Alegações de rios de cor vermelha e bebês com má-formação. Três anos depois, a contaminação do Rio Mucurupi, no Pará, em 2018, continua gerando conflitos entre moradores das cidades de Barcarena e a empresa norueguesa Hydro Alunorte.
Mais de 20 mil famílias foram atingidas e agora a comunidade atribui a morte prematura de bebês na região aos efeitos do consumo, pelas mães, de águas com chumbo, bauxita e alumínio.
A milhares de quilômetros dali, em Conceição do Mato Dentro (MG), o alvo de protestos e acusações de moradores é a britânica Anglo American. Desde que a mineradora estrangeira se instalou ali, comunidades dizem conviver com o barulho alto de explosões nas minas, rachaduras nas casas e nuvens de poeira que estariam afetando a respiração.
Já para 746 indígenas da região do Rio Xingu, no Pará, potencial ameaça a suas terras viria dos planos da mineradora canadense Belo Sun. Um eventual rompimento de uma barragem gigante que ela pretende construir poderá afetar parte das terras indígenas Arara da Volta Grande do Xingu e Trincheira Bacajá, com o despejo de 9 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos no rio, segundo estudo da Associação Interamericana de Defesa Ambiental.
Ameaça similar provocou a “extinção” de um bairro do município mineiro de Itatiaiuçu, em Minas Gerais. Mais de 50 famílias tiveram que deixar suas casas por causa do risco de rompimento da barragem Serra Azul, da mineradora ArcelorMittal, com sede em Luxemburgo.
Esses são apenas alguns exemplos dos mais de 400 conflitos ocorridos em 2020 entre gigantes estrangeiras da mineração e moradores das áreas onde elas se instalaram, entre os quais ribeirinhos, indígenas e pequenos agricultores.
Um levantamento inédito — obtido pela BBC News Brasil — que integra o Mapa de Conflitos da Mineração 2020, mostra que as mineradoras estrangeiras, a maioria de países ricos com rígidas regras ambientais e trabalhistas, são pivôs da maior parte das disputas e acusações envolvendo populações vulneráveis no Brasil.
Essas gigantes internacionais são apontadas como “violadoras” em 48,7% dos conflitos ocorridos no ano passado, enquanto empresas nacionais responderam por 23,8% e o garimpo ilegal, por 19,4%.
“Essas empresas estrangeiras são grandes, seus empreendimentos são enormes e, quando elas produzem efeitos negativos, são efeitos sobre muitos indivíduos e em muitas localidades”, explica o professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Luiz Jardim Wanderley, um dos autores da pesquisa.
Padrão menos rigoroso de comportamento?
O Mapa de Conflitos da Mineração no Brasil 2020 reúne todo tipo de conflito envolvendo empresas de mineração e comunidades atingidas — desde protestos ao início de processos na Justiça e acusações de danos ambientais e outras irregularidades denunciadas pelo Ministério Público, polícia ou moradores.
Conforme o levantamento, a empresa com mais envolvimentos em conflitos é a brasileira Vale — maior mineradora com atuação no território. Mas, juntas, as companhias estrangeiras superam o volume de conflitos registrados em 2020 envolvendo empresas brasileiras e a extração ilegal de minério.
Isso não quer dizer que os casos sejam mais graves, mas que possíveis danos teriam afetado um número maior de pessoas. No caso do garimpo ilegal, há violações bem mais graves a direitos fundamentais. Em 2020, foram identificadas, por exemplo, 144 pessoas escravizadas, atuando em minas irregulares de ouro e outras pedras preciosas.
Mas os dados do Mapa da Mineração mostram que a relação das empresas estrangeiras com as comunidades onde estão instaladas é conflituosa. Para Jardim, professor da UFF, isso indica que, embora venham de nações com regras rígidas de proteção ambiental e trabalhista, a mesma lógica não parece ser aplicada por essas companhias quando atuam em nações em desenvolvimento.
“A falta de controle de órgãos ambientais e a ausência de regras rígidas de compensação a populações afetadas têm sido usadas pelas empresas internacionais para maximizar lucros”, disse.
Vantagem competitiva
O professor da Universidade Federal Fluminense conta que esteve em Oslo, na Noruega, em uma mesa de negociação com representantes da mineradora Hydro, junto com representantes de ONGs locais de defesa do meio ambiente.
