Até chegar à Universidade de São Paulo (USP), um fóssil praticamente completo do pterossauro Tupandactylus navigans passou por momentos arriscados: foi um dos 2 mil itens arqueológicos capturados pela Polícia Federal na Operação Munique em 2013, que impediu que estes materiais, a maioria encontrada no Ceará, fossem contrabandeados para a Europa, Ásia e Estados Unidos. Depois do resgate, os itens arqueológicos foram entregues à universidade.
Agora, o fóssil do pterossauro acaba de ser descrito em um artigo publicado na revista científica americana PLOS ONE pelo paleontólogo Victor Beccari e colegas da USP, da Universidade Federal do Pampa, Universidade Estadual Paulista, Universidade Federal do ABC e da Universidade Nova de Lisboa (em Portugal).
Após anos de pesquisa envolvendo a realização de uma tomografia do fóssil e a construção de um modelo 3D computadorizado, é possível dizer que a vida deste pterossauro há cerca de 115 milhões de anos devia ser mais pacata do que testemunharam seus restos mortais no século 21, quando quase foi levado ilegalmente para o exterior.
Com uma crista na cabeça grande demais para o seu corpo, a equipe acredita que este pterossauro tinha alguma dificuldade de locomoção e não era capaz de fazer voos longos; e, por seu pescoço longo, vivia a maior parte do tempo forrageando no solo. O Tupandactylus navigans possivelmente era um herbívoro e tinha um tamanho normal para pterossauros (cerca de 2,5m de envergadura e 1,20 de altura — um terço dela, 40 cm, ocupado pela crista na cabeça).
Já seu fóssil é descrito pela equipe como “excepcional”: é de um indivíduo adulto, tem quase todas as partes do corpo, e intactas, além de remanescentes dos tecidos moles das duas cristas (uma na mandíbula e outra na cabeça), do bico e das garras do pterossauro.
Em entrevista à BBC News Brasil, Victor Beccari, graduado na USP e mestre em paleontologia pela Universidade Nova de Lisboa, explicou que o fóssil é também um dos mais completos na família dos Tapejaridae em todo o mundo.
No Brasil, já haviam sido encontrados vários fósseis de Tapejaridae, mas geralmente partes dispersas do animal.
Também foram achados aqui os dois primeiros fósseis do Tupandactylus navigans, a partir dos quais a espécie foi descrita por pesquisadores europeus. Agora, o material apresentado pela equipe brasileira na PLOS ONE é o terceiro fóssil de que se tem notícia da espécie. Todos são da formação Crato, na Chapada do Araripe — englobada pelos Estados do Ceará, Piauí e Pernambuco —, conhecida mundialmente por revelar fósseis muito bem preservados. Talvez a espécie, que viveu no período do Cretáceo Inferior, tenha sido endêmica (restrita a um local) dali.
“Esta espécie já havia sido descrita em 2003, mas apenas pelo crânio. Então essa é a primeira vez que temos um esqueleto completo desse animal”, contou Beccari, falando de Portugal.
“Como só conhecíamos o crânio desse bicho, um monte de coisa foi inédita. A primeira que chamou atenção foi a crista que ele tem na mandíbula, muito grande”, aponta o pesquisador, mencionando também a crista que o animal tinha na cabeça.
“Os pterossauros voam, e para este animal conseguir voar longas distâncias, considerando a crista gigante de 40 cm que ele tem na cabeça, ele deveria ou ter um pescoço muito curto ou tendões ossificados no pescoço. Não encontramos isso, o que mostra que talvez esse bicho não fosse um exímio voador, se restringindo a voos mais curtos para encontrar alimentos ou fugir de predadores”, explica o paleontólogo, acrescentando que este pterossauro provavelmente era predado por dinossauros carnívoros grandes.
Os pesquisadores encontraram em parte dos ossos e músculos das asas um mecanismo bastante desenvolvido para a chamada ancoragem de voo, o que indica que, ao menos para tiros curtos, este animal tinha uma boa adaptação para o voo rápido — por exemplo, para fugir logo de um predador. Já as cristas provavelmente faziam o papel de atrativo sexual, como a cauda dos pavões hoje em dia.
Beccari conta que está trabalhando com este fóssil desde 2016, quando ainda estava na graduação na USP. Assinam com ele o artigo na PLOS ONE o seu orientador na faculdade, o paleontólogo Luiz Eduardo Anelli; seu orientador em Portugal, Octávio Mateus; e os pesquisadores Fabiana Costa (Universidade Federal do ABC), Felipe Pinheiro (Universidade Federal do Pampa) e Ivan Nunes (Universidade Estadual Paulista).
Um passo fundamental na pesquisa cujo resultados estão sendo apresentados na revista científica foi a realização de uma tomografia no Hospital Universitário da USP.
“Na tomografia, é possível tirar milhares de imagens transversalmente ao fóssil. Num software de computador, a gente consegue pegar essas imagens que são 2D e com isso formar uma superfície geométrica 3D”, explica o paleontólogo.
“É como se você tivesse preparando o fóssil, só que digitalmente. Assim, você consegue manipulá-lo do jeito que quiser, colocar na posição que ele estaria em vida e acessar partes do fóssil que não daria pra ver (no fóssil original).”
Tamanha pesquisa não seria possível se o material tivesse chegado ao destino planejado por contrabandistas. Uma lei brasileira de 1942 criminalizou a saída de fósseis do território nacional mas, mesmo assim, a região do Crato foi classificada pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) como a principal área de preocupação na evasão de patrimônios nacionais.
Beccari diz que ele e colegas da área acreditam que o fóssil completo do Tupandactylus navigans seria leiloado na Europa e provavelmente iria parar em uma coleção privada.
“A gente não sabe para quem ou com qual valor ele seria vendido — muito provavelmente seria um preço bem alto, porque esse fóssil renderia esse tipo de coisa.”
“Para a ciência, ele estaria perdido. Na paleontologia, você deve evitar trabalhar com materiais de coleção privada porque você precisa sempre ter a possibilidade de checar seus dados, e em uma coleção privada, nem todos vão ter acesso. Se isto acontecesse, talvez a gente tivesse apenas uma foto dele — não teríamos artigo científico, nem um retorno para a sociedade como hoje, já que este fóssil está em exposição no Museu de Geociências da USP”, comemora o paleontólogo.
Fonte: BBC