Entrevista: Mario Christian Meyer, um “Gigante da Ecologia”

Esteve recentemente em visita ao Brasil o professor doutor Mario Christian Meyer (na foto), que veio de Paris para receber, em Blumenau (SC), no final do mês passado, o Prêmio Gigantes da Ecologia – Edição 2008.

Meyer é fundador e presidente do PISAD Europe (Programa Internacional de Salvaguarda da Amazônia, Mata Atlântica e Ameríndios para o Desenvolvimento Sustentável) em Paris – França, em parceria institucional e financeira com a Unesco – Programa 00 BRA 603: Amerindian Communication and Sustainable Economic Development Programme for a Culture of Peace in Brazilian Amazonia.

É professor convidado junto à Universités de Paris – Sorbonne e, nos últimos 15 anos, como um perito em cooperação científica e tecnológica em biotecnologia, etno-farmacologia e em ciências ambientais, ele vem se dedicando a estudos de salvaguarda das diversidades biológicas e culturais da Amazônia, propondo formas inéditas de desenvolvimento sustentável.

Seu projeto tem por base a utilização de uma técnica desenvolvida com o Instituto Nacional Politécnico de Loraine (França), através da qual as populações nativas possam extrair das plantas os princípios ativos, em forma de extratos vegetais semi-purificados, para a fabricação de bioprodutos de alto valor agregado, de maneira eficaz e sem agredir a natureza.

“A implantação desse projeto preservará a cultura ancestral dos índios, fundamental para o progresso científico ocidental, no que se refere ao conhecimento das diversas etnias sobre as plantas da floresta”, disse a AmbienteBrasil Eliana Spengler, coordenadora da Comissão de Homenageados do “Gigantes da Ecologia 2008”

“Além disso, o projeto tornará possível aumentar a renda das comunidades locais, como forma de diminuir os riscos de biopirataria, à qual estão cada vez mais expostas as comunidades indígenas”, completa.

Eliana debruçou-se sobre o trabalho do doutor Meyer coletando subsídios para elaborar um artigo enfocando sua “fantástica história”. O trabalho – Um Gigante na Floresta -, integra o livro que leva o título da premiação e que faz parte de um projeto educacional em Santa Catarina.

Recepcionando-o agora, ela fez com o Prof. Dr. Mario Christian Meyer a seguinte entrevista, que AmbienteBrasil publica com exclusividade.

Eliana Spengler – O senhor veio ao Brasil como o grande homenageado do Gigantes 2008, por seu trabalho de salvaguarda da Amazônia, Mata Atlântica e Ameríndios para o Desenvolvimento Sustentável. Do que se trata o seu trabalho?

Mario Christian Meyer – Trata-se do primeiro caso na história de transferência de biotecnologia para o povo indígena, num processo de cooperação eqüitativa de respeito às tradições milenares e da identidade psico-cultural do Índio “preservado”, a fim de assegurar o seu desenvolvimento sustentável para as futuras gerações. Chamamos de índio preservado aquele que ainda vive no respeito da sua cultura ancestral e possui um conhecimento eficaz da sua biodiversidade, das plantas medicinais.

Resumindo, trata-se de uma aliança inovadora e revolucionária entre os conhecimentos tradicionais e as biotecnologias modernas visando à valorização da biodiversidade brasileira. Os conhecimentos tradicionais porque representam o primeiro passo, in situ, do conhecimento ancestral dos recursos genéticos da floresta. As biotecnologias porque constituem o instrumento científico ideal para valorizar a biodiversidade e seus princípios ativos, demonstrando que uma “árvore de pé” vale mais do que uma “árvore abatida”.

Eliana – Seu projeto de transferência de biotecnologia para os povos indígenas é também uma forma de preservar a cultura ancestral dos índios sobre a biodiversidade. Se essa riquíssima cultura não for preservada, a ciência ocidental não sofrerá, conseqüentemente, grandes perdas? Quais?

Meyer – Sim, o conhecimento ancestral que os índios têm da biodiversidade, há séculos, serve de base para o desenvolvimento de pesquisas relativas aos princípios ativos de novos remédios. Assim, essa transferência de biotecnologia constitui uma forma pragmática de conservar o conhecimento empírico adquirido, por ensaio e erro, durante milênios, não só sobre as plantas medicinais, mas também sobre a mitologia indígena que registra esses saberes perpetuados pelos seus ritos iniciáticos.

