REPORTAGEM ESPECIAL: Por que a proposta de divisão do Ibama tem que ser melhor discutida com a sociedade

Mônica Pinto / AmbienteBrasil

Mudanças podem ser proveitosas ou trágicas, a depender do que está em jogo. No caso da MP 366/07, que fragmenta o Ibama, já aprovada na Câmara Federal e à espera de votação no Senado, o bom senso indica que, no mínimo, o assunto deve ser melhor discutido com a sociedade.

O Governo Federal editou uma Medida Provisória – com um sentido de urgência que, no entender inclusive de parlamentares, não se justifica – para fazer profundas e perigosas modificações na gestão ambiental vigente no país. Não ouviu ninguém. O próprio Ibama, principal vítima da nova legislação, não foi consultado em nenhum momento. Especialistas em meio ambiente, representantes do terceiro setor e da academia não tiveram qualquer chance de aprimorar a proposta – ou sequer avaliar se ela valia a pena entrar em debate.

Agora, com uma falta de planejamento injustificável, pretende-se jogar dinheiro público pelo ralo. Para quem não se lembra, a estrutura do Ibama foi reformada pelo Decreto 5718, em março de 2006, quando se deu a criação de duas novas Diretorias no âmbito do órgão – a de Desenvolvimento Socioambiental – Disam – e a de Qualidade Ambiental – Diqua.

A partir disso, foram dedicados vários meses à discussão do Regimento Interno do Ibama, que foi aprovado pelo Conselho Gestor do órgão em 30 de novembro passado e ficou parado no MMA desde então. Paralelamente, estava sendo trabalhada a estrutura regimental das Superintendências do Ibama nos estados e dos Centros Especializados e a reestruturação das unidades descentralizadas – tudo isso resultando em tempo e dinheiro jogados fora, se a divisão do Instituto for aprovada.

No mesmo dia em que o governo lançou a Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e a ministra Marina Silva fez um discurso afirmando que “a Disam representava um marco no socioambientalismo do país”, saiu publicada no Diário Oficial da União a MP 366/07 que, entre quilos de propostas mal explicadas, acaba com a… Disam.

Parece uma comédia pastelão, mas é a realidade. Tudo isso ocorreu uma semana depois do Encontro Nacional desta mesma Disam – para “construção da sua identidade”, outra piada de mau gosto -, evento que envolveu mais de 200 servidores de um Ibama e de uma diretoria que não existiria mais dali a poucos dias. E tome-te diárias, passagens e tempo gastos inutilmente.

É de se perguntar se seria só por um acesso de má vontade – ou de ciuminho – que os servidores do Ibama estão colocando agora até seus vencimentos em risco, na tentativa de retirar da pauta a MP 366/07, agora já convertida em Projeto de Lei.

O que está em discussão, e essa discussão deveria ser profunda e sem açodamento, é a qualidade ambiental de um país onde notoriamente o poder econômico dá as cartas e, não raro, “rouba” no jogo.

O debate estaciona no foco “é bom ou não dividir o Ibama?” e deixa de contemplar o conteúdo da MP e os problemas envolvidos em sua efetiva implantação.

“Quanto à gestão, temos um grande retrocesso com relação ao que já estava sendo implementado por muitos setores do Ibama neste país afora. Grupos de trabalho interdiretorias para discutir licenciamento, gestão integrada de unidades de conservação de uso sustentável e proteção integral e tantas outras questões que poderíamos exemplificar. As mudanças que estão sendo propostas não têm respaldo na realidade e são inimplementáveis. Dividir o Ibama em Brasília é uma coisa; mas, nos estados, que têm carência principalmente de recursos e pessoal, predomina o apoio mútuo, o que se perde com a divisão”, diz uma servidora da cúpula do Ibama.

“O discurso da ministra quanto ao que precisa ser melhorado na gestão ambiental faz sentido, precisa melhorar mesmo. Mas as mudanças propostas com a MP não proporcionarão isso. E não dá para ficar fazendo remendos nela. Ela não serve, estamos mais avançados do que ela”, completa.

