Quando iniciou o projeto de captura de antas no Cerrado do Mato Grosso do Sul para realizar o monitoramento por colar, Patrícia Médici – bióloga e pesquisadora do Instituto Nacional para a Conservação da Anta Brasileira (Incab) – pretendia mapear a movimentação e o uso do espaço pelos animais para entender as principais ameaças à espécie naquela região. Além de coletar amostras de sangue de animais capturados vivos, a equipe de Medici passou a monitorar atropelamentos de antas nas rodovias e realizar necropsia e coleta de amostras biológicas nos cadáveres frescos. Não demorou para que os pesquisadores percebessem as más condições em que os animais estavam.
“Notamos um estado corporal bastante depauperado nos animais se comparados às antas que estávamos acostumados a ver no Pantanal, que são bonitas, saudáveis, gordas, têm pelagem boa e alta capacidade de reprodução”, disse Medici, que é exploradora da National Geographic, em entrevista à reportagem. “No Cerrado era bem diferente: bichos magros, com costelas aparentes, algumas mutações como dedos a mais, dentes feios, lesões – tudo o que se possa imaginar em termos de situações visíveis.”
Por se tratar de uma região de agricultura intensiva, os pesquisadores decidiram, então, realizar testes toxicológicos no coração, rim, fígado, sangue, unhas, ossos, conteúdo estomacal e fezes. “Com as necropsias passamos a observar também muitas lesões internas nos órgãos, particularmente fígados e rim.”
Publicado na revista Wildlife Research em fevereiro deste ano, o estudo começou em 2016 e levou cerca de dois anos e meio para ser concluído. Trata-se do primeiro relatório de detecção de pesticidas e metais em antas brasileiras.
“Pesquisamos o que era mais utilizado na região em termos de agroquímicos, pesticidas fungicidas, herbicidas”, diz Medici. “Criamos uma lista e fomos em busca de laboratórios para testar.”
Os resultados apontaram 41% do total das antas analisadas contaminados por produtos químicos. Em algumas amostras de sangue, tecidos e órgãos foram detectados níveis de agrotóxicos acima dos limites de ingestão permitidos. Outra preocupação foi a alta presença de substâncias proibidas no Brasil, como o pesticida aldicarbe, conhecido popularmente como chumbinho e banido pela Anvisa em 2012 por seu elevado potencial tóxico. Nas necropsias dos animais atropelados, 90% apresentaram alterações macroscópicas – possíveis de serem vistas a olho nu – em rins e fígados.
A sobrevivência no Cerrado se tornou um desafio para o maior mamífero terrestre brasileiro. Nacionalmente, a anta é classificada como vulnerável à extinção, mas no Cerrado ela encontra mais ameaças. O bioma tem hoje pequenos fragmentos que compõem a metade do que restou do território original. Para se deslocar de um trecho de mata a outro, os animais encaram todo tipo de interferência humana: campos de agricultura e pecuária, ataques de cães domésticos, rodovias, vilarejos, plantações de eucaliptos, fogo descontrolado, caça ilegal e contaminação por agrotóxicos e metais. As antas se deslocam por grandes distâncias e acabam se contaminando ao cheirar ou tocar o solo, beber água contaminada ou até mesmo se alimentar de pequenas quantidades de soja ou cana.
“O fato de termos detectado agroquímicos nesse animal sem dúvida pode sugerir que outros animais silvestres e domésticos ali na região, as pessoas, a água e o solo estejam contaminados também”, alerta Medici. “O contexto do Cerrado é uma interface com as lavouras; o bicho vive apertadinho em minúsculos fragmentos de mata aqui no Mato Grosso do Sul, obrigando a anta a utilizar o entorno para se locomover.”
Muito além das antas
A geógrafa Larissa Mies Bombardi – pesquisadora da Universidade de São Paulo e da Universidade Livre de Bruxelas/VUB – elaborou, em seu pós-doutorado, um atlas intitulado Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, o mais amplo estudo sobre o consumo de agrotóxicos no Brasil. Baseado em bancos oficiais de dados públicos – de órgãos como IBGE, Ibama e SUS –, o documento lista informações por região, estados ou biomas.
“Se olharmos o mapa de biomas, vemos que os municípios com maior produção de soja do país estão no Cerrado, sobretudo no oeste da Bahia, região central do Mato Grosso e caminhando para a Amazônia”, explicou Bombardi em entrevista à reportagem. “Mais da metade dos agrotóxicos utilizados no Brasil vai para a soja, isso já indica o quanto o Cerrado está impactado por agrotóxicos. A cana-de-açúcar também é das culturas que mais consomem agrotóxicos no país e uma grande parte da produção se dá também no Cerrado.”
