construir novas usinas nucleares” com o Brasil, disse o Ministério.
Segundo o Ministério de Minas e Energia brasileiro, o acordo nuclear com a Alemanha “ainda é relevante para o Brasil”. Tanto Angra 2 quanto Angra 3, segundo o ministério, “contam com tecnologia alemã Siemens/KWU (hoje, Framatome ANP), que continua a fornecer suporte técnico” para as duas usinas.
Para o professor Bermann, com ou sem acordo, o Brasil corre o risco de ficar sem a consultoria técnica alemã. “Com o tempo, não haverá mais ninguém na Alemanha com capacidade para dar esse suporte. Mesmo que os competentes institutos do setor queiram dar assistência, eles não estarão mais trabalhando com essa tecnologia, que já está superada.”
Obra seria mais barata que o desmonte
Do investimento total de R$ 15 bilhões previstos para Angra 3, a Eletrobras já liberou R$ 1,052 bilhão em 2020, e tem previstos mais R$ 2,447 bilhões para 2021, segundo o Ministério das Minas e Energia. A usina é vista como “fundamental” para o fornecimento de energia para a região Sudeste.
O professor de Engenharia Nuclear da Coppe/UFRJ e e ex-presidente da Indústrias Nucleares do Brasil (INB) Aquilino Senra defende a conclusão de Angra 3. Para ele, “seria necessário arcar com um prejuízo de cerca R$ 15 bilhões de reais para o desmonte da estrutura já existente, a quitação de empréstimos já realizados, multas contratuais e a desativação completa do canteiro de obras”.
Para críticos, porém, o alto custo do desmonte “é um argumento a mais” para se abrir mão da energia nuclear. “Isso, sem falar na questão da segurança e do lixo atômico, até hoje sem uma solução definitiva”, diz Bermann. “Temos alternativas, como a eólica, a solar e a biomassa – que são intermitentes, mas podem ser gerenciadas em conjunto com a hidráulica, e assegurar energia o tempo todo”, resume.
Fonte: Deutsche Welle