Dos 25 mil homens de que o Exército dispõe para defender a Amazônia de ameaças que vão do tráfico de drogas à cobiça internacional pelas nossas riquezas naturais, apenas 240 vigiam mais de 2 mil quilômetros de fronteira com as Guianas e o Suriname, na chamada Amazônia oriental. Destes, um contingente de 17 soldados tem a missão de proteger uma faixa de 1.385 quilômetros de fronteira seca no extremo norte do Pará. Se fossem distribuídos nesse território, caberia a cada homem a vigilância sobre 12.150 quilômetros quadrados, dez vezes a área da cidade do Rio de Janeiro.
A região é vista como o ponto fraco do sistema brasileiro de defesa e preocupa o chefe do Comando Militar da Amazônia, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira. “O contingente é muito pequeno. A distância entre dois pelotões passa de 400 quilômetros sem ligação por terra.”
O general Heleno tem posições firmes sobre a questão da vigilância nas fronteiras. Na quarta-feira, em seminário no Clube Militar, no Rio, ele acabou se transformando em pivô de uma crise com o Palácio do Planalto. Disse que considera uma ameaça à soberania nacional a reserva contínua de 1,7 milhão de hectares da Raposa Serra do Sol, em Roraima, na região de fronteira, e chamou de “caótica” e “lamentável” a política indígena brasileira. Além disso, criticou o que chamou de “esquerda escocesa” – a que resolve os problemas do Brasil detrás de um copo de uísque. As declarações irritaram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que cobrou explicações e avisou que manterá a reserva tal como está.
REAPARELHAMENTO
O comandante da Amazônia diz que manter guarnições militares na fronteira tem um custo muito alto. “Nossa necessidade não é de mais gente, e sim de meios.” Faltam lanchas, helicópteros, fuzis modernos, coletes e equipamentos de visão noturna. “Usamos armas com mais de 40 anos”, ressalta. Ele considera essencial o reaparelhamento para aumentar o poder na fronteira.
“Se o Brasil não se voltar para o problema da Amazônia, ela vai se transformar no paraíso dos ilícitos”, adverte.
Alguns pelotões na região amazônica não têm equipamentos de comunicação adequados nem energia elétrica 24 horas por dia. Segundo ele, contudo, a tropa é pequena, mas muito bem treinada. “A prioridade é melhorar a vida desse pessoal.”
Como na região da Raposa Serra do Sol, localizada na fronteira com a Venezuela e a Guiana, vigiar o extremo norte do Pará é um desafio. As três unidades instaladas na fronteira – uma companhia e dois pelotões – não dispõem de um único avião ou helicóptero. A 1ª Companhia de Fuzileiros da Selva, em Clevelândia do Norte, a 60 quilômetros da foz do Rio Oiapoque no Atlântico, tem 203 homens e abrange também o pelotão destacado da Vila Brasil, localizado 100 quilômetros rio acima, com 20 soldados. Como não há estradas, o patrulhamento é feito a pé ou de barco, quase sempre por rios encachoeirados. Quando o rio está cheio, a navegação é possível, mas, em alguns pontos, os soldados precisam desembarcar e arrastar pelas rochas os batelões de madeira de 4 toneladas.
Por causa das corredeiras, ali só se navega com os ubás, barcos de tronco único feitos por índios, como os usados pelos bandeirantes no século 17. Embarcações de alumínio não resistem ao choque com as pedras. A companhia dispõe de 5 ubás e 9 “voadeiras”, todos motorizados. O tráfego de barcos nesse trecho do Oiapoque é intenso por causa dos garimpos do Rio Siqueri, em território francês. A busca pelo ouro atraiu 15 mil brasileiros, segundo autoridades francesas – 30 mil de acordo com os próprios garimpeiros.
Os barqueiros criaram uma associação para o transporte de mercadorias, embora a maioria dos brasileiros esteja de forma ilegal no garimpo, segundo a prefeita de Saint-Georges de I?Oyapock, Fabienne Brouard. A cidade guianense, que fala francês e tem o euro como moeda, não gosta da invasão de brasileiros. “Eles vêm aqui para ganhar dinheiro e mandam tudo para o Brasil”, reclama Fabienne. O clima de conflito é permanente: a gendarmeria, polícia francesa, detém brasileiros sem visto e os entrega às autoridades brasileiras.
