Duas terras onde vivem indígenas isolados estão sob ameaça devido a projetos de desenvolvimento herdados da ditadura militar, mostram dados de um relatório técnico do Instituto Socioambiental (ISA, organização sem fins lucrativos com foco em temas ambientais e indígenas).
Os projetos são a pavimentação da rodovia BR-319, no Amazonas, e a retomada do projeto do Linhão do Tucuruí (uma grande linha de energia passando no meio da terra indígenas), em Roraima.
Habitadas por grupos isolados que nunca tiveram contato com não-indígenas, as terras de Jacareúba-Katawixi (AM) e Pirititi (RR) estão em regiões que devem ser afetadas pelos projetos e estão prestes a perder a proteção legal que tinham até agora.
Ambas as terras eram protegidas por Portarias de Restrição de Uso, um mecanismo legal temporário para proteger indígenas isolados decretado pela Funai (Fundação Nacional do Índio) e que precisa ser renovado periodicamente, normalmente a cada três anos.
A portaria decretada para a terra indígena de Pirititi, no entanto, venceu no domingo (5/12) e foi renovada por apenas seis meses, tempo visto como muito curto por ambientalistas. A da terra indígena de Jacareúba-Katawixi vence nesta quarta (8/12) e a Funai ainda não se manifestou sobre a sua renovação.
Dados e imagens captados por satélites analisados pelo ISA mostram que ambas as regiões já tiveram explosões de desmatamento durante a pandemia com a expectativa dos invasores de que as portarias não fossem renovadas.
“Percebemos um aumento do desmatamento no período anterior ao vencimento das portarias”, explica Antonio Oviedo, coordenador do programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA.
“É um padrão mesmo, o desmatamento aumenta com a especulação desses invasores de que essas áreas eventualmente entrem nos cadastros públicos e eles possam requerer a titulação desses terrenos”, afirma Oviedo.
O governo afirma que a retomada dos projetos é necessária para a infraestrutura da região. Mas pesquisadores e comunidades locais dizem que outras alternativas poderiam ser estudadas e criticam a falta de um compromisso claro com a mitigação dos impactos das obras.
Diversos estudos apontam para o impacto socioambiental de grandes obras no coração da floresta. Um deles, publicado na revista científica Biological Conservation, mostra que 95% do desmatamento acumulado na Amazônia se concentram em uma distância de 5,5km das estradas na região. Outro, publicado no International Journal of Wildland Fire, aponta que 85% dos incêndios florestais também se concentram nesse raio.
Os ministérios da Infraestrutura e das Minas e Energia não responderam aos questionamentos da BBC News Brasil sobre os projetos até a publicação desta reportagem.
Sobrevivência ameaçada
A terra indígena de Jacareúba-Katawixi, no Amazonas, é habitada pelos indígenas Katawixi, um grupo isolado que nunca teve contato com não-índios, mas que deixa vestígios de ocupação observados em expedições, como construção de abrigos e colheita de frutos. Seu modo de vida é totalmente dependente da natureza preservada.
Com a portaria de restrição de uso prestes a vencer, a terra está em uma região que deve ser afetada pela pavimentação da BR-319, estrada de 885 km que liga Manaus a Porto Velho por terra.
Iniciada em 1968 e inaugurada em 1976, a rodovia foi idealizada e construída no coração da floresta pelo governo militar como parte de um “plano de integração nacional”, que incluía o incentivo à migração e a criação da Transamazônica.
Nos anos seguintes, a BR-319 foi se degradando com a falta de manutenção. Cheia de atoleiros e crateras, seu estado chegou a um ponto que levou ao seu fechamento na década de 1980. Desde 2015 ela tem trechos abertos para o trânsito, mas sem pavimentação.
Em junho de 2020, o governo Bolsonaro publicou um edital para a pavimentação de 52 km da rodovia. Na época, no entanto, não havia um estudo de viabilidade econômica e nem a elaboração de um estudo detalhado de impacto ambiental (chamado EIA/RIMA).
O edital foi questionado na Justiça pelo Ministério Público Federal justamente pela falta do estudo ambiental, mas o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) argumentou que havia um entendimento com o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) que tornava o EIA/RIMA desnecessário.
Em abril, o Dnit conseguiu derrubar na Justiça a liminar obtida pelo MPF que impedia a continuação das obras e posteriormente apresentou uma análise de impacto ambiental. No entanto, pesquisadores e ambientalistas questionam a capacidade do governo de mitigar as consequências das obras.
O Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE), órgão de monitoramento do próprio governo, fez diversos estudos que apontam para os impactos ambientais do projeto. Um deles traz a projeção de que o desmatamento aumente em 1.200% no entorno com a retomada de obras na estrada.
Nesse cenário, a sobrevivência dos Katawixi está extremamente ameaçada, afirma Elias Bigio, coordenador da Operação Amazônia Nativa (Opan) e ex-coordenador geral de Índio Isolados e Recém-Contatados (CGIIRC) da Funai.
“Eles estão sob forte pressão de grilagem, de madeireiras e garimpos ilegais. E a violação ao território indígena culmina na morte e no extermínio dessa população”, afirma Bigio, que explica que grande parte dos indígenas isolados são sobreviventes de massacres de invasores do passado.
Na ação em que pedia a não paralisação das obras, o Dnit argumentou que obras na rodovia são de interesse púbico por se tratar da única ligação rodoviária de Rondônia com o Amazonas e Roraima.