A MP não vem associada a mecanismos de estruturação do órgão e das unidades com relação à parte administrativa, de infra-estrutura e de recursos. Para tapar esse buraco, estão previstos Termos de Cooperação entre os dois Institutos – Chico Mendes e Ibama -, fato que o Ministério do Meio Ambiente admite em sua cartilha com explicações sobre a proposta.

A Associação dos Servidores do Ibama – Asibama – usa a lógica para rebater: “Qual a funcionalidade em se criar toda uma nova máquina administrativa se a mesma não será capaz de funcionar desvinculada do Ibama?”.

Um outro servidor aponta prejuízo à natureza de ordem prática: “a gestão das Unidades de Conservação será menos eficiente, já que não contará com servidores de outros setores; mais cara e mais sujeita a pressões políticas, com uma tendência à privatização (através de pseudo-oscips com um discurso de pseudo-participação – não aqui, obviamente, querendo tirar o mérito de oscips competentes e sérias)”.

É interessante lembrar que, no mesmo dia em que se anunciou oficialmente a criação do Instituto Chico Mendes, havia, dentre os assuntos em pauta no Conselho Nacional de Meio Ambiente – Conama -, uma proposição de Resolução para estabelecimento de Gestão Compartilhada de Unidades de Conservação – leia-se entregar a gestão de UCs a entidades do terceiro setor.

Questionamentos

Aliás, não procede a informação de que as ONGs ambientalistas apóiam a MP 366. Muitas entidades têm se manifestado radicalmente contrárias a sua aprovação. Cento e quarenta e três delas – a maioria de São Paulo – assinam uma moção “contra o esfacelamento do IBAMA; contra a condescendência para com o Palácio do Planalto praticada pela atual Ministra do Meio Ambiente Marina Silva; questionando ainda publicamente a lucidez de um governo que dá demonstrações de autoritarismo quando percebe suas motivações econômicas contrariadas, com medidas que agravam ainda mais a situação ambiental e fragilizam os mecanismos institucionais que são garantias para a sociedade brasileira”.

Outras 53 entidades, ligadas à Rede Mato-Grossense de Educação Ambiental – REMTEA -, assinam novo manifesto contrário à Medida Provisória 366/07, sob o argumento de que ela “prejudica a Educação Ambiental brasileira”.

“Reconhecemos, sem medo de errar, que para além de um órgão fiscalizador, os Núcleos de Educação Ambiental (NEA) do IBAMA têm sido aliados políticos de forte envergadura, posicionando-se sob as esteiras de uma plataforma de políticas públicas com seriedade, competência e em amplo processo dialógico com a sociedade civil”, diz o documento.

Em Minas Gerais, duas das mais aguerridas entidades – a Associação Mineira de Defesa do Ambiente – Amda – e o Projeto Manuelzão – divulgaram apoio ao movimento contra a MP 366. “Pela certeza de que as intenções do governo federal em relação ao Ibama não são direcionadas a realmente melhorar sua atuação e, sim, enfraquecer ainda mais a proteção do meio ambiente natural, a Amda manifesta apoio formal à ação de seus servidores”, declarou a superintendente executiva da entidade, Dalce Ricas.

O Projeto Manuelzão considera a proposta do Governo “um atropelo às leis ambientais do país, feito por pessoas submissas e de pouco conhecimento, facilmente manipuláveis”.

O coordenador geral do Projeto, Apolo Heringer Lisboa, classifica a luta do Ibama como “uma causa justa, não corporativista e exemplar”. “O PAC [Plano de Aceleração do Crescimento, do governo federal] quer destruir o lado bom do Ibama, não seus problemas e áreas que merecem críticas”, afirmou.

As vozes de muitas ONGs uniram-se também no apoio aos cerca de 150 servidores do Ibama que fizeram uma manifestação na abertura do V Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, no domingo 17 em Foz do Iguaçu (PR). O servidor Marcelo Braga Pessanha, da Área de Proteção Ambiental de Cairuçu (Parati – RJ), leu um manifesto que pontua discordâncias claras ao projeto.