Segundo o estudo de Bombardi, os quatro cultivos campeões de utilização de agrotóxicos no Brasil são a soja, o milho, a cana-de-açúcar e o algodão. Juntos, respondem por 80% de todo o produto aplicado. Proibida desde 2009 pela União Europeia, a pulverização aérea, feita com aviões agrícolas, ainda é amplamente realizada no país e torna o uso de agrotóxicos ainda mais perigoso. Isso porque as substâncias lançadas do alto se dispersam no ar, dando origem à deriva, como é chamada a porção de agrotóxico que não atinge o alvo. A deriva é a principal forma de contaminação ambiental – pode alcançar rios, solo, águas subterrâneas e até mesmo pastagens e outras criações.
“Eu diria que, de uma forma geral, em todo o Brasil a população está cronicamente exposta a essas substâncias. A gente não tem uma fiscalização de resíduos, não tem efetivamente uma fiscalização da condição da água, dos alimentos, não tem como controlar a deriva, que é uma prática extremamente discutível”, diz Bombardi. “No Cerrado, tanto na soja quanto na cana, no milho e mesmo no eucalipto, a pulverização aérea é um grande canal de aplicação, tornando o ambiente todo vulnerável. Os lençóis freáticos já estão em grande parte contaminados no país. Sem dúvida o Cerrado é um bioma ambientalmente comprometido por agrotóxicos.”
“Mais da metade dos agrotóxicos utilizados no Brasil vai para a soja, isso já indica o quanto o Cerrado está impactado por agrotóxicos.”
POR LARISSA MIES BOMBARDIUNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E UNIVERSIDADE LIVRE DE BRUXELAS/VUB
Agrotóxicos no Brasil
O estudo liderado por Patrícia Médici é parte de uma área do conhecimento que começa a despontar no Brasil e no mundo: o de doenças e intoxicações de animais silvestres. Pesquisas nesse sentido são fundamentais para se conhecer o estado de saúde dos animais e como ele vai interferir na sobrevivência das populações a longo prazo. Mais do que isso, ao utilizar animais como indicadores, é possível saber a quais agrotóxicos uma série de outras espécies, inclusive os humanos, estão expostos, e que medidas precisam ser tomadas. Esse entendimento de saúde integrada, em que a condição dos animais silvestres está relacionada com a saúde dos animais domésticos, que por sua vez está ligada com a qualidade de vida do ambiente e do ser humano, formando uma cadeia de causas e consequências, é chamado de ‘contexto de saúde única’ ou ‘saúde coletiva’.
“Esses estudos são importantes e não servem só para agrotóxicos”, avalia Medici. “Quando a gente captura animais, realiza as necropsias e coleta todas as amostras – fazemos avaliação completa de saúde, hemograma, perfil bioquímico, teste pra doenças infecciosas, toxicologia, microplásticos. Isso traz uma visão bastante holística e completa.”
O médico, professor e pesquisador da Universidade Federal do Mato Grosso Wanderlei Pignati explica que “a anta desse Cerrado é um bom monitoramento biológico para nos alertar que o ambiente está bastante contaminado”. A equipe de Pignati também realiza estudos de contaminação por agroquímicos em outras espécies, principalmente aves. “Não é só a anta, mas pássaros que comem soja, milho, insetos. E isso vai diminuir a produção de ovos dessas aves. Temos visto contaminação na água, no ar, na chuva, em sapo, minhoca, peixe, paca, tatu, tartaruga.”
“A maioria das águas do Brasil nasce no Cerrado, inclusive dentro de plantações de soja, milho e algodão no Mato Grosso. E, pelo código florestal, pode-se desmatar 80% do Cerrado legalmente, então optou-se pela morte do bioma”, completa Pignati.
O estudo sobre agrotóxicos liderado por Medici registra de forma contundente as consequências de um problema que não se restringe ao Cerrado. Em 2014, três exemplares de arara-azul foram a óbito na região do Pantanal e encaminhados para o Instituto Arara Azul. Exames toxicológicos revelaram envenenamento por altos níveis de Phosdrin/Menvifos, produto encontrado em vários pesticidas, utilizados em especial pela pecuária. No início de 2019, 50 milhões de abelhas morreram em um único mês em diferentes cidades de Santa Catarina – o maior produtor de mel do Brasil, com 99% de produção orgânica –, em decorrência da utilização do fipronil, inseticida proibido em diversos países. O produto, usado geralmente em fazendas de soja, é comprovadamente letal para abelhas, polinizadores fundamentais para o ambiente. Em junho deste ano, 18 animais silvestres – entre onças-pintadas, cachorros-do-mato, gaviões e urubus – e uma vaca foram encontrados mortos na região do Passo do Lontra, zona rural de Corumbá, no Pantanal sul-mato-grossense. A proximidade das carcaças e a forte presença de insetos mortos sugerem morte rápida e em cadeia, provavelmente por envenenamento. Ibama e Polícia Federal investigam as causas – a principal suspeita é ingestão ou contato com carbofurano, agrotóxico proibido no Brasil, mas que continua a ser utilizado em algumas fazendas.
