“Precisamos colocar mais dinheiro no combate à crise climática assim como colocamos na crise da Ucrânia”.
A afirmação é do enviado especial dos Estados Unidos para o clima, John Kerry, em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, na terça-feira (28).
Ele reconheceu que tem sido mais fácil convencer o Congresso americano a liberar recursos para a guerra na Ucrânia do que para enfrentar a crise climática, que ele próprio classifica como uma “ameaça existencial” à humanidade.
A admissão de dificuldades para obter mais recursos para o combate às mudanças climáticas resume, de certa maneira, a tônica de sua passagem por Brasília, nesta semana.
Kerry chegou ao Brasil no domingo (26), reuniu-se com o vice-presidente, Geraldo Alckmin, e com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.
Sua passagem pelo Brasil foi marcada pela expectativa de um possível anúncio de mais recursos para o Fundo Amazônia, que financia medidas para o combate ao desmatamento.
No início do mês, os americanos se comprometeram a fazer uma doação ao Fundo Amazônia. Oficialmente, o valor da doação ainda não foi divulgado, mas fontes do governo americano disseram à BBC News Brasil que o montante chegaria a US$ 50 milhões.
Apesar de ser a primeira contribuição dos Estados Unidos ao fundo, o valor é considerado baixo por ambientalistas que levam em conta o tamanho da economia americana e o fato de o país ser o segundo maior emissor de gases do efeito estufa, atrás da China.
A expectativa por mais dinheiro, porém, não se concretizou e um segundo anúncio de recursos não veio.
Kerry disse que a liberação de mais dinheiro depende da aprovação pelo Congresso americano. O cenário é ainda mais difícil agora, uma vez que os democratas perderam a maioria na Câmara dos Representantes, casa legislativa que define o orçamento do governo.
A frustração em torno de uma viagem sem anúncios concretos reflete, em alguma medida, o tamanho do desafio dado pelo presidente Joe Biden a Kerry, dono de um dos currículos mais profícuos da política americana.
Kerry costuma comparar sua vida à do personagem Forrest Gump, interpretado no cinema por Tom Hanks e famoso por suas passagens por momentos críticos da histórica recente dos EUA e do mundo.
Ele lutou na Guerra do Vietnã e depois virou um ativista contra o conflito. Depois, abraçou a vida política e foi senador por 28 anos pelo Estado de Massachusetts.
Em 2004, disputou a Presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata, mas perdeu para o republicano George W. Bush.
Em 2013, voltou à cena ao assumir o Departamento de Estado, durante o segundo mandato de Barack Obama.
Ficou no cargo até 2017. Em 2021, a convite de Joe Biden, assumiu o cargo de enviado especial para o clima, tema que está entre as prioridades do democrata.
Sua missão tem sido convencer a comunidade internacional e o público interno sobre a urgência para a adoção de medidas para combater os efeitos do aquecimento global. Até agora, porém, sua atuação divide opiniões.
Apesar de tentar convencer países e empresas a aplicarem dinheiro em projetos que diminuam as emissões de gases do efeito estufa, Kerry tem precisado lidar com as dificuldades domésticas em conseguir os recursos prometidos por seu chefe, o presidente Biden.
Leia, a seguir, a entrevista de Kerry à BBC News Brasil.
BBC News Brasil – Em 2020, durante a corrida presidencial, o então candidato Joe Biden prometeu US$ 20 bilhões para países em desenvolvimento como o Brasil para reduzir a velocidade de destruição da região amazônica. Alguns analistas, no entanto, têm dito que este governo tem prometido muito e entregado pouco. Por que o seu governo se comprometeu a doar apenas US$ 50 milhões para o Fundo Amazônia até agora?
John Kerry – Os US$ 50 milhões que o presidente (Biden) anunciou quando a visita ocorreu em Washington foram simplesmente um adiantamento dos fundos disponíveis. O presidente queria dizer: “Estou falando sério sobre estar envolvido no Fundo Amazônia”.
Mas, obviamente, entendemos muito bem que o presidente Biden entende que são necessários bilhões de dólares para poder fazer esse trabalho. Quando ele concorreu à Presidência, deixou claro que esperava poder conseguir US$ 20 bilhões ou algo assim para fazer isso.
Em nosso sistema de governo, como aqui no Brasil, é preciso ser capaz de obter a aprovação do Congresso. E agora há projetos (sobre o assunto) no Congresso.
Dois senadores, um republicano e outro democrata, propuseram US$ 4 bilhões. Na Câmara, houve uma proposta de US$ 9 bilhões. E isso terá que passar pelo processo legislativo. É uma luta e não há certeza de aprovação.
