Climatologista Carlos Nobre afirma não haver dúvidas de que mudanças climáticas tornam eventos como o que devastou o litoral paulista mais frequentes. Sirenes de alerta teriam ajudado a evitar mortes, aponta.
Em São Sebastião, cidade turística aos pés da Serra do Mar, no litoral norte paulista, a busca por desaparecidos não tem prazo para acabar. Defesa Civil e voluntários trabalham sob condições difíceis nos bairros mais atingidos. As chuvas intensas registradas nas primeiras horas do último domingo (19/02) deixaram ao menos 46 mortos. Centenas estão desabrigados.
O maior volume de chuva registrado na região em 24 horas – 683 milímetros, no município de Bertioga – é o novo recorde no sistema meteorológico brasileiro. Antes dele, no ano passado, 534,4 milímetros haviam sido registrados na tragédia de Petrópolis, que deixou 241 mortos há um ano. Em São Sebastião, foram 627 mm em 24 horas no último fim de semana.
Carlos Nobre, climatologista aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que esteve envolvido na criação do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), em 2011, reforça o alerta que a ciência vem dando há anos: eventos climáticos extremos desse tipo estão ficando mais frequentes com as mudanças climáticas.
“No planeta inteiro, todos esses fenômenos extremos estão acontecendo com muito mais frequência, e a ciência não deixa nenhuma dúvida de que eles não estariam acontecendo com essa frequência se o planeta não estivesse sofrendo o aquecimento global”, afirma Nobre em entrevista à DW.
Segundo o climatologista, modelos matemáticos existentes mundo afora não conseguem capturar recordes de chuva como o do litoral de São Paulo, mas apenas reproduzir eventos extremos das últimas décadas.
“Essas chuvas no litoral norte paulista foram três vezes maiores do que os modelos de previsão indicaram”, detalha Nobre. “É um desafio muito grande para a ciência ver como fazer com que os modelos climáticos consigam prever esses recordes que estão acontecendo todos os anos em todo o planeta.”
Na região atingida no litoral paulista, não há sistema de sirene que comunique o risco à população e que indique o momento de abandonar o local. “Quando o alerta mais grave foi emitido, por volta da meia-noite de domingo, se houvesse tocado alguma sirene, as pessoas poderiam ter saído de casa. Naquele horário ainda não tinham acontecido deslizamentos”, lamenta Nobre.
DW: Por que as chuvas registradas no litoral norte de São Paulo na madrugada do último domingo, que deixaram ao menos 46 mortos, são consideradas um evento climático extremo?
Carlos Nobre: Trata-se de um evento extremo porque, de fato, foi um recorde de chuvas nos municípios de Bertioga e São Sebastião. Foram mais de 600 milímetros que caíram num espaço de nove horas. É um recorde registrado pelos milhares de pluviômetros do Cemaden em dez anos, esse é o recorde de chuva em menos de 24 horas.
É um fenômeno extremo que foi previsto pelo Cemaden, que alertou todas as Defesas Civis do estado de São Paulo. Nunca tinha acontecido um volume de chuva tão alto num espaço de tempo tão curto. Em alguns momentos, como às 2h da madrugada de sábado para domingo, chegou a chover 120 mm em uma hora. É um recorde no sistema meteorológico brasileiro.
O quanto se pode relacionar o que aconteceu com as mudanças climáticas?
Hoje já existem vários sistemas no mundo – e seria importante ter um desses no Brasil – que procuram fazer o que se chama de atribuição de causa. Um evento extremo como esse poderia ser absolutamente natural, que não tem nada a ver com o aquecimento global, ou só pode ser explicado em função do aquecimento?
Esses estudos fazem simulações com modelos matemáticos do sistema meteorológico. Por exemplo: eles fazem uma simulação de como seria o clima sem nenhuma influência do aumento da concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera. Então o modelo mostra como aconteceriam eventos extremos como esse do litoral paulista em todo o mundo, ou seja, naturais, associados com o clima do planeta.
