Além dos milhares de turistas que se dirigem anualmente à ilha, parece que tem alguém que encontrou também em Fernando de Noronha (PE) um paraíso: o peixe-leão. Mas diferente dos visitantes que movimentam o turismo ali, este animal não é bem-vindo.
O peixe, originário do Indo-Pacífico, se espalhou nas últimas três décadas pela costa leste dos Estados Unidos, chegando ao Caribe e, em dezembro de 2020, foi registrado pela primeira vez em Noronha — depois de outros avistamentos pontuais no Brasil (leia mais abaixo). Segundo já escreveram dois cientistas da Universidade Estadual de Oregon (EUA), a presença deste peixe em locais do qual não é nativo tem potencial de ser uma das invasões marinhas mais prejudiciais ecologicamente já observada.
Tamanha ameaça tem mobilizado Fernando de Noronha, onde operações de buscas pelo peixe-leão têm acontecido quinzenalmente, em uma parceria do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) com empresas de mergulho locais. No último dia 23, nenhum animal foi encontrado; no início de fevereiro, no dia 8, quatro peixes-leão foram achados.
Segundo Ricardo Araújo, coordernador de pesquisa, monitoramento e manejo do ICMBio Noronha, estas buscas têm sido como uma “corrida de gato e rato”.
“O mar não tem barreira, então o bicho pode ir para qualquer lugar que ele quiser, e nós somos poucos”, explica Araújo, que tem coordenado as operações com empresas de mergulho locais.
“O melhor seria que ele não tivesse aparecido, mas agora que chegou, é praticamente impossível que não se estabeleça. Noronha é um local equilibrado, com uma fauna marinha muito grande, a água é quente”, diz o pesquisador, apontando que o peixe-leão não tem predadores no arquipélago (cuja ilha principal é homônima, Fernando de Noronha) e, por outro lado, tem alimentos em plenitude, principalmente peixes pequenos.
“Ou seja, ele tem todas todas as condições favoráveis para se desenvolver aqui. Temos encontrado animais super sadios. Ele já se estabeleceu e deve estar se reproduzindo.”
Depois do primeiro avistamento de um peixe-leão, no final de 2020, não houve mais avistamentos registrados no primeiro semestre de 2021. E então, a partir de julho de 2021, todo mês houve avistamentos. Até 24 de fevereiro deste ano, foram registrados no total 62 peixes avistados e 38 coletados.
Os peixes encontrados são capturados, mortos e congelados até serem encaminhados para estudo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e na Universidade Federal Fluminense (UFF) — parte deles seguem para os Estados Unidos, onde estão sendo feitas análises genéticas com o objetivo de esclarecer a origem dos animais. Os resultados destas análises ainda não estão disponíveis, mas elas ajudarão, entre outras coisas, a responder precisamente qual espécie está vivendo em Noronha, já que são duas que costumam invadir habitats e são chamadas de peixe-leão: Pterois miles e Pterois volitans.
A cada peixe capturado, são registradas informações sobre local em que foi encontrado e seu comprimento, que tem aumentado com o passar dos meses — passando dos 18 cm em novembro de 2021. Também há previsão de análise do que está no estômago dos animais, para que se possa entender exatamente que espécies ele está predando.
Mobilização de mergulhadores
Embora haja sinais de que o peixe-leão está gostando bastante de Fernando de Noronha, o arquipélago tem uma característica que tem favorecido aqueles que estão participando das buscas pelo animal.
Por ser um dos principais destinos turísticos no Brasil, inclusive no segmento do mergulho, Noronha tem “sempre olhos” debaixo d’água — os dos mergulhadores — capazes de eventualmente encontrar um peixe-leão, explica Ricardo Araújo.
“O que tem funcionado muito realmente é essa relação com as empresas de mergulho, basicamente é com eles que a gente tem feito o manejo”, diz o pesquisador do ICMBio.
“A empresa sai para fazer um mergulho com o visitante, e no meio dessa atividade, o mergulhador que está trabalhando avista o peixe-leão. Se já está com o equipamento, ele mesmo pode recolher esse animal. Se não, ele relata ao ICMBio.”
O órgão ambiental já fez capacitações com quatro turmas de mergulhadores para prepará-los para o avistamento e captura destes peixes. Também foi solicitado que os instrutores de mergulho mostrem fotos do peixe aos turistas e os orientem como proceder ao avistar um — além de tudo, o peixe-leão tem espinhos venenosos pelo corpo, que podem causar muita dor e eventualmente reações alérgicas graves.
Aliás, já houve três informes de turistas do que seriam avistamentos de peixes-leões, mas segundo Araújo, eles não procediam.
Os avistamentos costumam acontecer durante a prática do mergulho autônomo (com equipamento autônomo de respiração) e longe da areia, mais ao fundo. Por isso, quem tem ajudado a encontrar peixes-leão são mergulhadores muito experientes que conhecem bem as espécies da ilha e vão até as faixas de profundidade em que os animais invasores têm circulado. Alguns dos mergulhadores e a equipe do ICMBio têm um grupo no WhatsApp para trocar informações sobre avistamentos.
Mergulhador e proprietário da escola de mergulho Sea Paradise, Fernando Rodrigues conta que sua equipe foi a primeira a avistar o peixe-leão em Noronha, em dezembro de 2020 em um ponto de mergulho chamado Laje dos Cabos.
“A gente filmou, entrou em contato com diversos cientistas e com o ICMBio, e eles nos orientaram como deveria fazer dali pra frente”, lembra Rodrigues, acrescentando que ele e sua equipe já trabalham há algum tempo com cientistas em suas expedições.