Então, o presidente (Biden) também está empenhado em reformar os bancos de desenvolvimento multilaterais para que possamos obter mais dinheiro dessa fonte. Ele também me pediu para ajudar a organizar com entidades filantrópicas, o setor privado e o mercado voluntário de carbono para que tenhamos a capacidade de conseguir mais dinheiro.
Entendemos muito bem que é crucial ser capaz de levantar fundos, obter o dinheiro. É assim que ajudaremos o Brasil. É uma das formas. Não é o único caminho.
Faremos transferência de tecnologia. Trabalharemos na assistência. Também vamos procurar maneiras pelas quais possamos cooperar na aplicação da lei, nos esforços para reduzir a atividade criminosa que vem impactando a Amazônia.
Ninguém deveria olhar para isso e dizer: “Oh! Os Estados Unidos estão limitados a uma contribuição de US$ 50 milhões de dólares”. Nosso presidente pretende lutar totalmente pelo dinheiro necessário para poder realizar essa tarefa.
BBC News Brasil – Mas existe um plano para os Estados Unidos doarem mais dinheiro para o Brasil ou para o Fundo Amazônia em um futuro próximo?
Kerry – Sim. Vamos juntar o dinheiro que achamos necessário e acertamos com o Brasil. Não estamos fazendo isso unilateralmente. Esse é o conjunto de escolhas do Brasil. Esta é a floresta do Brasil. Essa é uma decisão do Brasil. Mas vamos trabalhar o mais próximo possível do Brasil e vamos brigar pelo dinheiro que acharmos necessário para tentar fazer isso.
E, obviamente, isso requer contribuições muito maiores para o Fundo Amazônia e, além do Fundo Amazônia, estamos trabalhando para trazer entidades filantrópicas e outros países e empresas para a mesa e usar o mercado para ajudar a fornecer parte do financiamento de que precisamos.
BBC News Brasil – O senhor acabou de descrever a dificuldade política para que alguns projetos sejam aprovados nos Estados Unidos. Essa é uma dificuldade doméstica. Como os Estados Unidos querem convencer a comunidade internacional a se envolver na luta contra as mudanças climáticas se, internamente, vocês não conseguem convencer o Congresso americano a liberar esse recurso para países em desenvolvimento?
Kerry – Acabei de explicar que esta não é a única fonte de dinheiro. Os Estados Unidos e a comunidade internacional frequentemente mobilizam dinheiro e você pode mobilizar dinheiro de outras fontes. Se você não conseguir que o Congresso aprove (a liberação de recursos), você ainda tem maneiras de levantar fundos no mercado, no setor privado, na filantropia e nos bancos multilaterais de desenvolvimento.
O que é importante é que o presidente dos Estados Unidos é comprometido com essa questão que é vital não apenas para os Estados Unidos, mas para o mundo inteiro, e principalmente para o povo do Brasil. Esta é a floresta do Brasil. Este é o patrimônio do Brasil.
E se o Brasil for tomar a decisão de não deixar seu pessoal cortar toras ou cultivar em uma área específica ou ser capaz de minerar ouro ilegalmente ou qualquer outra coisa… se o Brasil se posicionar e disser “estamos preparados para proteger esta floresta, mas precisamos da sua ajuda”, teremos a obrigação de entrar em ação e fazer a nossa parte.
Eu garanto a você que há muitos membros do Congresso dos Estados Unidos e muitas pessoas nos Estados Unidos totalmente preparadas para encontrar maneiras de tentar ajudar.
BBC News Brasil – Há uma grande quantidade de pessoas no Brasil que é contra a a atuação internacional para preservar a Amazônia. Eles temem algum tipo de “internacionalização da Amazônia”. Como o senhor responderia a essa crítica?
Kerry – Precisamos fazer o que o povo do Brasil quer que façamos e não o que queremos fazer. Este é um importante reconhecimento da soberania do Brasil. Cabe ao Brasil decidir como eles acham que a cooperação pode ocorrer da melhor maneira. Eu vim aqui para ouvir. Não vim para dizer às pessoas o que elas têm que fazer, mas para ouvir pessoas como Marina Silva (ministra do Meio Ambiente), que trabalhou nisso por anos, que entende perfeitamente como é complicado.
E tivemos reuniões muito construtivas montando um grupo de trabalho com uma série de áreas-alvo, inclusive o desmatamento. Mas existem outros biomas que também precisam de proteção no Brasil e pretendemos trabalhar com os órgãos competentes do Brasil para ser uma das entidades cooperativas, juntamente com outros países do mundo que queiram ser apoiados.
