Ciclovia Tim Maia e o desprezo dos governantes pelo aumento do nível do mar

A fraseé da física indiana Vandana Shiva, uma das pensadoras mais lúcidas de nossa época, fundadora da organização Navdanya,criada para proteger a diversidade e integridade dos recursos vivos, especialmente a semente nativa, a promoção da agricultura orgânica e do comércio justo. Vandana não podia ser mais certeira nesses tempos de abusos de autoridade e de desgovernança que vem nos assolando aqui no Brasil. Parece que falou para os brasileiros. Já me explico.

O jornalista Jan Teophilo conta no site do JB que o vereador Renato Cinco (Psol) já conseguiu as 17 assinaturas para instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara a fim de investigar a fundo como foi construída a ciclovia Tim Maia, que liga Leblon a São Conrado pelo costão da Niemeyer. Para quem não se lembra, foi a obra que caiu pouco depois de ser inaugurada, causando duas mortes, e que, há menos de um mês, em 15 de fevereiro, cedeu novamente, dessa vez felizmente sem causar danos a ninguém.

É legítimo que o vereador queira investigar como foram feitas as obras, se houve negligência ou malversação de recursos. É mais do que legítimo, é necessário. No entanto, uma outra questão vem sendo descuidada, e pode ilustrar como uma luva a fala de Vandana Shiva quando ela se lamenta pela estupidez dos que nos governam. Trata-se do Estudo de Impacto Ambiental da obra, que a Prefeitura se recusa a fazer, segundo a procuradora do Ministério Público Federal, Solange Braga. Com esse estudo, e só depois dele, é que será possível dizer se erguer uma ciclovia à beira-mar do Rio de Janeiro é possível ou não.

Especialistas, em visita ao local depois do segundo desabamento, falaram em infiltração no solo pelas águas da chuva.Já culparam também o tamanho das ondas, mas o que não é dito é que o Rio de Janeiro, assim como outras cidades costeiras do mundo, deveria estar seguindo as recomendaçõespara se adaptar às mudanças climáticas, o que inclui não construir nada perto do mar. Desde que feito de maneira responsável e honesta, o EIA não poderá se descuidar desse detalhe.

Não é achismo. Estudiosos de vários setores e de várias instituições já conseguiram provar que o nível das águas dos oceanos depois da Revolução Industrial vem aumentando. Uma análise mais recente, publicando na revista científica norte-americana PNAS mostra ainda que, mesmo alcançando metas de redução, o nível do mar vai subir entre 20 e 60 centímetros, e que isto não é para daqui a 100 ou 200 anos, mas até o fim do século.

É ou não é uma estupidez, portanto, erguer uma ciclovia à beira do mar se estamos sabendo disso? O caro político com boas intenções, que está encabeçando o movimento sobre os bastidores da obra, menosprezou este fato. Talvez não lhe diga respeito mesmo na abertura da CPI, já que está focado nas falcatruas do palácio municipal. Mas  talvez a investigação tivesse que partir deste ponto.

Tem uma informação a mais necessária nesta reflexão. O Rio de Janeiro faz parte de uma rede chamada C40, criada em 2005 para tentar espalhar um tipo de desenvolvimento urbano mais consciente, levando em conta e respeitando o meio ambiente e as pessoas. Eram 40 cidades, mas agora já são 59. O ex-prefeito Eduardo Paes foi o primeiro prefeito de uma cidade pertencente a um país emergente a presidir o C40. E está no site da rede, com letras bem claras, que o risco de inundação costeira do Rio de Janeiro é muito grave. De novo, aqui vale a pergunta: por que, então, construir (e reconstruir) uma ciclovia exatamente na região mais costeira da cidade?

Como a função primordial dessa rede, a C-40, é que as cidades se ajudem umas as outras a identificarem problemas e se conectarem com soluções possíveis, imagino que o ex-prefeito tenha faltado a essa explicação. E que o atual, Marcelo Crivella, nem mesmo tenha feito contato com a rede. A conferir.

Puxei da memória uma viagem que fiz, em 2010, à Holanda, a convite do próprio governo que queria mostrar aos jornalistasde alguns países o que estavam fazendo para se adaptar às  mudanças climáticas levando em conta o fato de estarem abaixo do nível do mar. Geograficamente, é claro, estamos com muito mais sorte, já que não corremos o risco imediato de sermos inundado como acontece na Holanda. Lá eles já não acreditam mais em diques porque, a partir do aumento do nível do mar, estes começaram a virar construções cada vez mais altas.

Os holandeses tomaram várias medidas de adaptação para evitar a inundação. Visitamos, por exemplo, uma praia que tinha perdido totalmente a areia. A solução foi mandar navios ao alto mar para retirar areia do fundo e usar uma espécie de pá gigante que trouxe areia para a beira. Fomos também a um pequeno bairro com cerca de 50 casas lindas que seriam inundadas para aumentar o espaço para o rio Ijssel, à beira do qual elas foram construídas. O problema é que o rio já está enchendo mais do que sempre por causa do degelo das geleiras do Ártico. Assim, o governo criou o programa “Espaço para os Rios”, que inclui a realocação daqueles moradores. Todos concordaram e, quando eu estive lá, já se arrumavam para morar em outro lugar, não muito longe dali.

Descrevo o exemplo de um país rico, e é claro que sei que nossa realidade é bem diferente. Mas é possível traçar algum paralelo porque o risco, no fim das contas, é o mesmo: inundação. Insisto, por isso, em dizer que é preciso avaliar em que condições as obras foram feitas, sim, como quer o vereador do Psol. Mas não se deve negligenciar o fato de a ciclovia não ter um estudo do impacto que tais obras podem causar. É possível que, neste estudo, alguém se lembre de que, por mais que o solo esteja preparado e os materiais sejam os mais resistentes, tem uma tragédia anunciada ali. E esta ciclovia já pode nascer com prazo de validade vencido.

Fonte: G1, Amelia Gonzalez