Caso esses conhecimentos tradicionais não forem associados ao conhecimento tecnológico atual que lhes assegure a presença no mundo moderno, eles desaparecerão do processo evolutivo do homem e só permanecerão em museus arqueológicos de etnografia. Com seu desaparecimento, a ciência moderna seria amputada de uma forma original de know how, pois deixará de descobrir novas moléculas indispensáveis para a saúde do homem, como foram os curares, a pilocarpina, a emetina, o captopril e as batracotoxinas, aportadas pelo índio à medicina de hoje.

Esse conhecimento da natureza também é fundamental para a saúde do meio ambiente, pois pode impedir o desmatamento da floresta através da valorização da “árvore de pé” citada acima. Também perderemos conhecimentos preciosos para o equilíbrio dos ecossistemas amazônicos e atlânticos e sua contribuição para o equilíbrio bioclimático do planeta. Concluindo, o desaparecimento desses saberes milenares seria um crime histórico.

Eliana – Há quanto tempo o senhor iniciou essa pesquisa no coração da Floresta Amazônica, em parceria com a UNESCO?

Meyer – O meu primeiro trabalho na Amazônia começou em 1983, quando a UNESCO convidou-me, enquanto especialista em Neuropsiquiatria do Desenvolvimento, a desenvolver uma pesquisa sobre Abordagem Neuro-psicomotora do Acesso ao Mundo do Signo/símbolo Escrito (base para a alfabetização das populações ‘desfavorecidas’), que constituiu a base psico-cultural do trabalho atual.

Devido ao impacto desse estudo, ele foi transformado num livro publicado pela própria UNESCO, “Apprentissage de la langue maternelle écrite”, com um Prefácio do célebre Collège de France. O estudo das diferentes formas de expressão escrita dessas populações originais levou-me a analisar os princípios ativos das plantas utilizadas nas pinturas corporais e iniciou-me no mundo das plantas medicinais.

Quase 15 anos mais tarde, recebi uma proposta da UNESCO para realizar um “Inventário dos Saberes Milenares dos Índios (conhecimento tradicional) sobre a valorização da biodiversidade da Amazônia e da Mata Atlântica”, com o objetivo de desenvolver um modelo pragmático de desenvolvimento sustentável, que se transformou num relatório oficial junto à UNESCO, 2000-2003: Programa 00 BRA 603: Amerindian Communication and Sustainable Economic Development Programme for a Culture of Peace in Brazilian Amazônia.

Assim, utilizando como base a Neuropsiquiatria do Desenvolvimento para revitalizar os conhecimentos ancestrais, passamos à área das Ciências da Vida, como a biotecnologia verde, para explorar equitativamente os recursos naturais da Floresta, assegurando assim o futuro dos povos nativos no seu meio ambiente natural e desenvolvendo a economia regional.

Eliana – Qual o sentimento de um cientista que trabalha com os melhores centros de Pesquisa e Desenvolvimento Científico do mundo, ao pisar na mata virgem e conviver com as populações indígenas que vivem totalmente isoladas da civilização?

Meyer – Ali, no coração da Floresta, sentimos a emoção descrita por Einstein como a mais profunda – a emoção mística. É o que sentimos, por exemplo, quando um Pajé explica que os “espíritos da Floresta” lhe deixam saber qual parte da planta e qual o melhor momento de coletá-la, a fim de curar uma determinada doença: “deus está em cada planta, atrás de cada espécie viva”, dizem eles.

O primeiro contato com a exuberância da mata virgem e com sua população indígena provoca, assim, um sentimento quase que iniciático – a descoberta de um mundo onde o Homem e a Natureza convivem em perfeito equilíbrio, numa espécie de harmonia consangüínea entre os seres vivos. Para o índio, existem verdadeiros elos de consangüinidade entre os diferentes seres da floresta – as árvores e os animais são como primos, pertencentes à mesma família. Daí o respeito inerente pela natureza em todos os seus componentes. Sua mitologia preserva a vida da floresta.