Na ocasião, conta Jardim, as organizações defenderam uma proposta de lei que obrigaria empresas norueguesas a se comportarem, no exterior, dentro dos mesmo parâmetros exigidos pela legislação da Noruega.
“A resposta da empresa Hydro foi que seria inviável do ponto de vista da concorrência fazer isso, que todos os concorrentes teriam que fazer o mesmo para valer à pena”, recorda.
“Então, de uma forma, ela afirma que não se comporta de acordo com a lei do seu país de origem. Ela afirma que há uma vantagem competitiva em operar em outros países onde há menos controle ou menos rigidez moral.”
Em nota à BBC News Brasil, a Hydro diz que opera de acordo com as legislações locais, dos países onde instalam suas minas e barragens. “Adicionalmente, observamos padrões internacionais e da própria Hydro, seguindo princípios das Nações Unidas sobre negócios e direitos humanos.”
Na cesta de gigantes da mineração que concentram conflitos com populações vulneráveis no Brasil há também empresas britânicas, canadenses e australianas, entre outras.
As campeãs de reclamação
A mineradora com participação estrangeira que foi campeã em conflitos em 2020 foi a Samarco — joint venture formada pela australiana BHP Billiton e a Vale.
A maior parte das disputas diz respeito à demora na compensação e construção de moradias às centenas de pessoas afetadas pelo vazamento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), em 2015, que contaminou o rio Doce e é tido como o maior desastre ambiental causado por mineração no Brasil.
Seis anos depois, só 10 das 267 casas prometidas pela mineradora às famílias que perderam tudo no vazamento ficaram prontas. E o medo de contaminação chega até o Espírito Santo, por onde também passa o rio Doce. Moradores do município de Colatina (ES) entregaram um documento ao Ministério Público em 2020 dizendo temer que estejam tomando água contaminada.
“O que os dados mostram é que os conflitos permanecem, as comunidades dizem que as compensações não estão sendo feitas de maneira satisfatória, que os danos não estão sendo sanados”, diz Jardim, da Universidade Federal Fluminense.
Em nota, a australiana BHP Billiton diz que a Samarco, como uma joint venture, tem seus “seus próprios padrões operacionais e de gestão”.
“A BHP, como acionista, busca influenciar na adoção de padrões internacionais de segurança e sustentabilidade, no aprimoramento dos processos de governança e na transparência da relação com as comunidades locais, além de avaliar regularmente o desempenho das empresas nesses quesitos.”
Sobre as comunidades atingidas pelo vazamento de 2015, a BHP diz que foram pagos R$ 4,97 bilhões em indenizações a 330 mil pessoas atingidas. “A BHP sempre esteve e continua absolutamente comprometida em fazer o que é certo pelos atingidos”, disse a empresa à BBC News Brasil.
Também em Minas Gerais, um bairro inteiro — a comunidade de Pinheiros em Itatiaiuçu — “deixou de existir” com a remoção das 56 famílias de suas casas por causa do risco de rompimento da barragem Serra Azul, da gigante da mineração ArcelorMittal, com sede em Luxemburgo.
Em nota, a empresa disse que “reconhece o impacto causado pela evacuação, mas reitera que a ação foi feita em caráter preventivo, o que vai ao encontro de sua prioridade máxima, que é zelar pela segurança”. A mineradora também afirma agir com “total transparência e prudência, mantendo ativo o apoio às famílias desalojadas e à comunidade para mitigação dos impactos causados.”
Mortes em rodovia, barulho e poluição
Em segundo lugar no “ranking de conflitos”, conforme os dados do Mapa da Mineração, está a britânica Anglo American. Moradores de 12 comunidades de Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, reclamam do barulho de explosões, poeira e rachaduras nas residências.
Alguns dizem que não foram incluídos no programa de compensações, embora sejam afetados pela atividade da mineradora.
Em nota, a Anglo American disse: “As comunidades onde a empresa atua estão seguras. Não há violação aos direitos humanos das comunidades do entorno de nossas operações.” Sobre as acusações de poluição e barulho, a empresa britânica disse que tem um programa de controle da qualidade do ar e emissão de ruído, que cumpre “as legislações ambientais vigentes” no Brasil.
Recentemente a morte de um jovem, Juliano Gomes Rodrigues, no Morro do Paiol (MG), levou a comunidade a fazer protestos de rua contra a mineradora e bloquear a BR-259. Rodrigues morreu num acidente envolvendo carretas a serviço da mineradora.