Por que isso é importante? Porque não há como o mundo manter a elevação da temperatura da Terra em 1,5º C, que é o que precisamos fazer para evitar as piores consequências da crise climática, sem trabalharmos juntos para proteger vários ativos ao redor do mundo e da floresta tropical.
A Amazônia é um desses ativos. Mas é o Brasil que está decidindo que quer protegê-lo. Eles precisam de ajuda para fazer isso. Temos que tomar a decisão de que estamos preparados para ajudar e vamos ajudar. E é por isso que estou lutando. É por isso que o presidente Biden está lutando. E, obviamente, temos que cumprir nossa palavra.
BBC News Brasil – O senhor frequentemente diz que a mudança climática é uma ameaça existencial para a humanidade. Mas os números mostram que o governo dos Estados Unidos liberou aproximadamente US$ 46 bilhões para a guerra na Ucrânia, recentemente. Por outro lado, não vimos o mesmo ritmo em termos de liberação de dinheiro para o combate à mudança climática. Por que é tão aparentemente mais fácil convencer o Congresso dos Estados Unidos a liberar dinheiro para uma guerra e não para o combate às mudanças climáticas?
Kerry – Esta é uma pergunta muito boa e muito justa. Em primeiro lugar, o presidente colocou mais dinheiro nisso. Ele colocou US$ 12 bilhões na mesa para um programa de adaptação de emergência chamado Prepare. Ele colocou vários bilhões de dólares na mesa para ajudar na adaptação (às mudanças climáticas). Então, estamos fazendo mais do que apenas lidar com a Floresta Amazônica, mas é (uma ameaça) existencial.
Mas a luta na Ucrânia também. A (guerra na) Ucrânia é uma luta hoje para manter o acordo global que as pessoas fizeram após a Segunda Guerra Mundial, de que respeitaremos as fronteiras uns dos outros, de que viveremos de acordo com o direito internacional, respeitaremos o estado de direito.
E o desafio com a perda de vidas na Ucrânia é muito agudo. E assim o presidente está defendendo a democracia, defendendo o estado de direito, defendendo a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), defendendo as Nações Unidas, defendendo o direito internacional. E isso é fundamental.
A crise climática, que é uma crise, vem crescendo significativamente no último ano. E muito mais pessoas agora estão entendendo que é uma crise imediata. E também existencial para muitas pessoas. Vocês acabaram de ter enchentes em São Paulo e, por favor, aceitem nossas condolências. Mas precisamos responder muito mais rápido. Precisamos colocar maiores somas de dinheiro na crise climática, assim como colocamos dinheiro na crise da Ucrânia.
Nós podemos fazer isso. É que algumas pessoas estão optando por não fazê-lo. E o presidente está ocupado, fazendo hora extra, tentando persuadir mais pessoas no Congresso e no mundo sobre a urgência de podermos lidar com duas ou três crises ao mesmo tempo. Digo três porque também ainda temos uma pandemia e temos o potencial de outra pandemia chegar.
BBC News Brasil – O senhor reconhece que tem sido mais fácil para essa administração convencer o Congresso a liberar dinheiro para a guerra em vez de liberar dinheiro para combater as mudanças climáticas?
Kerry – Tem sido mais fácil. E eu me perguntava sobre o motivo disso. Eu e o presidente Biden, em particular, vemos a crise climática como imediata, mas nem todo mundo vê. E então eu fui ao Congresso e conversei com alguns de meus ex-colegas no Senado e na Câmara. Eu disse: “Por que vocês não veem isso? O que está acontecendo é algo imediato”.
E a resposta é que muitos dos nossos colegas veem isso como algo que vai acontecer no futuro: “A gente lida com isso”.
E, obviamente, nossa tarefa e a do presidente Biden, em particular, é persuadir as pessoas de que isso (o combate às mudanças climáticas) não é algo que você possa adiar. Não é algo que ainda está para acontecer. Está acontecendo agora em todo o mundo. E algumas das ameaças da crise climática são irreversíveis. Já ouvi cientistas me dizerem que podemos ter atingido cinco pontos críticos onde passamos do ponto de não-retorno.
Eles dizem que, possivelmente, o ponto de não-retorno já passou para o Mar de Bering, para os recifes de coral, para o permafrost (terrenos que se mantiveram congelados nos últimos milhares de anos), para o Ártico e a Antártida. E se isso for verdade, isso é realmente ameaçador para todos nós. Portanto, esperamos poder persuadir as pessoas da urgência de lidar com o que agora é uma crise real e presente.
Fonte: G1