Os cientistas fazem esse mesmo tipo de simulação adicionando o aumento da concentração dos gases de efeito estufa, que é o que aconteceu no planeta nos últimos 100 anos. E aí a simulação mostra o quanto os eventos extremos aumentariam nesse cenário. É uma maneira de se atribuir causa.
Isso foi feito após a chuva que causou mais de 120 mortes em Recife em 2022. Imediatamente, um grupo da Inglaterra fez essa simulação e mostrou que a intensidade e frequência daquele tipo de evento extremo se deve ao aquecimento global. Não aconteceria se o planeta não estivesse se aquecendo.
Temos que esperar esses grupos que têm capacidade de fazer esses estudos. Tenho certeza que, em poucas semanas, farão isso e dirão se o que aconteceu pode ser atribuído a uma causa natural ou não.
Pela minha experiência, eu acho que um evento que bate o recorde de chuva em 24 horas deve ter muito a ver com o aquecimento global. Muito desse volume imenso de chuva que aconteceu no litoral paulista tem a ver com o fato de que a temperatura superficial do oceano estava mais alta, a cerca de 27 °C. Isso faz o oceano evaporar uma quantidade imensa de água. O sistema meteorológico que ficou sobre o oceano, perto da costa, uma baixa de pressão, jogou essa imensa quantidade de vapor que evaporou do oceano para dentro da costa. O vapor subiu a Serra do Mar, condensou e choveu muito.
No planeta inteiro, todos esses fenômenos extremos estão acontecendo com muito mais frequência, e a ciência não deixa nenhuma dúvida de que eles não estariam acontecendo com essa frequência se o planeta não estivesse sofrendo o aquecimento global.
Os modelos usados no Brasil para previsão do tempo dão conta de prever esse volume de água que caiu, mais de 600 milímetros num dia numa localidade?
Os modelos matemáticos de previsão de tempo são normalmente calibrados para representar o fenômeno físico que aconteceu ao longo dos últimos 30 anos. É muito difícil prever que esses modelos vão conseguir antever esses recordes. Globalmente falando, eles não conseguem prever esses recordes porque são calibrados para responder ao que aconteceu nas últimas décadas.
Essas chuvas no litoral norte paulista foram três vezes maiores do que os modelos de previsão indicaram. Mas o Cemaden fez um alerta de altíssimo risco: os próprios modelos já estavam indicando mais de 200 mm, e esse volume de chuva em poucas horas causa desastre em qualquer lugar do mundo. Mas caíram 600 mm.
E isso é uma coisa que acontece em todo o planeta. Quando há um recorde de chuva, os modelos matemáticos não conseguem capturar o recorde, mas reproduzir os eventos extremos que têm acontecido nos últimos 30 anos.
Então é um desafio muito grande para a ciência ver como fazer com que os modelos climáticos consigam prever esses recordes que estão acontecendo todos os anos em todo o planeta.
O próprio Cemaden foi criado num contexto semelhante de tragédia, em 2011. O quanto ele ajudou a diminuir o número de mortes por desastres naturais?
Ele foi criado em 2011, depois do evento extremo na região serrana do Rio, em Petrópolis e Teresópolis, que teve o maior número de mortes registrado por um evento climático na história do Brasil. Morreram mais de 900 pessoas naquele janeiro.
A então presidente, Dilma Rousseff, que havia acabado de assumir o cargo, visitou os prefeitos e soube que não havia nenhum sistema de alerta para prevenir aquelas mortes. Eu havia, um pouco antes, apresentado ao ministro Mercadante, que estava à frente da Ciência e Tecnologia, uma proposta que defendia há muitos anos, que era criar uma capacidade de o Brasil de fazer alerta de desastres naturais.
O Inpe já fazia previsões de qualidade das condições do tempo, mas aquilo não chegava à Defesa Civil. Aquela chuva que aconteceu na região serrana havia sido prevista com três dias de antecedência pelo Inpe.
O Cemaden foi criado então. Ele pega as previsões e transforma em risco de desastre de inundações, deslizamentos, enxurradas, secas, incêndios de grandes proporções. Hoje, ele monitora 1.038 municípios e calculou que mais de 10 milhões de brasileiros vivem em áreas de risco de desastres. Mais de 2 milhões de brasileiros vivem em áreas de alto risco.