Moradores dizem que as atividades de extração de minério na região aumentaram o fluxo de veículos na rodovia, colocando as comunidades à margem da BR em risco. Passaram a chamar o Morro do Paiol de Morro da Morte.
A Anglo American respondeu a essas acusações dizendo que a rodovia está sob gestão do Estado de Minas Gerais e que os veículos da empresa “são equipados com controle de velocidade”, além de terem suas “condições” são checadas em postos de controle da companhia seguindo “rigorosos parâmetros de segurança.”
Contaminação por alumínio
Em terceiro lugar em volume de conflito está a norueguesa Hydro, com sede em Oslo, e atuação em sete municípios brasileiros. O Mapa dos Conflitos da Mineração 2020 identificou 20 ocorrências de atritos com as comunidades locais. A grande maioria diz respeito a acusações de moradores de Barcarena, no Pará, que dizem continuar a sofrer efeitos do transbordamento de uma barragem da gigante nórdica na região, em fevereiro de 2018.
Na época, laudo do Instituto Evandro Chagas, ligado ao Ministério da Saúde, apontou alteração nos elementos químicos presentes no solo, além da manutenção pela Hydro Alunorte de “tubulação clandestina de lançamento de efluentes não tratados”.
Em fevereiro deste ano, cerca de 40 mil pessoas das comunidades atingidas protocolaram uma ação coletiva na Justiça da Holanda pedindo reparação com base na legislação internacional.
Eles alegam que “as vítimas foram expostas a resíduos tóxicos do processamento de alumínio, que podem causar problemas de saúde, como aumento da incidência de câncer, Alzheimer, doenças de pele, problemas de estômago e diarreia”. Citam, inclusive, casos de má-formação de bebês que, na visão deles, pode estar relacionado ao vazamento.
Em nota, a Hydro disse à BBC News Brasil que inspeções realizadas por diferentes órgãos de controle “confirmaram que não houve transbordamento da barragem de bauxita da Alunorte durante as enchentes ocorridas na época”.
“Relatórios dessas inspeções incluem aqueles feitos por autoridades ambientais como Ibama, Semas, Semade, entre outras. Isso significa que problemas de saúde ocorridos depois das enchentes de 2018 não estão relacionadas a uma situação de transbordamento”, disse a empresa, cujo acionista majoritário é o governo da Noruega.
Por outro lado, uma Comissão Parlamentar de Inquérito aberta pela Assembleia Legislativa do Estado do Pará concluiu, também citando laudos de órgãos de controle, que a Hydro provocou “dano concreto” às comunidades de Barcarena. E recomendou uma série de medidas, inclusive a abertura de ação penal e civil se o Ministério Público considerasse adequado.
“Embora reconhecido o dano causado pela Hydro Alunorte a partir dos eventos de 16 e 17 de fevereiro de 2018, a empresa em postura defensiva passou a tentar desacreditar os laudos emitidos pelo Instituto Evandro Chagas”, diz o relatório da CPI.
Quanto à acusação dos moradores de que a contaminação do solo está provocando má-formação em bebês, a Hydro respondeu: “as estatísticas mostram que o número de malformações na região de Barcarena é relativamente baixo em comparação com a média do estado do Pará e do Brasil”.
Conflito com povos indígenas
Embora os conflitos mais violentos entre garimpeiros e indígenas ocorram na extração ilegal de minério, grandes empresas nacionais e estrangeiras também são alvos de acusações de estarem prejudicando a subsistência dos povos indígenas.
Cerca de 10% dos 823 conflitos ocorridos entre mineradoras e comunidades em 2020 envolveram populações indígenas, segundo o Mapa de Conflitos da Mineração. Entre os projetos de empresas estrangeiras que mais têm provocado alerta entre povos indígenas está a construção de uma mina de ouro pela canadense Belo Sun, na Volta Grande do Rio Xingu, no Pará.
A empresa encaminhou estudo de impacto à Funai, mas uma associação que engloba pesquisadores independentes diz que há “lacunas” na análise e aponta que eventual rompimento da barragem poderia “lançar 9 milhões de metros cúbicos de rejeitos no rio Xingu e percorrer mais de 40 quilômetros em duas horas, provocando danos irreversíveis”.