Desde 2016, o Brasil caminha em uma curva crescente acentuada de registros de agrotóxicos para comercialização. Os anos de 2019 e 2020 foram recordistas, alcançando os maiores números da história das medições, iniciadas em 2005, de acordo com levantamento realizado pela Repórter Brasil. Entre os 967 compostos aprovados durante o governo Bolsonaro, há alguns banidos há duas décadas pela União Europeia, com base em estudos científicos que comprovaram prejuízos à saúde humana e ao ambiente.
“A maioria das águas do Brasil nasce no Cerrado, inclusive dentro de plantações de soja, milho e algodão no Mato Grosso. E, pelo código florestal, pode-se desmatar 80% do Cerrado legalmente, então optou-se pela morte do bioma.”
POR WANDERLEI PIGNATIUNIVERSIDADE FEDERAL DO MATO GROSSO
“O que mais preocupa nessa aprovação desenfreada é o fato de ser um mercado em ascensão, num momento de encolhimento da economia; um setor que cresceu 25% em cinco anos no Brasil é muito significativo”, aponta Bombardi. “Na verdade, o governo está leiloando esse crescimento e abrindo a possibilidade de diversas empresas disputarem esse mercado. É uma aposta no aumento desse uso.”
A pesquisadora diz que – mesmo se comparado à Austrália e EUA, países semelhantes por suas áreas continentais e extensas monoculturas – o Brasil ainda apresenta uma maior quantidade de agrotóxicos utilizada se avaliado o consumo médio superior por hectare.
Doutor em saúde coletiva, Pignati explica que os problemas pelo uso excessivo de agrotóxicos no Brasil não se restringem à contaminação de animais silvestres.
“O Brasil consome cerca de 20% dos agrotóxicos do mundo. Já estamos na casa de 1,2 bilhão de litros por ano”, diz Pignati, que alerta: se cada litro usa, em média, 100 litros de água para ser diluído, são 120 bilhões de calda tóxica colocados na agricultura todo ano, na soja, milho, algodão.
“Parte disso evapora e depois desce com a chuva, vai para o ar, contamina as casas vizinhas, as pessoas. Isso é usado perto de granja, perto de pastagem. Ficam resíduos nos cereais, inclusive na fibra de algodão e nos nossos alimentos”, continua Pignati. “Outra parte vai para a água, para o lençol freático, para as águas superficiais. Um ciclo imenso de contaminação, um dos desastres do agronegócio.”
Em 2017, uma equipe liderada por Pignati publicou um mapa do uso de agrotóxicos por municípios. O estudo estabelece correlações com indicadores de saúde, como intoxicação aguda, subaguda e crônica, considerando a toxicidade dos pesticidas e a exposição como fatores determinantes para a incidência das doenças.
Nas regiões em que mais se utiliza agrotóxicos, maior é o número de casos de intoxicação aguda, câncer infanto-juvenil (até 18 anos) e malformação congênita. “Agora tem novos estudos que apontam para mais distúrbios mentais e mostram onde estão concentrados esses impactos. Não é só no homem, mas no boi, no suíno. Grande parte dos agrotóxicos causam imunodepressão [diminuem a imunidade], isso faz com que aumentem as doenças em humanos e animais”, avalia o pesquisador.
Em meio ao número alarmante de doenças associadas ao uso excessivo de agrotóxicos, o projeto de lei (PL) 6.299/2002, conhecido como PL do Veneno, pretende facilitar o uso de agrotóxicos no Brasil. De autoria de Blairo Maggi, ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no governo de Michel Temer, o PL propõe alterar o termo ‘agrotóxico’ para ‘pesticida’, o que pode gerar falsa sensação de produto menos nocivo; colocar o ministério da Agricultura como único responsável pelo registro das substâncias, retirando o poder de veto da Anvisa e Ibama; acabar com a regulação específica para propagandas dos produtos; e permitir a venda de algumas substâncias sem receituário agronômico, entre outras questões.
Em outubro, o presidente Jair Bolsonaro alterou a regulamentação da Lei dos Agrotóxicos, de 1989, por meio do decreto nº 10.833. Agora, pesticidas podem ser liberados se houver um limite seguro de exposição. O decreto também cria uma tramitação prioritária, que acelera o processo de aprovação de um agrotóxico. A ação provocou críticas de especialistas, que alertam para a subjetividade do termo ‘limite seguro’ e avisam que a mudança pode ter vindo justamente para compensar a paralisação do PL do Veneno no Congresso.
