Al Gore convoca para debater crise climática durante 24 horas

Acabo de receber a convocação do ex-vice presidente dos Estados Unidos Al Gore, que se tornou um arauto sobre os impactos que o planeta vai ter com o aquecimento global, para acompanhá-lo no evento “24 Hours of Reality” (“24 Horas de Realidade), focado na crise climática e suas soluções. O convite, é claro, não é feito só para mim mas para o maior número de pessoas que ele possa alcançar.A ideia é reunir celebridades também e provocar bastante barulho para falar em soluções sobre este ponto decisivo das mudanças climáticas em que a humanidade se encontra e que nem todo mundo se dá conta.

É a sétima edição do evento, que será transmitido por parceiros de transmissão ao vivo, de Nova York, online, pelo 24HoursofReality.org para o mundo inteiro. E vai acontecer nos dias 4 e 5 de dezembro.

Que as celebridades se unam em prol de um tema tão crucial para a humanidade é da maior importância, sobretudo quando há entre os céticos, aquelas pessoas que não acreditam no aquecimento global, alguém tão poderoso quanto Mr. Trump. No entanto, alguma coisa no texto da convocação que recebi me chamou a atenção, e não é a primeira vez que me incomodo com esse tom. Já conto o que foi.

Depois de explicar que “24 Hours of Reality” é uma forma de ajudar aqueles que querem ir contra a política negacionista de Donald Trump, o texto diz que é o evento servirá também como uma chamada para todos a quem a crise climática afete.

“É uma convocação para aqueles que querem proporcionar aos filhos e netos um futuro mais seguro”, disse Ken Berlin, CEO do Climate Reality.

Este é o ponto. Trata-se de um discurso impróprio quando se sabe que existem milhares de pessoas que já estão passando por problemas causados pelas mudanças do clima. A 23ª Conferência do Clima que aconteceu na Alemanha até a semana passada falou especialmente sobre os países-ilha que ficam no Pacífico, cujas populações estão passando por momentos muito difíceis. Os cuidados com o entorno, portanto, para tentar amenizar um pouco os eventos extremos e a subida dos mares, tem que ser para hoje, não para amanhã, não para amenizar a vida de filhos e netos. Já existem muitas crianças passando por muitas necessidades por causa da degradação ambiental.

Esta pode ser uma das respostas à pergunta que muitos especialistas se fazem: por que não se conseguiu, de verdade, trazer a opinião pública em peso para trabalhar a favor de mudanças estruturais que possam evitar mais emissões de gases poluentes e dramas piores para as pessoas que moram mais vulneráveis? Por que a Black Friday, por exemplo, causou um engarrafamento de furgões em Londres, cheios de brinquedos de plástico e eletrônicos que as lojas populares venderam aos montes, sem que as pessoas tivessem percebido o exagero disso e os efeitos desse exagero no meio ambiente? Entre outras coisas, porque é pouco eficaz falar com alguém que é preciso agir hoje para evitar catástrofes no fim do século. Essa dificuldade é apontada por Anthony Giddens em “A Política da Mudança Climática” (Ed. Zahar), publicado aqui no Brasil em 2009.

De outra forma, é também muito difícil fazer trocas nos sistemas de produção e de consumo se o problema ainda não está atingindo a todos. Solidariedade, como também já lembrou o geógrafo e educador Milton Santos, é uma palavra que o sistema econômico abandonou. A necessidade maior é de acumular capital para entrar no mundo competitivo. Milton Santos escreveu “Por uma Outra Globalização” (Ed. Record), em que caracteriza a globalização como uma “fábrica de perversidades”, e sugere compromisso não só com a natureza, mas com a redução da desigualdade social também.

Este aspecto socioeconômico do aquecimento global é que também não ajuda a popularizar o tema. Não se trata, apenas, de salvar baleias, mares e florestas da degradação intensa provocada pelo nosso abuso sobre os bens naturais. A questão é, também, ajudar pessoas vítimas das mudanças climáticas a sobreviverem num sistema que não prioriza suas necessidades.

É por tudo isso que, quando li a convocação de Al Gore, minha primeira sensação foi a mesma de quem já ouviu muitas vezes o mesmo discurso e já acredita menos nele. Não consigo abraçar a ideia de que a tecnologia poderá ser a grande salvadora de tudo, como Al Gore e seus colegas porque, antes de mais nada, penso que não são todos os países que terão recursos para adotá-las. E, se for preciso fazer empréstimos a juros altos para isso, vamos ver um novo período de colonização traçando o mundo com linhas diferentes. E não vai ser no fim do século.

Para tentar fugir disso, os habitantes de Porto Rico estão pegando em enxadas a fim de reconstruir a ilha, devastada com a passagem do furacão Maria, há dois meses. Mas nem todos podem ajudar. Muitos estão saindo de lá em busca de lugares onde possam viver com dignidade. No jornal “El País” de ontem, o repórter Pablo de LLano conta a história de Nadja, uma menina de três anos, que está na Florida com a mãe Zuleika Rivera, de 26 e mais outras 150 mil pessoas que deixaram suas casas depois da destruição provocada pela tempestade.

“Os efeitos do furacão são tão devastadores quanto seus ventos: enquanto o país continua em ruínas, com a infraestrutura em estado deplorável, metade da população sem energia elétrica e com a previsão de que não se recuperará até 2044, outra geração em idade produtiva faz as malas”, escreve o repórter.

O furacão destruiu totalmente 57 mil casas, provocou danos em 450 mil. ONGS estão ajudando as pessoas a saírem em busca de algo melhor. A casa de Jesús Caldera, de 31 anos, por exemplo, ficou sem o telhado, e Caldera emigrou para Orlando para ter um novo teto. Há alguns dias alugou um apartamento com o filho de cinco anos. Não tem móveis, dormem no chão, mas o menino já está indo à escola. Ele trabalhava como vendedor de automóveis. Assim como Zuleika, Caldera tem horror de Trump e julgou uma grosseria o fato de o presidente da nação mais rica ter jogado rolos de papel para a população em visita à ilha. Esperavam muito mais do que isso, é claro.

Mas, antes mesmo da passagem do furacão, Porto Rico já estava a ponto de declarar falência, com uma dívida de US$ 73 bilhões. Melhor mesmo que os seus habitantes tentem reconstruí-la, fazendo o que for possível, em vez de contraírem mais dívidas.

É disso que se trata. Os problemas causados pelo aquecimento global já estão acontecendo, e a solidariedade precisa ser urgente. E não é de rolos de papel que as vítimas dos eventos extremos precisam.

Fonte: Amelia Gonzales G1