“Esses rejeitos conteriam metais altamente tóxicos, como cianeto, arsênico e mercúrio”, diz o estudo assinado por pesquisadores brasileiros e estrangeiros da Associação Interamericana de Defesa Ambiental (AIDA).
Em nota, a Belo Sun Mining diz que o projeto tem tido boa receptividade das populações indígenas do Xingu e das agências reguladoras locais. “A Belo Sun respeita e compreende os direitos das comunidades indígenas a suas terras”, disse a empresa.
“Ao longo do processo de licenciamento a Belo Sun teve discussões e apresentações abertas e honestas.” A empresa canadense também diz que a construção da barragem de rejeitos vai seguir “os mais altos padrões de engenharia e superar recomendações regulatórias nacionais e internacionais de boas práticas”.
Outra empresa canadense também figura na lista de mineradoras estrangeiras pivôs de conflitos em 2020: a Tombador Iron Mineração, com forte atuação na Bahia. Cerca de 2 mil moradores ribeirinhos da Serra da Bicuda, em Sento Sé, lutam contra a construção, pela mineradora, de uma mina de hematita a céu aberto, para produção de ferro.
A empresa conseguiu licença para operar do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), mas os moradores da região afetada dizem que não foram consultados no processo e acusam a mineradora de desmatar a região e perfurar poços para retirar água.
À BBC News Brasil, a Tombador Iron disse que o estudo de impacto ambiental que apresentou para obter a licença foi “criteriosa e tecnicamente aprovado pelo órgão (Inema)”. Mas não comentou se houve consulta à população local.
A mineradora canadense também destacou que não haverá barragem de rejeitos ou utilização de água e químicos para a produção de ferro, ressaltando que “a mina se assemelha a uma pedreira”.
Quanto às acusações de perfuração de poços e desmatamento, a empresa confirma que houve instalação de três poços para “controle da qualidade das águas” e “supressão vegetal”. Mas diz que isso foi feito dentro dos parâmetros legais e com autorização do Inema.
Mineração vem crescendo no Brasil
Desde que assumiu a Presidência, Jair Bolsonaro vem defendendo ampliar atividades de mineração, inclusive na Amazônia. Ele já defendeu a instalação de novas mineradoras estrangeiras e que a atividade passe a ser permitida em terras indígenas.
Mas o incentivo à mineração de grande escala existiu em governos anteriores, inclusive nos do PT.
“O Plano Nacional de Mineração, feito ainda no governo Dilma Rousseff, previa a aceleração da mineração no país. Então, isso é um reflexo de muitos governos que vêm estimulando o setor mineral a se expandir”, destaca Luiz Jardim, professor da Universidade Federal Fluminense.
“E isso tem grande incentivo com o preço do minério no contexto atual. Houve queda em 2012, mas o preço voltou a crescer. Esses empreendimentos estão muito lucrativos.”
Mas, segundo o professor, o desmonte de órgãos de fiscalização ambiental no governo Bolsonaro pode estar provocando um crescimento maior do garimpo ilegal, além da vinda de empresas estrangeiras que há tempos são incentivadas a explorar minério no Brasil.
“Nesse contexto atual, eu destacaria o avanço dos garimpos. A desregulação dos órgãos ambientais de controle nos últimos três anos de governo Bolsonaro estimulou uma expansão desse tipo de exploração”, diz Jardim.
Mineração traz desenvolvimento?
Trabalhadores do setor da mineração e empresas dizem que a atividade gera empregos e desenvolvimento, sobretudo nas regiões pobres do Brasil.
Já os críticos afirmam que os efeitos positivos não compensam os danos sociais e ambientais provocados pelo cotidiano da mineração e os acidentes, como os rompimentos de barragens em Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais, e o transbordamento de material tóxico em Barcarena, no Pará.
“Quando a gente tira petróleo e gás, quando falamos só da extração de minérios metálicos e não metálicos, as riquezas produzidas não chegam a 2% do PIB. É um valor irrisório do ponto de vista dos desastres que causam”, argumenta Jardim, professor da UFF.
“Quanto vale a perda do Rio Doce ao longo desse processo? Quanto vale o fim da atividade pesqueira para as comunidades da região? São valores não calculados. Os danos que a mineração produz não são compensados pelo volume de divisas que ela traz ou pelos impostos que pagam.”
Fonte: BBC