A Europa Meridional atravessa uma das piores ondas de calor das últimas décadas, e Grécia, Espanha, Chipre, Turquia e Itália enfrentam graves incêndios florestais. Neste último país, eles já duram semanas, e diversas regiões do centro e sul perderam dezenas de milhares de hectares de florestas.
Na ilha da Sardenha, botanistas estão alarmados com a dizimação da biodiversidade local e com o número de oliveiras seculares destruídas. Na Sicília, a região mais afetada, o fogo chegou até a cidade portuária de Catânia, exigindo a retirada de 150 cidadãos por mar e o fechamento do aeroporto por várias horas.
Desde 15 de junho, bombeiros do país já foram chamados mais de 37 mil vezes, das quais 1.500 apenas no domingo (01/08). Os apertos dos italianos para lidarem com a situação são uma combinação de responsabilidades políticas, burocracia na proteção florestal e possíveis atividades criminosas: segundo a Coldiretti, a maior associação de agricultores do país, pelo menos 60% dos incêndios foram criminosos.
Possível ação criminosa
Em 2 de agosto, dois incendiários foram presos na cidade rural de Troina, na província central siciliana de Enna, onde estão sendo construídas numerosas usinas elétricas movidas a vento. “Temos que prestar muita atenção à hipótese de o setor eólico querer debilitar os fazendeiros locais, forçando-os a irem fazer alguma outra coisa”, declarou ao jornal La Repubblica o prefeito de Troina, Fabio Venezia.
Ou seja, as usinas furtam terreno à agricultura, e a destruição das propriedades visaria forçar os agricultores a venderem suas terras. Para evitar tais constelações, uma lei nacional datando do ano 2000 proíbe a mudança do uso das áreas atingidas por incêndios durante os 15 anos seguintes ao fogo. No entanto, cabe às autoridades locais aplicá-la, e ela prevê algumas exceções.
As suspeitas estão sendo investigadas pela comissão siciliana anti-máfia instituída pelo parlamento da ilha. No momento, ela toma depoimentos de proprietários que teriam sido abordados por intermediários oferecendo-se para vender suas terras a afiliados do setor de energia eólica.
“É necessário refletir sobre o que está acontecendo”, reivindicou o presidente da comissão anti-máfia no site de notícias Live Sicilia. “Tem havido uma procura espasmódica por terrenos que poderiam ser adquiridos por 30 mil euros o hectare, enquanto 200 requerimentos para projetos fotovoltaicos já foram apresentados ao governo regional.”
Os procuradores da Sicília e outras regiões abriram inquéritos sobre as ocorrências de incêndios provocados intencionalmente, porém ainda não se provou a existência de um esquema criminoso.
Bombeiros em apuros
À parte as hipóteses criminais, a reação lenta ao fogo também tem se provado extremamente problemática. Há anos os bombeiros queixam-se de não poderem garantir serviços adequados, devido à insuficiência financeira e falta de pessoal.
Em 2016, uma lei fundiu o Corpo Florestal do Estado (CFS) e os carabinieri, a polícia militar da Itália: desse modo, os corpos de bombeiros, que costumam operar em áreas urbanas, ficaram responsáveis pela maioria das funções de controle de incêndios florestais.
Como a prevenção do fogo é gerida em nível regional, os respectivos governos têm que fechar protocolos de cooperação periódicos com os corpos de bombeiros, embora estes nem sempre disponham dos meios para combater os incêndios nas áreas rurais, agora duramente atingidas pela seca.
De acordo com autoridades locais, os reservatórios da Sicília dispõem de cerca de 78 milhões de metros cúbicos de água a menos do que em 2020, seu nível mais baixo na última década. Em reação, o governo siciliano alocou 20 milhões de euros para os agricultores ampliarem suas capacidades de reserva hídrica.
Um relatório de 2020 do Centro Nacional de Pesquisa da Itália (CNR) indicou que 70% da Sicília está ameaçada de desertificação. Na ilha da Sardenha, no centro-sul, essa percentagem é de 30%, e na Apúlia, no “salto da bota” da península, de 50%.
Fogo alimentado pela burocracia
Ainda assim, nos últimos 30 anos o volume de bosques cresceu 25% na Itália, de 9 milhões para 11,4 milhões de hectares, e cobre 38% do território nacional – a mesma proporção que a da Alemanha, cuja área é cerca de 55 mil quilômetros maior.
Um dos motivos para a expansão das florestas é o declínio demográfico nas áreas rurais. No entanto, “o setor florestal é ainda, em parte, condicionado por uma cultura que data do século 19, quando o país adotou uma legislação estrita para proteção dos bosques e criou uma força policial florestal especial”, explica o professor Davide Pettenella, do Departamento de Território e Sistemas Agro-Florestais da Universidade de Pádua.
“De fato, os instrumentos mais poderosos de política florestal ainda são coerções regulatórias. É preciso uma mudança de paradigma: de ‘proteger proibindo’ para ‘valorizar gerindo’.”
Em 2020, por exemplo, o Conselho de Estado, órgão máximo do sistema italiano de Justiça administrativa, decidiu que as autoridades locais encarregadas da gestão florestal na Toscana não podiam derrubar árvores sem permissão prévia da Superintendência de Paisagismo, o que acrescentou mais uma camada de burocracia e ralenta os trabalhos.
Em 1º de agosto último, um incêndio atravessou a Pineta Dannunziana, a floresta urbana de pinheiros de Pescara, forçando 800 famílias a abandonarem suas residências. Houve pelo menos 12 feridos, entre os quais uma menina de cinco anos, e turistas foram forçados a fugir da praia, quando as chamas se aproximaram dos estabelecimentos balneários.
“A Pineta Dannunziana é considerada pela lei como ‘reserva natural integral’, portanto não pode estar sujeita a gestão florestal, apesar das advertências dos agrônomos”, explicou na ocasião o prefeito de Pescara, Carlo Masci. “A vegetação rasteira queimou muito rápido.”
Oportunidade perdida de ajuda da UE
Organizações ambientais criticam a Itália por haver perdido a oportunidade de pelo menos reforçar sua proteção florestal, oferecida pelo NextGenerationEU, o plano da União Europeia para sustentar a recuperação econômica de seus Estados-membros atingidos pela pandemia de coronavírus.
Duramente afetado pela covid-19, o país foi o maior beneficiário do fundo, com 235,14 bilhões de euros. No entanto, o Plano Nacional de Recuperação e Resiliência (PNRR) apresentado por Roma “não aloca sequer um euro para as florestas”, observa Marco Bussone, presidente da União Nacional das Comunas, Comunidades e Entidades de Montanha (Uncem). “Só há 140 milhões de euros para ‘comunidades verdes’ – comunidades ecossustentáveis das montanhas –, que obtivemos com muito esforço.”
Em 2018, o governo italiano aprovou uma lei inovadora de gestão florestal, descrita por Bussone como “uma das melhores da Europa“. No entanto, ela não foi devidamente implementada por não estar devidamente respaldada pelos recursos necessários, que, segundo a Uncem, seriam de no mínimo 100 milhões de euros por ano. Na opinião de Bussone, “uma situação absurda para um país feito de bosques, como a Itália”.
Fonte: Deutsche Welle