Um dos argumentos para o uso excessivo é a necessidade de produzir em grande escala, o que não seria possível sem as substâncias. Pignati discorda. “Nós [Brasil] somos o maior produtor de açúcar, álcool, café, chocolate e arroz orgânicos do mundo”, aponta o médico. “É possível produzir em larga escala sem uso de agrotóxico e fertilizantes químicos, que também são bastante problemáticos, pois interferem nos ciclos das plantas e dos animais. É preciso ter um outro modelo com controle biológico, rotação de cultura, uma série de manejos.”
Para o biólogo Reuber Brandão, professor da Universidade de Brasília, “os países que já perceberam a importância da produção orgânica estão dominando o mercado. A tendência é que se a gente não tiver uma percepção mais avançada em relação a atividade econômica agrícola no Brasil, vamos ficar parados no tempo e ter consequências econômicas e do ponto de vista de respeito internacional ao produto brasileiro”.
E a saúde das antas é essencial para essa nova velha forma de pensar a produção agrícola. “A anta é um importante dispersor de sementes; várias das plantas valiosas para o extrativismo de quem vive no Cerrado – como o pequi, o araticum, o jatobá – precisam desses dispersores”, disse Brandão em entrevista à reportagem. “A anta é o último dos grandes herbívoros que faz isso.”
Monoculturas problemáticas
Os malefícios das extensas monoculturas são conhecidos. No best-seller Primavera Silenciosa, considerado um marco para o movimento ambientalista que surgia nos Estados Unidos nos anos 1960 e para o debate mundial sobre agrotóxicos, Rachel Carson escreveu: “Tal sistema de monocultura preparou o terreno para aumentos explosivos nas populações de determinados insetos. O cultivo de um único produto não se beneficia dos princípios pelos quais a natureza opera: trata-se de agricultura como um engenheiro a concebe. […] É óbvio, então, que um inseto que vive no trigo pode elevar sua população a níveis muito mais altos em uma fazenda dedicada ao cultivo de trigo do que em outra em que o trigo é entremeado a outros cultivos aos quais o inseto não se adapta”.
Para Pignati, “são as monoculturas que acabam com os insetos, e sobra aquele 1% resistente, difícil de controlar”, diz. “É preciso procurar uma alternativa. Precisamos fazer uma transição agroecológica, para um modelo diferente desse que temos e que a União Europeia, o grande comprador de orgânicos do mundo, já vem fazendo em relação aos alimentos.”
Segundo ele, é preciso haver monitoramento constante da água, do solo e dos alimentos e transparência na divulgação para a população de dados e pesquisas, sobre o que está contaminado, de doenças que estão aumentando, promovendo uma vigilância sanitária participativa. “É uma cadeia de divulgação, de democracia, de conhecimento que vai fazer parte dessa vigilância à saúde. A gente precisa avançar na real diminuição do uso de agrotóxicos e não ter os governos federal e estadual dominados pelo mercado, deixando a saúde em terceiro, quarto lugar.”
Planejar ações de curto, médio e longo prazos são essenciais diminuir efetivamente o uso dessas substâncias. Proibir a pulverização aérea e as substâncias já banidas em comunidades onde a discussão sobre uso indiscriminado de agrotóxicos já avançou, como é o caso dos países da União Europeia, e fomentar uma transição do atual modelo de agricultura para um modelo agroecológico estão entre os princípios do PL 6.670/2016, a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PnaRA), que chegou a ser aprovada em comissão especial da Câmara dos Deputados em 2018, de onde seguiria para votação em plenário no ano seguinte. Mas, desde então, o PL está parado.
Para Bombardi, as medidas são fundamentais, contudo, a complexidade da questão pede mudanças mais profundas. “Temos que repensar qual o pacto social que queremos fazer, porque ter uma economia lastreada no agronegócio não tem trazido um ganho para o conjunto da sociedade”, diz ela. “Temos visto o preço do alimento aumentar, a fome aumentar, e a produção agrícola não tem significado produção de alimentos. O alimento não pode ser commodity. Ele tem sido uma moeda de troca, como é o petróleo, como é o minério de ferro, e aí os preços dos alimentos flutuam a favor do mercado. E quem ganha? As grandes tradings, as grandes empresas que controlam esse comercio mundial, as grandes farmacêuticas, que também produzem agrotóxicos, e quem controla as propriedades da terra. Mas o conjunto da sociedade não está ganhando, nem do ponto de vista social, nem do ambiental.”
No contexto das grandes crises ambientais vividas hoje pela humanidade, colocar em risco os ativos ambientais e serviços ecossistêmicos do país pode ser classificado como insanidade. Reavaliar nossas práticas e valores para construir caminhos mais sustentáveis e inclusivos exige um planejamento de longo prazo, mas que precisa começar agora.
Fonte: National Geographic Brasil