A cratera causada por um corpo celeste que virou bairro em SP

Ainda não se sabe exatamente quando, mas, entre 5 e 36 milhões de anos atrás, um corpo sólido saiu de algum ponto do Sistema Solar, cruzou o espaço interplanetário, atravessou a atmosfera terrestre em alta velocidade, deixando um rastro de fogo, e se chocou violentamente com o solo num ponto onde hoje fica a região de Parelheiros, na zona sul da cidade de São Paulo.

O impacto abriu uma cratera de 3,6 quilômetros de diâmetro, com cerca de 300 metros de profundidade e uma borda soerguida de 120 metros.

Desde então, ela foi sendo preenchida com sedimentos e restos de vegetação, que constituem um verdadeiro arquivo das mudanças climáticas da região e do planeta, bem como das florestas tropicais. Agora, pesquisadores estão abrindo esse arquivo por meio de perfurações, que vão revelar essas alterações, ocorridas no último 1 milhão de anos.

O trabalho começou em agosto e está sendo realizado por uma equipe de cientistas da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Instituto Francês de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD).

“A cratera é uma curiosidade geológica única, que acumulou sedimentos durante milhões de anos”, diz a pesquisadora Marie-Pierre Ledru, do IRD, que faz parte do grupo de estudo. “Por isso, queremos reconstruir a evolução do clima e da biodiversidade ao longo do Pleistoceno [período que vai de 2,58 milhões a 11,7 mil anos atrás] nas regiões tropicais.”

Mais especificamente, o objetivo é reconstruir a evolução da Mata Atlântica, sua expansão e regressão e a formação e extinção de espécies, a variabilidade climática e, sobretudo, a sucessões de ciclos da insolação da Terra.

Ou seja, por meio do estudo dos sedimentos acumulados ao longo do tempo na cratera, os pesquisadores querem reconstituir as mudanças na floresta e compará-las com as alterações do clima causadas por tais ciclos.

André Oliveira Sawakuchi, do Instituto de Geociências da USP, também membro do projeto, explica que a quantidade de energia que o planeta recebe do Sol varia em ciclos de aproximadamente 26 mil, 41 mil e 100 mil anos, devido à mudança da órbita terrestre.

“Os ciclos de 100 mil anos foram responsáveis pelos períodos glaciais e interglaciais do Quaternário [de 2,58 milhões de anos até os dias de hoje]”, diz.

De vulcão a meteoro

A cratera de Colônia, como é chamada agora, foi descoberta no início da década de 1960, por meio de fotos aéreas e, um pouco mais tarde, imagens de satélite.

Apesar de sua forma circular característica, por um longo tempo sua origem permaneceu desconhecida. Havia hipótese de que teria sido causada por um corpo celeste, como um cometa ou meteoro. Mas ela também poderia ser a boca de um vulcão extinto.

Só recentemente ficou comprovado que o buraco foi causado por um objeto vindo do céu. Em 2013, o geólogo Victor Velázquez Fernandez, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, começou a colher evidências que comprovaram a hipótese do impacto.

Para seu trabalho, Fernandez contou com a colaboração da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), que havia realizado perfurações no interior da cratera até a rocha dura, a 300 metros de profundidade, em busca de água potável. Isso tornou possível o estudo do seu interior rochoso, com a análise microscópica dos sedimentos.

“Nas amostras coletadas, encontramos várias evidências de que Colônia foi causada por um impacto. Uma delas, bastante forte, foi a transformação de vários minerais, em particular, quartzo e zircão. Para que isso ocorra, é necessária uma pressão superior a 40 quilobars [40 mil vezes a pressão atmosférica padrão] e uma temperatura da ordem de 5.000ºC.”

Segundo Fernandez, esses níveis indicam uma potente liberação de energia, como a resultante de um impacto na superfície terrestre de um objeto proveniente do espaço interplanetário.

Ele divulgou os resultados da sua pesquisa num artigo científico, publicado em 2015, no International Journal of Geosciences. Com isso, Colônia entrou na lista das crateras de impacto cientificamente comprovadas do Earth Impact Database (EID), uma base de dados internacional mantida pelo Centro Planetário e Espacial da Universidade de New Brunswick, no Canadá.

Há apenas outras 187 no mundo, das quais a de São Paulo é uma das duas únicas habitadas, com cerca de 40 mil moradores no bairro Vargem Grande, em seu interior, na região de Parelheiros, a cerca de 40 km da Praça da Sé, o marco zero da capital paulista.

A outra fica em Ries, na região da Baviera, na Alemanha, onde o homem vive desde o período paleolítico ou idade da pedra lascada, que coincide com o Pleistoceno. “Independentemente disso, a Cratera de Colônia é um laboratório natural do ponto de vista geológico, biológico e, inclusive, para estudo de impacto ambiental”, diz Fernandez.

É justamente disso que querem se aproveitar os pesquisadores da USP, Unicamp e IRD. Eles vão retirar amostras do solo com 50 metros de profundidade, armazenados em longos tubos de aço. Chamados de testemunhos, o material é uma mostra das camadas de sedimentos acumuladas ao longo do tempo, que poderá contar a história do local.

“A expectativa é que com 50 metros conseguiremos reconstituir os últimos 800 mil anos da Mata Atlântica”, explica Sawakuchi. “Até agora, foram coletados dois, que passaram por análise preliminar na USP e estão sendo transportados para a França (um deles já está lá), onde serão abertos em janeiro para tomada de amostras, que serão estudadas por pesquisadores de diversas especialidades.”

Nova frente de estudo

Entre o que será feito está verificar a idade do material coletado pelos testemunhos por meio de vários métodos, como carbono 14, luminescência óptica estimulada (OSL) e paleomagnetismo. “Com isso, buscamos estabelecer uma escala de tempo para as mudanças que queremos reconstituir por meio do estudo de indicadores geoquímicos e biológicos”, explica Sawakuchi.

“Também vamos analisar os indicadores geoquímicos (composição química e mineralógica, isótopos) e biológicos (pólens, diatomáceas, fragmentos de carvão) que se depositaram nos sedimentos ao longo do tempo, para reconstruir as mudanças de composição florística da mata em relação as mudanças do clima e a energia térmica (insolação) que recebe a Terra”, acrescenta Marie-Pierre.

De acordo com ela, o trabalho é importante, porque não há registro contínuo do comportamento da floresta tropical de baixa altitude em termos dos vários ciclos glaciais-interglaciais do Quaternário.

“Em trabalhos anteriores, não foi possível avaliar se a Mata Atlântica responde aos ciclos glaciais/interglaciais do hemisfério norte, apenas aos ciclos de precessão da insolação (~26.000 anos) e que o índice de biodiversidade variou também em relação às condições climáticas”, lembra.

A ideia agora é avaliar isso com mais detalhes e analisar um intervalo de tempo longo o suficiente para registrar os diversos ciclos glaciais/interglaciais.

Fonte: BBC BRASIL