Vale sagrado pode se tornar próximo monumento nacional dos EUA

Se obtida, a classificação encerraria décadas de luta para proteger as raras tuias — e um importante local nativo americano.

Trecho cientificamente inexplicável de tuias em pleno deserto de Nevada, nos Estados Unidos. Os povos indígenas na área de Great Basin, ou a “Grande Bacia”, utilizam esse local como tradicional ponto de encontro e esperam que seja classificado como monumento nacional para sua preservação.
FOTO DE RUSSEL DANIELS

Em uma árida bacia montanhosa denominada Spring Valley, a leste do estado de Nevada, nos EUA, uma floresta perene isolada há muito tempo deixa ecologistas perplexos. Os cientistas afirmam que suas árvores — com frondosos ramos verde-azulados alcançando mais de 12 metros — não deveriam existir ali.

“Esse crescimento endêmico de juníperos da espécie Juniperus scopulorum, ou tuias, deveria ocorrer a uma altitude acima de 2,4 mil metros. Estão crescendo a 1,5 mil metros”, conta Kyle Roerink, diretor executivo da Great Basin Water Network, organização regional sem fins lucrativos de conservação de água. “A altitude, o solo e o habitat não são favoráveis a essas árvores. Ninguém entende como surgiram, nem como sobreviveram.”

Mas, para os habitantes nativos desse vale — os shoshones ocidentais — as tuias não são nenhum mistério. Esse local, chamado Bahsahwahbee, ou Vale da Água Sagrada, é um monumento vivo às centenas de ancestrais mortos durante três massacres ocorridos no século 19, dois liderados pelo Exército dos Estados Unidos e um por justiceiros.

Os atuais anciãos dos povos, incluindo Rupert Steele das Nações Confederadas da Reserva Goshute e Delaine Spilsbury dos shoshones ocidentais, recordam-se dos relatos desses eventos.

“Os homens caçavam e as mulheres coletavam alimentos”, como faziam há milhares de anos, afirma Spilsbury sobre o terceiro massacre. “Minha avó e sua amiga tinham cerca de 10 anos e estavam longe do acampamento quando aconteceu. Quando voltaram, encontraram todos (os que permaneceram) mortos.” Essas árvores, conta ela, brotaram onde seus corpos caíram.

“As árvores foram nutridas pela vida de nossos ancestrais”, acrescenta Rick Spilsbury, seu filho. “E foi a única vida dos shoshones ocidentais que restou em Spring Valley.”

A família Spilsbury participa de iniciativas de proteção do local — ainda utilizado para orações, recordações e encontros espirituais — há quase 30 anos. A cada ano, a luta intensifica. Há décadas, as comunidades do deserto em rápida expansão no sul do estado cobiçam o lençol freático que mantém vivo esse delicado ecossistema.

Agora a família Spilsbury e outros defensores buscam um novo aliado: o Serviço de Parques Nacionais.

Disputa pelo lençol freático

O Serviço de Administração de Terras (“BLM”, na sigla em inglês) supervisiona mais de 5,6 mil hectares de Bahsahwahbee. Ao contrário das terras públicas dentro dos limites do Parque Nacional da Grande Bacia, a apenas 13 quilômetros de distância, as terras do BLM não são administradas com o objetivo de serem preservadas, afirma Rick Spilsbury. “Na região, essa repartição é conhecida como Serviço de Pecuária e Mineração.”

A repartição pode autorizar o uso comercial do solo por empresas privadas para fins como pastagem, exploração de petróleo e gás e direitos de uso da água.

Há décadas, a Southern Nevada Water Authority (“Autoridade Hídrica do Sul de Nevada”, em tradução livre, ou SNWA, na sigla em inglês), agência governamental fundada em 1991, promove um plano para extrair bilhões de litros de água dos pântanos já em declínio em Nevada (incluindo Bahsahwahbee), bombeando-os a Las Vegas e comunidades circundantes no deserto. Diante dos protestos públicos e contestações judiciais de grupos comunitários e dos povos da região, a SNWA abandonou seus planos de implantar uma adutora em Las Vegas em 2020.