Questionado sobra as críticas pela BBC News Brasil, o ministério da Infraestutura não respondeu até a publicação desta reportagem.
Torres na floresta
A presença dos indígenas isolados Piruichichi (Pirititi) na terra indígena Pirititi, em Roraima, é conhecida desde os anos 1980, a partir dos relatos dos Waimiri-Atroari, grupo com histórico de contato que também vive na região.
Os Pirititi são colocados em situação de extrema vulnerabilidade com o fim da vigência da portaria de restrição de uso e a passagem do Linhão do Tucuruí pela terra indígena, afirma Elias Bigio.
A primeira portaria foi decretada pela Funai em 2012 e vinha sendo renovada a cada três anos desde então. Neste ano, no entanto, a Funai renovou a portaria por apenas seis meses, tempo visto como insuficiente pelos indígenas e por pesquisadores.
“Seis meses é muito pouco. Não dá para fazer estudos, para ouvir a comunidade, para retirar invasores. Só beneficia os madeireiros ilegais e os grileiros”, afirma Antonio Oviedo, do ISA.
O MPF entrou com uma ação neste ano de 2021 com recomendações para a proteção do povo indígena isolado, incluindo o avanço do processo de demarcação definitiva da terra e ações de combate aos invasores.
O Linhão de Tucuruí é um linha de transmissão de energia elétrica de 1.800 km que pretende ligar alguns estados do norte ao sistema nacional de energia. Com o atual traçado, ela cortaria a terra indígena dos Waimiri-Atroari em 125 km.
Apesar da linha ser mais recente, tendo sido leiloada em 2008, explica Bigio, ela também é parte de um projeto para a região que é herança da ditadura militar.
A usina hidrelétrica de Tucuruí, que a linha pretende ligar ao sistema de energia nacional, foi construída em 1974 no Pará como parte de um projeto do governo militar de explorar reservas minerais na Amazônia, o que gerava demanda de grande produção de energia elétrica. Sua segunda etapa foi concluída somente em 2008, ano em que o Linhão foi leiloado.
Os impactos da construção da hidrelétrica estão entre os mais estudados no Brasil, com inúmeras pesquisas que relatam como ela afetou as comunidades ribeirinhas e indígenas no entorno. Além do desmatamento e invasões, a construção hidrelétrica ampliou a presença de mosquitos, trouxe inúmeras doenças, afetou a pesca (essencial para a sobrevivência dos indígenas e dos ribeirinhos) e gerou contaminação com mercúrio, resultado do garimpo trazido para a região.
Já o Linhão de Tucuruí se tornou foco de conflitos ao passar por inúmeras terras públicas e particulares, incluindo áreas de reserva. A construção do linhão exige o desmatamento de certas áreas para a construção de torres de até 300 metros, além de trazer outros impactos apontados pelo próprio Ibama, como poluição, aumento do fluxo de pessoas e de doenças e novas frentes de desmatamento.
O trecho que passa pela terra indígena Pirititi estava com as obras paradas por causa da possibilidade de impacto socioambientais e aguardava aprovação do Ibama. Com as novas direções apontadas pelo governo Bolsonaro, no entanto, o Ibama e a Funai autorizaram a construção do trecho.
“É surpreendente que a Funai esteja fazendo isso”, afirma Elias Bigio. “O que deveria ter sido feito era fazer uma consulta técnica, para que a comunidade indígena próxima, com históricos de contato, pudesse participar. Eles não foram ouvidos e a autorização não segue as diretrizes da própria instituição. Há uma portaria da Funai com mais 80 anos que proíbe empreendimentos em terra de indígenas isolados.”
O presidente Jair Bolsonaro já defendeu publicamente que os povos indígenas — 1,1 milhão do total de 213 milhões da população brasileira — deveriam ter suas terras reduzidas. É uma postura que Bolsonaro tem desde antes de se tornar presidente. Em 1998, quando ainda era deputado federal, ele disse ao jornal Correio Braziliense que era uma “vergonha” as forças militares brasileiras não serem “tão eficientes como as norte-americanas” em “exterminar povos indígenas”.
O ministério das Minas e Energia não respondeu as perguntas feitas pela BBC News Brasil sobre a passagem da linha na terra indígena.
Harlison Araújo, assessor jurídico da Associação Comunidade Waimiri Atroari, afirma que os indígenas da comunidade apresentaram uma proposta de compensação ambiental sobre a qual o governo federal ainda não se manifestou. Eles lutam há anos para serem ouvidos pelo governo sobre as obras.
“Se o governo não considerar a proposta, não tem acordo”, diz Araújo. “Tratam como se fosse culpa dos índios o projeto não ir para frente, mas foi o governo que não trabalhou direito.”
Araújo lembra que não houve consulta prévia à população antes do leilão e que o governo não considerou os 27 impactos irreversíveis, apontados pelo próprio Ibama e pela Funai, e os outros 10 que são apenas mitigáveis.
“[Tanto o Linhão quanto a pavimentação da BE-319] são empreendimentos que se colocam como se os índios fossem um empecilho, como se a vida das pessoas fosse apenas um transtorno no meio do caminho”, diz Elias Bigio. “Isso quando é perfeitamente possível se estudar alternativas que respeitem os povos locais e garantam sua proteção.”
Fonte: BBC