A guarda também apreende e afunda barcos no Oiapoque, problema que o Exército tem de administrar. A região é patrulhada pelo rio, mas falta apoio aéreo. O tráfico de drogas elevou a criminalidade. Também há informações sobre o tráfico de mulheres e crianças do Brasil para a Guiana Francesa – o governo francês paga uma bolsa de até 800 euros a cada criança em idade escolar. Índios também recebem ajuda mensal de 250 euros, por isso muitos deles, como Gian Batista de Brito, da tribo Oyanpin, do Rio Araguari, migraram para o lado francês.
TRÁFICO
Embora a Polícia Federal participe de operações com o Exército, não há como fiscalizar todos os barcos. A região, de selva densa e úmida, favorece uma possível infiltração de traficantes ou grupos paramilitares. A companhia, integrada por 76 recrutas, entre eles índios como o soldado Megaron Santos Silva, de 19 anos, da etnia caripuna, treina operações de assalto a posições inimigas. Os índios serão aliados do Exército também no pelotão de Tiriós, na divisa com o Suriname, o mais isolado da fronteira. A unidade fica em terras habitadas apenas por índios de várias etnias, com predominância dos tiriós.
Na aldeia de Nova Missão, no lado brasileiro, vivem cerca de 300 indígenas em situação de miséria extrema. Outros 700 estão espalhados por 20 pequenas aldeias vizinhas. De acordo com o cacique Tadei Simétrio Tarió, de 61 anos, os jovens índios querem se alistar para receber o soldo, cerca de R$ 700 por mês. Ele fará a indicação dos seis primeiros voluntários.
“Vamos começar com um número entre 6 e 10, mas a idéia é ter um pelotão todo formado por indígenas”, informou o tenente-coronel Affonso da Costa, comandante do batalhão de Belém, ao qual o pelotão é subordinado. O objetivo, além de aproveitar o conhecimento natural do território para estratégias de defesa, é ensinar valores que afastem o risco de cooptação por inimigos. Do outro lado da fronteira, circulam informações sobre índios ligados a contrabando e tráfico de drogas.
O Suriname é apontado como porta de saída da droga produzida na Colômbia para a Europa. Em 1988, abrigou um movimento guerrilheiro próximo da fronteira, um dos motivos que levaram o Exército a instalar o pelotão avançado. Segundo o frei Paulo Calisto Cavalcante, franciscano que dirige a missão católica, alguns índios trazem maconha para o lado brasileiro. O frei relaciona a droga ao alto índice de suicídios na aldeia – seis nos últimos três anos.
A antropóloga Denise Fajardo Grupioni, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) que há 15 anos trabalha com os índios, diz que eles não querem se manter no isolamento. “Eles denotam um grande interesse em se profissionalizar nas mais diferentes áreas para obter renda.” O interesse cresceu depois que integrantes da tribo foram contratados pelo governo para trabalhar como agentes de saúde e professores, com salários de até R$ 1.700 mensais. Com o dinheiro, compraram motos e televisores com antenas parabólicas. “Os outros índios querem o mesmo privilégio.”
RESGATE
O sargento Mauro Lima Baía, que é paramédico, atende soldados e recrutas do pelotão e também os índios. Há duas semanas, ele caminhou 10 horas sob chuva para resgatar uma índia picada por uma surucucu, cobra de veneno letal. A mulher se salvou graças ao empenho do sargento e ao rádio, única forma de comunicação, usado para pedir o resgate aéreo.
Tiriós abriga também uma base aérea da Aeronáutica com quatro militares. Os oficiais operam um radar do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), que repassa os dados para o Cindacta 4, em Manaus. A vigilância em terra é feita pelas patrulhas do Exército, quase sempre em longas caminhadas, pois não há estradas. Toda a região da fronteira é patrulhada apenas duas vezes por ano.
O general Jeannot Jansen da Silva Filho, comandante 8ª Região Militar, já pediu a alocação de pelo menos um helicóptero para o pelotão de Tiriós. Ele considera que o Suriname é o “Paraguai do norte” por ter a fronteira permeável. “O traficante põe a droga ali e ela segue direto para a Europa.”
(Fonte: José Maria Tomazela / Estadao.com.br)