A vitória foi conquistada com dificuldade, mas a ameaça não desapareceu. A SNWA ainda tem autorização para extrair bilhões de litros de água anualmente do lençol freático dos vales ao redor de Bahsahwahbee. Além disso, duas outras propostas de adutoras sob avaliação podem reduzir os aquíferos da região em dezenas de metros, de acordo com análises hidrológicas.

“A ameaça da exportação (de água) é algo preocupante a comunidades indígenas e pequenos proprietários rurais”, observa Roerink. “A ideia de drenar uma área para abastecer outra — implica basicamente que uma área é mais importante do que outra.”

Bosques de coníferas foram reconhecidos como local cerimonial e memorial às vítimas indígenas norte-americanas dos massacres cometidos por soldados e justiceiros no século 19.
FOTO DE RUSSEL DANIELS

Monte Sanford, consultor ambiental dos goshutes e dos shoshones ocidentais, revela que a tentativa de proteção das tuias tem sido uma batalha fora do comum. Em vez de lutar contra cada ameaça de urbanização que surge — como mineração, parques eólicos e captação de águas do lençol freático — os povos buscam uma medida mais permanente. “Precisamos parar de apenas reagir”, comenta Sandford. “Precisamos proteger as tuias para sempre.”

Após um longo processo de requerimento, Bahsahwahbee recebeu a classificação de Propriedade Cultural Tradicional em 2017, lançando o local no Registro Nacional de Locais Históricos dos Estados Unidos.

“Funcionários e servidores estaduais e federais geralmente precisam de uma narrativa, um mapa, ou algo além da alegação de importância para um povo”, conta Sanford sobre a classificação, que acrescentaria mais etapas ao processo regulatório de qualquer projeto proposto.

Em última análise, a classificação não pode garantir a proteção ou impedir o BLM de conceder servidões ou direitos de passagem a projetos de urbanização, incluindo adutoras. É por isso que os administradores do local buscam uma classificação mais ampla — como monumento nacional.

Promovendo a proteção das tuias

No início deste ano, a assembleia legislativa estadual aprovou uma resolução recomendando ao Congresso que considere manter o local sob a alçada do Sistema de Parques Nacionais, definindo-o como uma área de proteção própria ou incluindo-o no Parque Nacional da Grande Bacia, nas imediações.

No entanto o plano tem algumas limitações, adverte Sanford. Outros locais de importância cultural, como o Monumento Nacional Bears Ears, no estado de Utah, passaram por roubos de túmulos, saques e vandalismo.

Devido ao risco em chamar tanta atenção a um local sagrado, Sanford ressalta que os povos locais desejam disposições adicionais, como mais segurança e uma previsão de gestão conjunta entre o Serviço de Parques Nacionais e os governos dos povos. A expectativa deles é informar os visitantes de que Bahsahwahbee não é um local de recreação — é “como um cemitério importante”, observa Delaine Spilsbury.

Apesar dos avanços recentes, há um longo caminho a percorrer. O próximo passo é defender a classificação para o Departamento do Interior e pedir apoio para proteção federal ao governo Biden. Sanford acrescenta que é comum o governo federal dos Estados Unidos emitir licenças a incorporadoras para a destruição ou transferência de recursos culturais dos povos nativo-americanos. Sua ajuda ativa na preservação de Bahsahwahbee seria uma mudança drástica em relação ao padrão adotado.

“Queremos preservar as árvores”, afirma Rick Spilsbury. “Gostaríamos de compartilhar nosso legado com o resto do mundo para que possam aprender com ele. Desejamos poder visitar o local e refletir — apenas estar presentes ali e recordar. Acreditamos que o sistema de parques possa nos ajudar com essa iniciativa.”

Fonte: National Geographic Brasil