É uma visão chocante — e um tanto quanto chamativa — em uma montanha.
Se você caminhar em uma altitude elevada o suficiente nos Alpes franceses durante o fim da primavera e o início do verão, há uma boa chance de se deparar com alguns trechos de neve bastante inusitados.
Uma neve que não é branca — mas vermelho sangue.
O fenômeno peculiar — às vezes chamado de “neve de sangue” — é resultado de um mecanismo de defesa produzido por algas microscópicas que crescem na neve dos Alpes.
Normalmente, essas microalgas possuem uma coloração verde, pois contêm clorofila, a família de pigmentos produzida pela maioria das plantas para ajudá-las a absorver a energia da luz do Sol.
Mas, quando as algas da neve crescem prolificamente e são expostas à forte radiação solar, elas produzem moléculas de pigmento de coloração vermelha, conhecidas como carotenoides, que atuam como um protetor solar para resguardar a clorofila.
Embora as algas vermelhas da neve sejam conhecidas há muito tempo (elas foram mencionadas em um livro publicado em 1819, como tendo sido descobertas durante uma expedição ao Ártico em 1818), ainda são repletas de mistérios que os cientistas estão tentando desvendar.
Há apenas dois anos, botânicos da Charles University, em Praga, na República Tcheca, identificaram um gênero inteiramente novo de microalgas que é responsável pela neve vermelha e laranja em diferentes partes do mundo — a qual chamaram de Sanguina, em referência à cor vermelho-sangue que produzem.
Os pesquisadores encontraram tipos de alga Sanguina que tingem a neve de vermelho na Europa, na América do Norte, na América do Sul e em ambas as regiões polares.
Uma espécie de Sanguina que gera uma neve laranja incomum também foi encontrada em Svalbard, no ártico norueguês.
Mas ela não é o único tipo de microalga responsável pela neve vermelha. Vários outros tipos, como a Chlamydomonas nivalis e uma alga encontrada perto de colônias de pinguins da Antártida, chamada Chloromonas polyptera, também produzem pigmentos que mancham a neve de vermelho e rosa.
Entender mais sobre as algas da neve vermelha tem, no entanto, um significado bem mais amplo do que simplesmente explicar a existência de manchas de cores inusitadas nos Alpes e perto dos Polos.
Seu surgimento e desaparecimento são indicadores importantes da mudança climática — e de como a mesma está afetando os delicados ecossistemas em que as algas são encontradas.
De acordo com Liane G Benning, professora de geoquímica de interface do Centro Alemão de Pesquisa em Geociências de Potsdam, a neve vermelha está se tornando mais comum devido ao aquecimento global.
“O aumento nos níveis de dióxido de carbono atmosférico eleva a temperatura, o que leva a um derretimento maior da neve”, diz ela.
“No momento em que há água líquida na neve, as algas começam a crescer.”
Essa proliferação cada vez maior de algas de neve vermelha também pode estar contribuindo, por sua vez, para a mudança climática.
O pigmento vermelho escurece a superfície da neve, reduzindo a quantidade de luz e calor que a mesma reflete de volta para o espaço — algo conhecido como efeito albedo.
Ao reter mais calor do Sol, a neve derrete ainda mais rapidamente, permitindo que as algas se proliferem ainda mais.
“Há um efeito descontrolado no qual as algas derretem seu habitat preferido”, diz Benning.
“É como se elas estivessem destruindo sua própria casa.”
Em uma escala mais ampla, o calor extra absorvido pela neve colorida pode alterar a temperatura no ambiente como um todo, acelerando o derretimento de blocos de neve e geleiras.
Um estudo estimou que em uma única temporada de degelo e derretimento, a proliferação de algas que produzem pigmento vermelho poderia reduzir o albedo da neve em 13% — sugerindo que desempenha um papel importante em como os efeitos da mudança climática podem ser amplificados em regiões montanhosas.
Pesquisas mostram que a proliferação de algas vermelhas ocorre em geleiras em todo o mundo, da Antártida aos Himalaias e no Ártico.
Uma questão que cientistas como Benning e Eric Maréchal, diretor do Laboratório de Fisiologia Celular e Vegetal de Grenoble, na França, estão ansiosos para responder é se a proliferação de algas de neve vermelha está se tornando mais disseminada e ocorrendo com mais frequência.
Uma maneira de fazer isso seria usar imagens de satélite para estudar o efeito da redução do albedo da neve vermelha.
Um estudo usando imagens de satélite da Península Fildes, na Ilha Rei George, na costa da Antártida, revelou que em janeiro de 2017, 26% da neve estava escurecida por algas.
