Uma doença virótica conhecida como anemia infecciosa do salmão, ou ISA, na sigla em inglês, está dizimando milhões de salmões destinados à exportação para o Japão, a Europa e os Estados Unidos. A disseminação da praga está provocando calafrios nesta que é a terceira maior indústria do Chile, e tem causado problemas sociais devido à demissão de mais de mil trabalhadores.
A doença também fez com que as companhias ficassem expostas a novas acusações de biólogos e ambientalistas que afirmam que a criação de salmões em cercados subaquáticos superlotados está contaminando estas águas outrora puras e produzindo peixes potencialmente doentes.
Alguns acusam a indústria de criar peixes de uma maneira que convida o desastre, e os produtores estão sofrendo cada vez mais pressões para modificarem os seus métodos a fim de preservar as águas azul-cobalto do sul do Chile para os turistas e as espécies nativas da vida marinha.
“Todos estes problemas estão relacionados a uma ausência básica de controles sanitários”, denuncia Felipe C. Cabello, professor do Departamento de Microbiologia e Imunologia da Universidade de Medicina de Nova York, em Valhalla, no Estado de Nova York, que estuda a indústria piscícola do Chile. “Infecções parasitárias, virais e fúngicas disseminam-se quando os peixes ficam estressados e os centros de criação são construídos demasiadamente próximos uns dos outros”.
Os executivos da indústria admitem alguns dos problemas, mas repelem a acusação de que as suas práticas são inseguras para os consumidores. Autoridades de saúde norte-americanas também dizem que o novo vírus não é prejudicial aos seres humanos.
Mas o último surto ocorreu após uma série de doenças não viróticas nos últimos anos. As companhias admitem que essas doenças fizeram com que utilizassem doses elevadas de antibióticos. Os pesquisadores afirmam que esta prática é comum na indústria piscícola chilena, que consiste de uma mistura de produtores internacionais e chilenos. Segundo os cientistas, alguns desses antibióticos são proibidos para uso em animais nos Estados Unidos.
Muitos desses salmões terminam nos supermercados norte-americanos, para onde se destinam cerca de 29% das exportações chilenas. De acordo com os pesquisadores, enquanto os peixes produzidos na China têm sido alvo de um escrutínio especial nos últimos meses, aqui no Chile os reguladores ainda não criaram um sistema de registro capaz sequer de controlar o uso desses medicamentos.
O novo vírus está se espalhando, mas ele tem afetado principalmente os peixes da Marine Harvest, uma companhia norueguesa que é a maior produtora do mundo de salmões criados em fazendas, e que é responsável por cerca de 20% do salmão exportado pelo Chile.
O salmão produzido no Chile pela Marine Harvest é vendido em supermercados das redes Costco e Safeway, entre outras, afirma Torben Petersen, o diretor-gerente local da Marine Harvest.
Arne Hjeltnes, o porta-voz principal da Marine Harvest em Oslo, na Noruega, diz que a sua companhia reconhece que o uso de antibiótico é excessivo no Chile, e que os cercados de peixes muito próximos contribuíram para os problemas. Ele afirma que a Marine Harvest aceita bem regulamentações ambientais mais rígidas.
“Algumas pessoas alegam que esta indústria é boa demais para ser verdade”, diz Hjeltnes. “Mas enquanto todo mundo estava ganhando muito dinheiro e tudo ia bem, não havia motivo para adotar medidas duras”.
Ele diz que a crise atual é um alerta para que se preste atenção nas várias medidas que se fazem necessárias.
Em uma recente visita ao porto de Castro, a cerca de 170 quilômetros de Puerto Montt, foi possível ver um depósito contendo centenas de sacos, alguns pesando até 1.250 kg, cheios de alimentos e remédios para salmões. Os sacos – vários deles com as inscrições “Marine Harvest” e “ração com medicamentos” para os peixes – continham antibióticos e pigmentos, bem como hormônios para fazer os peixes crescerem mais rapidamente, disse Adolfo Flores, o diretor do porto.
Os ambientalistas dizem que o salmão está sendo criado para exportação às custas de quase tudo mais. Segundo estimativas, é necessário o equivalente a de três a cinco quilos de peixe fresco para a produção de 900 g de salmão criado em fazendas. Biólogos e ambientalistas dizem que fezes de salmão e grãos de ração estão reduzindo o oxigênio da água, matando outras espécies da vida marinha e disseminando doenças. Os pesquisadores afirmam que os salmões que fogem estão comendo outras espécies de peixe e começaram a invadir rios e lagos na vizinha Argentina.
“Simplesmente não é possível produzir peixe em uma escala industrial de forma sustentável”, argumenta Wolfram Heise, diretor do programa de conservação marinha do Projeto Pumalin, uma iniciativa conservacionista privada no Chile. “Nunca se conseguirá atingir um equilíbrio ecológico”.
Quando as companhias começaram a criar aqui salmões do Oceano Atlântico, que não são nativos desta região, duas décadas atrás, a criação de salmão era tida como uma bênção para uma área pouco habitada que só tinha algumas aldeias sonolentas de pescadores e campings.
A indústria cresceu oito vezes de tamanho desde 1990. Atualmente ela emprega 53 mil pessoas, direta ou indiretamente. A Marine Harvest é dona do maior sistema fechado de operações de piscicultura do mundo, em Rio Blanco, perto de Puerto Monte, onde são criados anualmente 35 milhões de peixes, até que atinjam um peso de cerca de 9,45 g.
Enquanto a indústria abandona a região dos Lagos em busca de águas não contaminadas em outros locais, a população local fica furiosa, além de preocupada com o futuro.
