Identificada proteína usada pela bactéria E. coli para driblar sistema imune

Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em parceria com colegas da França, identificaram uma proteína produzida por bactérias da espécie Escherichia coli para inibir o ataque de células do sistema imune.

A descoberta foi realizada durante o doutorado de Jaqueline Beppler, sob orientação de Fabiano Pinheiro da Silva, professor da FMUSP, no âmbito do Projeto Temático “Role of Fc receptors in bacterial immune evasion”, financiado pela FAPESP e pela Agence Nationale de la Recherche (ANR), da França, e coordenado pelo professor da FMUSP Irineu Tadeu Velasco. Do lado francês, a coordenação é de Renato Costa Monteiro, professor da Universidade Paris Diderot. Também colaboraram pesquisadores do Instituto de Química da USP e do Laboratório Nacional de Biociências.

Os resultados foram descritos em um artigo publicado no European Journal of Immunology.

Versões sintéticas de dois peptídeos que fazem parte dessa proteína produzida por bactérias da E. coli – denominada WzxE – apresentaram em experimentos in vitro ação inibitória ainda mais potente. O grupo já solicitou a patente dos peptídeos no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e pretende testá-los no tratamento de doenças autoimunes e outras condições em que há uma resposta inflamatória exacerbada no organismo.

“Esses achados também abrem caminho para o desenvolvimento de anticorpos monoclonais capazes de neutralizar a proteína WzxE, o que seria útil no combate de infecções por E. coli , uma das principais causadoras de sepse”, afirmou Pinheiro da Silva, coordenador da pesquisa.

O mecanismo usado pela E. coli para escapar do sistema imune foi descrito pela primeira vez por Pinheiro da Silva e colaboradores em um artigo publicado na Nature Medicine em 2007, quando o pesquisador ainda cursava o doutorado. Na época, porém, a proteína WzxE ainda não havia sido identificada.

“Nós sabíamos que, de alguma forma, a E. coli se liga a um receptor celular conhecido como CD16, expresso em macrófagos, neutrófilos e outras células imunes. Esse receptor é responsável por ativar o processo de fagocitose dos patógenos”, contou Pinheiro da Silva.

Mas para que a fagocitose aconteça, explicou o pesquisador, a bactéria precisa estar ligada a um anticorpo do tipo IgG (Imunoglobulina G). Esse anticorpo, presente na circulação sanguínea, “apresenta” a invasora ao receptor CD16 e, assim, induz o processo de fagocitose.

Graças à pressão evolutiva, porém, a bactéria aprendeu a driblar esse mecanismo de defesa ligando-se diretamente ao CD16 por meio da proteína WzxE. Ao fazer isso, ela induz uma sinalização inibitória nas células imunes. Além de não ocorrer fagocitose, diminui a produção de espécies reativas de oxigênio e de citocinas inflamatórias, como o fator de necrose tumoral alfa (TNFα), que são substâncias usadas pelo sistema imune para matar os invasores.

Neste novo trabalho, o grupo usou ferramentas de bioinformática aliadas a uma técnica conhecida como phage display para identificar a proteína-alvo. As análises apontaram para dois peptídeos estruturalmente semelhantes, compostos por oito aminoácidos cada um: FGAHGVFF e YWGGTEGA. Eles correspondem à porção da proteína WzxE que se conecta ao CD16.

“Por meio de bioinformática e da análise da estrutura terciária [forma tridimensional que a proteína assume quando está enovelada], concluímos que esses aminoácidos eram parte da proteína WzxE”, contou Pinheiro da Silva.

Diversos experimentos com culturas celulares foram feitos para validar os resultados. Em um deles, os pesquisadores induziram a expressão de CD16 em mastócitos – células do tecido conjuntivo originárias da medula óssea, onde esse receptor normalmente não está expresso.

Ao colocar a WzxE na cultura, observaram que as vias de sinalização intracelulares ficavam inibidas. “Mastócito é uma célula que tem grânulos dentro do citoplasma e, quando as vias de sinalização estão ativadas, ocorre uma degranulação. Mas, quando a gente colocou a bactéria ou os peptídeos no meio de cultura, a degranulação foi inibida”, contou Pinheiro da Silva.

Outro ensaio foi feito com dois tipos de macrófagos da medula óssea: um que expressava CD16 e outro que teve esse gene silenciado. Quando as culturas eram infectadas com E. coli, os macrófagos nocaute para CD16 realizavam muito menos fagocitose do que os do outro grupo. A produção de espécies reativas de oxigênio também foi diminuída significativamente.

Já quando as culturas foram infectadas com uma bactéria E. coli modificada para não produzir WzxE, não foi observada diferenças entre os dois grupos, ou seja, a bactéria não conseguiu inibir as vias de sinalização intracelulares e a fagocitose ocorreu normalmente em todos os casos.

Estratégias terapêuticas – O grupo aguarda retorno sobre o pedido de patente dos dois peptídeos identificados na pesquisa e pretende testá-los em modelos animais de doenças como lúpus, glomerulonefrite, artrite reumatoide, doenças inflamatórias intestinais e outras enfermidades em que há uma resposta imunológica exacerbada e deletéria ao organismo.

“Nesses casos, seria benéfico usar os peptídeos para inibir a produção de citocinas inflamatórias e de espécies reativas de oxigênio pelas células do sistema imune. Mas não pode haver infecção”, disse.

Já moléculas capazes de neutralizar a ação da proteína WzxE, como anticorpos monoclonais, poderiam ser úteis no combate à bactéria, que faz parte do microbioma intestinal e pode causar peritonite ou até mesmo sepse caso consiga atravessar a parede do órgão. A sepse é uma condição grave caracterizada por inflamação sistêmica e representa a principal causa de morte nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e uma das principais causas de mortalidade hospitalar tardia no Brasil.

“Existe ainda a possibilidade de a mesma estratégia funcionar em infecções por outras espécies de bactéria, mas isso ainda não foi tentado. Será preciso investigar no futuro”, afirmou Pinheiro da Silva. (Fonte: Agência FAPESP)