Embora haja poucos dados abrangentes para mostrar se as algas vermelhas estão se tornando mais comuns globalmente, Benning e Maréchal acreditam que as mesmas ocorrerão com mais frequência à medida que nosso planeta esquentar, e isso precisará ser levado em consideração enquanto os cientistas tentam estimar quais serão os impactos.
Mas, mesmo deixando de lado seu papel na mudança climática, os cientistas estão desvendando outros mistérios que cercam a neve vermelha.
Maréchal e seus colegas descobriram recentemente que as algas da neve vermelha parecem crescer apenas em altitudes acima de 2.000 metros nos Alpes franceses e prosperar, particularmente, em torno de 2.400 metros.
De acordo com Maréchal, a alga Sanguina é encontrada em grandes altitudes devido à quantidade, qualidade e longevidade da neve presente nessas alturas.
De forma intrigante, os cientistas não conseguiram até agora cultivar essas algas usando neve real em laboratório.
“É por isso que os pesquisadores precisam coletar o maior número possível de amostras para um estudo mais refinado”, diz Maréchal.
Durante uma expedição de dois dias à passagem de Lautaret em Hautes-Alpes, no sudeste da França, em junho deste ano, Maréchal e seus colegas do consórcio ALPALGA, formado por cinco institutos franceses dedicados ao estudo de algas da montanha, coletaram suas primeiras amostras de 2021.
Diferentemente dos anos anteriores, no entanto, a neve não estava com sua tonalidade vermelha típica. Em vez disso, estava dominada pelo amarelo ocre.
A coloração amarela, eles acreditam, se deve à presença de areia na neve que interfere na cor conferida pelas algas.
Embora não seja um fenômeno incomum, neste ano foi excepcional, à medida que ventos fortes carregaram bastante areia do Saara para os Alpes.
“Isso nos deu uma grande oportunidade de avaliar a relação entre a areia e o crescimento das algas da neve”, afirma Maréchal.
“Ao analisar essas partículas, tentaremos determinar se a areia fornece nutrientes, metais ou algum elemento específico que possa interferir, positiva ou negativamente, no crescimento das algas.”
A equipe espera ampliar o âmbito de sua compreensão para ver como os níveis de ferro e de acidez na neve afetam o crescimento das algas vermelhas.
Eles também estão estudando se outros micro-organismos e animais que vivem junto às algas da neve podem desempenhar um papel nisso.
Segundo Maréchal, os primeiros testes com as novas amostras coletadas em junho revelaram a presença de animais unicelulares, chamados zooplâncton, com as células das algas.
Embora mais comumente associados a oceanos e lagos, onde constituem um elemento-chave da cadeia alimentar, os zooplânctons também podem sobreviver nas águas derretidas de geleiras e da neve.
A pesquisa deles está ajudando a construir a imagem de que, embora a neve possa parecer inerte, na verdade está repleta de vida.
“Conforme a neve cai, muitas vezes ela retém minerais e elementos como nitrogênio e fósforo, tanto antropogênicos quanto de ocorrência natural”, diz Benning.
As algas da neve podem então se alimentar deles, enquanto as bactérias na neve também formam uma relação trófica com as algas.
“Nesse ecossistema, as algas da neve são os produtores primários”, explica Benning.
“Quando florescem, elas fazem fotossíntese, consomem nutrientes enquanto produzem resíduos, como açúcares e outros componentes, que servem como possível alimento para bactérias e outros micro-organismos.”
De acordo com Maréchal, as algas, que precisam apenas de dióxido de carbono e luz, parecem formar a base de um ecossistema mais complexo e maduro que envolve bactérias, fungos e animais unicelulares, como o zooplâncton.
Mas, embora essas manchas coloridas na neve floresçam com vida — elas também têm vida curta, aparecendo apenas por algumas semanas durante o ano.
Quando o tempo esfria novamente, a cor desaparece, e a neve volta a ser branca.
Isso levanta uma questão intrigante — o que realmente acontece com as algas vermelhas durante o inverno?
“Uma teoria é que elas hibernam e se tornam quase transparentes conforme congelam”, diz Benning.
“Quando não é mais necessário, eles perdem a pigmentação, já que é um processo que consome energia.”
Enquanto o pigmento vermelho voltar a cada ano com o Sol e o calor do fim da primavera e início do verão, Benning e seus colegas cientistas estarão lá observando as manchas na neve de perto para ver o que mais podem nos ensinar.
Fonte: G1