A Carta da Foz, como foi batizado, declara que a forma adotada pelo governo para dividir o Instituto é “inoportuna, tecnicamente frágil e, sobretudo, antidemocrática”. Para os funcionários, a MP 366/07 “contamina e compromete o debate técnico e legítimo sobre a necessidade de criação de um instituto brasileiro de unidades de conservação”.

Durante a manifestação, os funcionários do Ibama abraçaram o auditório, em um ato simbólico para demonstrar a força da Greve Nacional do Instituto. O público, após a leitura, aplaudiu de pé.

Adeus, novas UCs?

Para piorar um quadro já caótico, o Comando de Greve dos Servidores do Ibama denuncia que o Governo Federal estaria promovendo negociações no mínimo desprovidas de ética – e, mais uma vez, pondo em risco a gestão ambiental pautada pela eficiência e pelo compromisso.

Numa moção de repúdio, afirma textualmente que “o Ministério do Meio Ambiente, não tendo argumentos para convencer os deputados, cedeu à pressão e fez um acordo para que as Unidades de Conservação (UCs) passem a ser criadas apenas por meio de Projeto de Lei”.

“O acordo ficou evidente no encaminhamento da votação pela liderança do Bloco Parlamentar PMDB/PSC/PTC, do deputado Colbert Martins (PMDB-BA), registrado nas Notas Taquigráficas (página 316) da Sessão Ordinária, do dia 12/06, em que a MP 366 foi votada:

“Por esta e outras razões, o Bloco Parlamentar PMDB/PSC/PTC vai votar ‘sim’, assumindo com a Liderança do Governo, com os Deputados Waldemir Moka, Celso Maldaner, Moacir Micheletto e Valdir Colatto, o compromisso de que faremos modificações no art. 1º da medida provisória, para valorizar mais o poder parlamentar, com o estabelecimento de que as unidades de conservação serão criadas por lei”, diz o texto.

A edição do Jornal da Câmara do dia posterior à votação também registrou o acordo. Na matéria, é dito que o deputado Colbert Martins “ressaltou que o PMDB votaria favoravelmente à matéria com a condição de que as unidades de conservação sejam criadas por projeto de lei”.

Sendo o Congresso Nacional formado basicamente por empresários – muitos dos quais da ala do agronegócio -, pecuaristas etc, pode-se calcular quantas unidades de conservação serão aprovadas daqui por adiante, se essa emenda à MP 366 passar no Senado.

Dúvidas em excesso

Tem sido defendido pelo MMA e pela base aliada do PT no Congresso que a divisão do Ibama não implicará em mais gastos públicos. É mais um quesito muito mal explicado. As unidades de conservação vão perder todo o seu pessoal de apoio e suas estruturas administrativas – algumas concentradas nas superintendências do Ibama, suas sedes; outras em escritórios regionais do Instituto. A maioria das unidades conta com pouquíssimos servidores e equipamentos e não são gestoras de recursos financeiros, além de, em geral, ficarem ou distantes de grandes centros urbanos ou completamente isoladas. A dependência do Ibama é, portanto, umbilical.

A MP prevê a existência de apenas 15 regionais do Instituto Chico Mendes, para os 27 estados. Isso significa que, em alguns deles, as UCs deverão ser apoiadas administrativamente por setores em outros estados. Se a coisa já funcionava precariamente com apoio direto, imagine à distância. Os invasores, grileiros, caçadores e traficantes de animais devem estar adorando a idéia.

E como implementar estas 15 regionais – que não existem hoje -, sem mais contratações e aumento de gastos?

Tem sido dito também que o Instituto Chico Mendes melhorará a gestão das unidades de conservação, que todas terão sede, plano de manejo etc. E qual é a fórmula mágica para fazer tudo isso sem aumento de gasto público? E como fica a proteção das UCs sem uma instância de coordenação destas atividades, nem na sede em Brasília, nem nos estados?

Mesmo que o Ministério do Meio Ambiente esteja coberto de razão e tudo apresente-se pronto a caminhar às mil maravilhas, continuam a ressoar estas e outras perguntas entre as pessoas mais sensatas: por que não se pode discutir o pacote todo com a sociedade ao invés de o impor goela abaixo como está sendo feito? E a principal: a quem serve tanta pressa? Ao meio ambiente, seguramente, não.