“As companhias de salmão estão roubando as nossas riquezas”, acusa Victor Guttierrez, um pescador de Cochamo, uma vila no Golfo de Reloncavi, que é pontilhado de fazendas de salmão. “Elas trazem doenças e depois vão embora, deixando-nos com os problemas”.
Desde a descoberta do vírus no Chile em julho do ano passado, a Marine Harvest fechou 14 dos seus 60 centros e anunciou que demitiria 1.200 trabalhadores, o que representa um quarto das suas operações no Chile. Depois que a companhia anunciou no mês passado que se mudaria para Aysen, no sul, o governo disse que o vírus também havia se espalhado por aquela região, em dois surtos que não estão relacionados à Marine Harvest.
Membros da indústria dizem que o Chile está padecendo de problemas similares aos que atingiram as operações das fazendas de salmão na Noruega, na Escócia e nas Ilhas Faroe, onde uma variedade diferente do vírus ISA causou epidemias.
A Noruega, o principal exportador de salmão do mundo, acabou decidindo aumentar o espaço entre as suas fazendas de salmão, reduzindo assim o estresse dos peixes, e respondeu às críticas ao uso elevado de antibióticos com regulamentações mais rígidas e o desenvolvimento de vacinas.
Pesquisadores no Chile afirmam que os problemas nas fazendas de salmão vão além deste último vírus. As preocupações dos cientistas são semelhantes às da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris, que criticou fortemente a indústria de fazendas de peixe no Chile em um relatório de 2005.
A OCDE afirmou que a indústria necessitava limitar a fuga de cerca de um milhão de salmões por ano, controlar o uso de fungicidas como a malaquita verde, um carcinogênico proibido em 2002, e adotar melhores regulamentações quanto ao uso do corante usado para fazer com que o salmão fique mais rosado, e que foi associado a problemas de retina em seres humanos. O relatório também citou o uso de antibióticos pelo Chile, afirmando que a utilização desses produtos é “excessiva”.
Autoridades da Sernapesca, a agência nacional de pesca do Chile, ignoraram vários pedidos de entrevista para esta matéria e não responderam a perguntas por escrito submetidas mais de uma semana antes da sua publicação.
Mas Cesar Barros, presidente da SalmonChile, a associação da indústria, disse: “Estamos trabalhando em conjunto com o governo para melhorar a situação”.
Ele repeliu as amplas críticas às condições sanitárias, afirmando que não existem provas científicas que respaldem tais alegações. Mas os pesquisadores acusam a indústria de relutar a pagar por estudos científicos, algo de que o Chile precisa bastante.
Segundo Cabello, resíduos de antibióticos foram detectados em salmão chileno exportado para os Estados Unidos, o Canadá e a Europa.
Ele calcula que os produtores de salmão no Chile usam uma quantidade de antibióticos de 70 a 300 vezes superior àquela utilizada na Noruega para a produção de uma tonelada de salmão. “No entanto não existem dados concretos para corroborar estas estimativas, já que existe um mercado de antibióticos quase clandestino na indústria de criação de salmões no Chile”, afirma Cabello.
Os pesquisadores dizem que alguns antibióticos que não são permitidos na aqüicultura norte-americana, como a flumequina e o ácido oxolínico, são legais no Chile, e podem elevar a resistência aos antibióticos nos seres humanos. Em junho do ano passado, a Administração de Alimentos e Remédios dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês), proibiu a venda de cinco tipos de pescados e mariscos chineses devido à presença de fluoroquinolonas e outros aditivos.
Mas uma grande quantidade de peixe não é inspecionada. A FDA inspecionou apenas 1,93% de todo o pescado importado em 2006, afirma a organização Food and Water Watch, citando dados da própria FDA.
Stephanie Kwisnek, porta-voz da FDA, diz não saber a porcentagem que foi inspecionada. Mas ela afirma que a FDA testou 40 amostras das 114.320 toneladas de salmão importadas do Chile em 2007. De acordo com Kwisnek, nenhuma delas apresentou resultado positivo para a malaquita verde, o ácido oxolínico, a flumequina, a ivermectina, fluoroquinolonas ou resíduos de medicamentos.
Ela acrescentou que a FDA está planejando uma viagem de inspeção para avaliar os sistemas de controle aplicados pelo Chile nas suas fazendas de salmão.
Petersen, o diretor da Marine Harvest no Chile, diz que a companhia pretende retornar à região dos Lagos em alguns anos, tão logo a área fique livre da contaminação. Ele afirma que no longo prazo a Marine Harvest abandonaria os lagos de água doce do Chile e produziria salmões mais velhos em sistema fechados nos quais é possível aplicar “controle biológico”.
Enquanto isso, pescadores vizinhos que foram afetados pela indústria de salmão só podem torcer para que o futuro lhes reserve melhores dias.
Guttierrez, 33, diz que há apenas seis anos ele e o seu companheiro de pesca pescavam 500 kg de robalo em um dia típico. Recentemente ele mostrou o resultado de uma pescaria, apontando para os 40 kg de peixe que estavam em uma caixa térmica na carroceria da sua caminhonete.
Ele lamenta as mudanças que observa nos peixes: eles estão mais rosados do que antes, e têm a pele mais flácida. Guttierrez diz suspeitar que os peixes selvagens estão comendo a mesma ração da qual os salmões se alimentam. Segundo ele, a ração está se depositando no fundo do mar.
“Se a água continuar sendo contaminada, simplesmente teremos que nos mudar para outra área para encontrar o nosso peixe”, diz ele. “A situação está ficando cada vez mais difícil”. (UOL Notícias)