Eliana – Em suas missões na Amazônia, o senhor deve ter presenciado também um grande rastro de destruição causado pela ação do homem. Na Amazônia, quais são hoje as ações mais perniciosas e que danos causam para o ecossistema?

Meyer – A ação ilegal de certos madeireiros tem sido historicamente devastadora, assim como as ocupações desordenadas por posseiros e grileiros, que derrubam a floresta e provocam imensas queimadas. Muitas vezes esses posseiros são assentados pelo próprio governo e não conseguem sobreviver nesse ambiente hostil tornando-se, inconscientemente, agentes de destruição da rica biodiversidade da região. Por outro lado, até as monoculturas extensivas, características do sul do Brasil, também estão ameaçando hoje o sul da Amazônia.

Além disso, o garimpo do ouro utilizando mercúrio para amalgamar as palhetas de ouro provoca uma poluição altamente hostil para o meio ambiente, posto que não é degradável – o mercúrio, substância tóxica nociva ao ser humano e ao meio ambiente, contamina os rios, se fixa nas algas que são ingeridas pelos peixes, que por sua vez são ingeridas pelo homem, fazendo com que toda a cadeia alimentar seja contaminada.

Hoje, conhecemos técnicas que podem solucionar em grande parte esses problemas, mas falta incentivo financeiro para que sejam aplicadas em campo.

Eliana – Em nível mundial, quais as perturbações do meio ambiente que podem ser inter-relacionadas, direta ou indiretamente, com a utilização irresponsável dos recursos naturais?

Meyer – São inúmeras. Entretanto, vamos nos ater àquelas cujos efeitos são palpáveis, como a elevação do nível dos oceanos, a redução das geleiras, as alterações da vegetação e do equilíbrio bioclimático. A Terra, quando agredida, reage colocando em risco a sobrevivência do homem – o efeito estufa que provoca furacões devastadores, a destruição da camada de ozônio, a radiação solar letal, as inundações, os incêndios nas florestas e a poluição fluvial, marítima e do ar.

A Amazônia contribui substancialmente para o equilíbrio dos diferentes ecossistemas do planeta. Por isso, devemos protegê-la antes que seja tarde, irreparável.

Eliana – Qual a importância dos projetos de sustentabilidade desenvolvidos por empresas?

Meyer – O ser humano precisa despertar urgentemente para o fato de que é impensável construir o futuro sem bases sustentáveis. Não podemos continuar exaurindo as riquezas naturais como se elas fossem infinitas, nem gerar degradação ao meio ambiente no exercício de nossas atividades econômicas. As empresas precisam conscientizar-se não só de sua responsabilidade individual com relação ao ecossistema e desenvolver projetos de sustentabilidade para neutralizar os danos causados por sua atividade, mas também da necessidade de investir em tecnologias que permitam preservar o que resta da natureza, valorizando a sua biodiversidade através da fabricação de bioprodutos de alto valor agregado.

Eliana – Em se tratando de ecossistema, todas as ações têm impacto global? Por quê?

Meyer – Certamente. Porque o ecossistema é formado por diversos fatores que atuam simultaneamente. As plantas, os animais, as bactérias, o solo, a água, enfim, todos os elementos se inter-relacionam e dependem intimamente do funcionamento equilibrado dessa cadeia. A alteração de um único elemento costuma causar modificações em todo o sistema, podendo ocorrer a perda do equilíbrio existente.

Eliana – Ainda há tempo para reverter o quadro atual? O que deve ser feito?

Meyer – Certas destruições do nosso meio ambiente já são irreversíveis, como a extinção de muitas espécies; mas ainda podemos escolher o nosso futuro, desenvolvendo projetos pragmáticos que correspondam às reais necessidades do ecossistema, bem como das populações que nele vivem.

Assim, a utilização de biotecnologias de ponta para valorizar a biodiversidade, como propomos no nosso modelo de desenvolvimento sustentável, constitui um exemplo prático aplicável em diferentes regiões do mundo. Devemos continuar a desenvolver modelos deste tipo. Por isso é fundamental que os jovens, futuros gestores do planeta, se dediquem a essas questões com seriedade e comprometimento, para construir um futuro melhor para as gerações vindouras.

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