A gente teve lá atrás, em 2011, 900 mortos. Depois, por muitos anos, esse número baixou para menos de 100. Os municípios que receberam alertas do Cemaden conseguiram reduzir o número de mortes. A região serrana do Rio, desde então, tem sirenes. Quando o alerta chega, a Defesa Civil aciona as sirenes e a população sabe que tem que sair de casa e aonde deve ir.
Infelizmente, em 2022 esse número explodiu, foram mais de 500 pessoas mortas por desastres. Do fim de 2021 até agora, ou seja, em 14 meses, tivemos o recorde de desastres naturais na história do Brasil. Precisamos entender realmente o porquê, se estão acontecendo mais eventos do tipo ou se a comunicação do alerta de risco está sendo efetiva.
Nenhuma das cidades do litoral de São Paulo tem sirene. Mais de 40 mil áreas foram mapeadas pelo Cemaden no país como de risco, então seria muito importante que todos esses locais tivessem sistema de sirene.
Quando o alerta mais grave foi emitido, por volta da meia-noite de domingo, se houvesse tocado alguma sirene, as pessoas poderiam ter saído de casa. Naquele horário ainda não tinham acontecido deslizamentos.
Instalar sirenes é para ontem, é medida de curto prazo. A médio prazo, tem que tirar os 2 milhões de brasileiros que moram em áreas de altíssimo risco. Tem pessoas que moram em locais com declividade acima de 25 graus, isso é muito perigoso, ninguém deveria morar numa encosta assim.
Isso leva tempo. Tem que criar Minha Casa, Minha Vida, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou em São Sebastião, mas tem que ser minha casa sustentável, minha vida sustentável. As pessoas não podem voltar para essas áreas de altíssimo risco. É um enorme desafio.
A maioria das pessoas voltou para onde morava depois do desastre de 2011 na região serrana do Rio. Isso não poderia ter acontecido.
Existe também o perigo representado pelos eventos climáticos extremos que não aparecem nas previsões…
O Cemaden consegue fazer alerta com dias de antecedência para a maioria dos casos associados a eventos meteorológicos previsíveis, como o que ocorreu no litoral paulista agora. Foi enviado, na última sexta-feira, um documento técnico detalhado para todas as Defesas Civis.
O evento extremo de 15 de fevereiro de 2022 em Petrópolis, que matou mais de 200 pessoas, foi um evento raro e não foi previsto pelos modelos matemáticos. Isso acontece em todo o mundo.
Aquele evento se desenvolveu de uma maneira muito rápida e gerou grande quantidade de umidade que saiu do oceano, subiu a serra de Petrópolis e causou 230 mm de chuva em três horas e aquelas horríveis inundações. Naquele evento, a Defesa Civil não recebeu o alerta com antecedência, e por isso morreram tantas pessoas.
Nos Estados Unidos, os modelos não captam tornados. Eles mostram que uma tempestade poderia gerar um tornado, mas depois que o tornado é gerado, os modelos não conseguem prever a trajetória e duração. Mas lá existem inúmeros sistemas de monitoramento que, quando detectam o tornado se formando, avisam toda a população possivelmente atingida. E todos podem se abrigar e sobreviver.
Em 2021, houve aquela inundação no Vale do Ahr, na Alemanha. Foi uma enorme analogia com o que aconteceu aqui no litoral paulista agora, porque os modelos mais avançados do mundo não previram aquele evento. Previram que haveria muita chuva, mas o volume foi quatro vezes maior que o previsto [total de 150 mm]. Mesmo num país super desenvolvido como a Alemanha, aquela chuva, com aquela intensidade e naquela duração, causou um desastre que matou tantas pessoas.
A maioria dos eventos extremos no Brasil são previsíveis. Então a população tem que ser capacitada para responder a isso, principalmente com o aumento do risco que as mudanças climáticas trazem. Isso precisa se tornar uma política que o governo tem que desenvolver.
Fonte: Deutsche Welle