“Hoje, a gente já tem avistamentos de peixe-leão a 85m, 50m de profundidade… E a gente já chegou a ver oito peixes-leão em um único mergulho. Então, hoje, a gente está só confirmando o que especialistas falam: que é um peixe que se reproduz muito rápido e tem uma capacidade de adaptação muito grande. Aqui em Noronha, ele encontrou um paraíso.”
Além dos avistamentos durante as atividades cotidianas com turistas, há as operações periódicas em que as empresas de mergulho se revezam cedendo seus barcos e equipamentos para buscar por peixes-leão. Além da Sea Paradise, a empresa Noronha Diver é uma delas.
“Desde o começo, as empresas se colocaram à disposição do ICMBio. Lógico que é uma filantropia, mas todo mundo em Noronha vive do turismo e do mar. O mergulho é a principal atividade turística de Fernando de Noronha, então nós temos que preservar o mar, porque é disso que a gente vive. Não tem nenhum sentido a gente não fazer isso”, explica Paulo Ferreira, diretor da Noronha Diver e mergulhador desde 1986.
Peixes soltos de aquários
O biólogo brasileiro Paulo Bertuol sabe bem da importância de envolver mergulhadores no controle do peixe-leão.
Ele mora desde 2012 em Bonaire, uma pequena ilha no Caribe em que o peixe-leão foi capturado pela primeira vez em 2009, segundo conta. Embora ainda não para se estabelecer definitivamente, Bertuol já foi em 2010 fazer uma consultoria na ilha caribenha para tentar controlar o animal.
Hoje, ele é biólogo sênior da fundação Stinapa, que administra os parques terrestre e marinho de Bonaire. No ano passado, ele esteve em Fernando de Noronha, onde fez uma apresentação e treinamentos com a equipe do ICMBio e mergulhadores para fazer o controle do peixe-leão.
“Peguei a situação (do peixe-leão em Bonaire) bem no começo, então essa experiência foi extremamente válida até para compartilhar com Fernando de Noronha, porque eu peguei mais ou menos o estágio (da invasão) que ocorre lá. Levei algumas ideias para eles e estimulei o ICMBio o máximo possível a compartilhar e utilizar os recursos da indústria do mergulho, porque é a melhor maneira de tentar se controlar o peixe-leão. É o que fez de Bonaire um caso de sucesso”, diz Bertuol, apontando que nos últimos anos a ilha em que trabalha manteve a densidade de peixes-leão por hectare “relativamente estável”.
O biólogo, graduado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre em ciência e tecnologia ambiental pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), explica que espécies exóticas são aquelas que não são nativas de um lugar — e estas se tornam invasoras no momento em que causam um desequilíbrio e danos à fauna local.
Quando perguntado pela reportagem se é uma lenda o relato de que os peixes-leão se tornaram invasores depois de serem despejados do cativeiro em aquários para o mar, Bertuol diz que esta versão é verdadeira.
“Possivelmente são dois fatores principais (que explicam o aparecimento do peixe-leão como invasor). Tem uma corrente que diz que pode ter sido a partir de um aquarium nos EUA em que os tanques quebraram depois de um furacão, e os peixes escaparam. E tem outra corrente que diz que as pessoas tinham o peixe-leão como pet, de repente ele cresce e começa a comer outros peixes do aquário, e as pessoas soltam no mar. É interessante porque essa é uma história recorrente em várias invasões de diferentes espécies: a pessoa tem um pet exótico e de repente, por qualquer motivo, solta na natureza.”
Segundo o especialista, há ainda uma terceria via para a propagação: a água de lastro de navios e plataformas que acabam carregando águas com larvas dos peixes.
Para ele, possivelmente os animais que chegaram a Noronha têm origem em larvas e peixes-leão que, com as correntes marítimas, desceram do Caribe para a América do Sul, com alguma passagem pelo rio Amazonas (o animal tem a capacidade de suportar por algum tempo em água doce). Já foram encontrados pontualmente alguns peixes-leão na foz do rio Amazonas no Pará, assim como em Arraial do Cabo (RJ) — mas em nenhum destes lugares ele se estabeleceu firmemente como em Noronha.
“Eu acho que em algum momento vai chegar na costa do Brasil inteira, é algo que não tem muito como evitar”, lamenta Bertuol.
Uma futura iguaria para Noronha?
Ao menos, o Brasil terá exemplos para se inspirar.
Em Bonaire, uma “estratégia importantíssima” para o controle do animal foi, segundo Paulo Bertuol, o estímulo ao consumo do peixe-leão — que ele diz ser “delicioso”. Foram organizados eventos para a população local provar o peixe, e chefes de cozinha foram estimulados a incluí-lo em suas receitas.
“Hoje, Bonaire é a ilha no Caribe que paga mais caro pelo quilo do peixe-leão. Só cortando os espinhos dele e vendendo o peixe sem as vísceras, mas com a cabeça, os restaurantes pagam US$ 15 (cerca de R$ 77) o quilo; e se fizer filé, eles pagam US$ 50 (R$ 260) o quilo”, conta o biólogo.
Lá, também são realizadas as lionfish derbies, competições para capturar o peixe-leão, enquanto as escolas de mergulho têm cursos que ensinam a caçar o animal.
Ricardo Araújo, do ICMBio, diz que ainda está distante o cenário em que o peixe possa se tornar uma iguaria também em Noronha, porque o número de animais encontrados ainda é bem insuficiente para isso. Mas ele reconhece que pode haver uma multiplicação do peixe e, nesse cenário, “aliar empresários e consumidores” será importante.
“Por enquanto, tem muito mais dúvidas do que respostas”, diz o analista ambiental do ICMBio. “Mas sabemos que a erradicação será praticamente impossível. Já o controle (dos peixes-leão) é difícil, mas possível.”
Fonte: BBC