Para as pessoas em risco, pode parecer o fim do mundo. Os moradores de Stinson Beach, um destino turístico popular perto de São Francisco, nos EUA, estão tendo que lidar com a perspectiva de que grande parte de sua vizinhança estará debaixo d’água em menos de 20 anos.
Os ricos podem construir casas com fundações elevadas e arcar com os custos de barreiras de contenção que vão reter a água do mar, ao menos por um tempo, mas os mais pobres terão que aceitar a perda de suas casas ou encontrar uma maneira de movê-las para terras mais altas.
Podemos acreditar que agora, no século 21, é a primeira vez que nossa espécie enfrenta esse tipo de tragédia, mas não é verdade. O nível do mar começou a subir há quase 15 mil anos, com o fim da última era do gelo.
O derretimento do gelo terrestre fez com que o nível do mar subisse em média cerca 120 metros desde então — às vezes, era como uma inundação, com a água subindo tão rápido que as pessoas se viam em uma luta desesperada para se antecipar e de alguma forma lidar com os enormes consequências.
Com a possibilidade de um aumento global catastrófico do nível do mar em 1 metro até 2050, que pode forçar milhões de pessoas a deixar suas casas, os pesquisadores começaram a ver com outros olhos histórias antigas de cidades submersas e destruídas pelo mar.
Não só costumam ser boas histórias, repletas de poesia e simbolismo, como também transmitem a memória coletiva de quem as viveu, e dentro das quais pode haver evidências factuais do que pode ter acontecido há milhares de anos quando as camadas de gelo derreteram.
Alguns pesquisadores argumentam que contos sobre rochas lançadas ao mar ou a construção de barreiras de contenção contêm informações factuais, embora exageradas e distorcidas até certo ponto.
Eles nos oferecem uma ideia de como nossos ancestrais se sentiram a respeito da elevação do nível do mar e o que fizeram a respeito, e podem fornecer evidências de que sua reação foi extremamente semelhante à nossa.
As percepções dos povos antigos podem, na verdade, salvar vidas no futuro.
Estes pesquisadores são conhecidos como geomitólogos. A geóloga americana Dorothy Vitaliano cunhou o termo em uma palestra de 1967 (baseando suas ideias nas do filósofo grego antigo Euhemerus, que se propôs a encontrar os eventos reais ou pessoas por trás dos mitos populares).
Embora as pesquisas dos geomitólogos sobre as origens da lenda de Atlântida ou do mito do monstro do Lago Ness possam ganhar as manchetes de maneira sensacionalista, o trabalho deles é estudar histórias antigas outrora consideradas mitos ou lendas, mas que agora são vistas como possíveis observações de fenômenos naturais por povos primitivos.
“Os geomitos representam os primeiros indícios do impulso científico”, diz a folclorista e historiadora da ciência antiga Adrienne Mayor, pesquisadora da Universidade de Stanford, na Califórnia, e autora do livro The First Fossil Hunters.
“Isso mostra que os povos da Antiguidade eram observadores atentos e usavam o melhor pensamento racional e coeso do seu espaço e tempo para explicar as forças naturais notáveis que vivenciaram”.
Hoje, o número cada vez maior de artigos publicados, citações e resultados de pesquisa no Google mostram que o interesse por tais trabalhos está crescendo na comunidade científica.
São eventos como erupções vulcânicas no início da história humana ou até mesmo temas bíblicos, que mostram como vulcões, terremotos e pragas podem ter moldado a história do Êxodo que aparece na Bíblia Hebraica.
“Os geólogos começaram a perceber que há realmente informações em algumas das tradições e histórias mais antigas da humanidade”, diz David Montgomery, da Universidade de Washington, nos EUA, autor do livro The Rocks Don’t Lie: A Geologist Investigates Noah’s Flood.
“E que embora seja um tipo de informação diferente daquela que tendemos a gravitar em torno na ciência contemporânea, ainda é informação”, completa.
No entanto, muitos geomitos podem estar com os dias contados, e o conhecimento local que eles contêm corre o risco de ser degradado e perdido.
“Nas ilhas do Pacífico, os idosos estão sempre reclamando comigo que os jovens ficam o tempo todo no telefone e que realmente não querem ouvir as histórias dos avós”, conta o geólogo Patrick Nunn, professor de Geografia da Universidade de Sunshine Coast, na Austrália, e autor do livro Worlds in Shadow: Submerged Lands in Science, Memory and Myth.
“Mas acho que no mundo todo, à medida que as sociedades orais [em que as histórias e as tradições são passadas de pessoa a pessoa nas conversas e eventos sociais] estão se tornando amplamente letradas, o conhecimento que era mantido oralmente está desaparecendo, mas é esse conhecimento indígena que vai ajudá-los a lidar com o aumento do nível do mar.”
Nunn é um dos principais geomitólogos do mundo.
Geólogo por formação, ele costuma ser encontrado de bermuda e camiseta, em um pequeno barco navegando entre as ilhas do Oceano Pacífico, com um gravador na mão.
A pesquisa dele se concentrou em algumas histórias sobre ilhas desaparecidas, como Teonimenu, que podem ser ouvidas em todas as ilhas espalhadas pelo Pacífico.
Para seu projeto de pesquisa mais recente, Nunn não precisou molhar os pés. Ele tem analisado histórias milenares da Austrália e do noroeste da Europa sobre como os povos antigos entenderam e responderam às diferentes experiências de aumento do nível do mar pós-glacial.
Ao longo da costa australiana, o nível do mar parou de subir significativamente há cerca de 6 mil anos, ao passo que continuou a subir no noroeste da Europa até os dias atuais.
Em quase todos os 23 grupos de histórias aborígenes australianas que Nunn estudou, a memória das mudanças na paisagem e no modo de vida causadas pelo aumento do nível do mar pós-glacial parece ter sido preservada desde 7 mil anos atrás.
Em dois grupos particulares, sua resistência parece evidente.
Uma dessas histórias, contada pelo povo aborígene Gungganyji nos arredores de Cairns, na costa de Queensland, pode ser ouvida em diferentes versões no nordeste da Austrália.
Nesta história, o mau comportamento de um homem chamado Goonyah fez com que o mar inundasse a terra, e ele então organizou o povo para impedir isso.
Em outra, ele levou o povo até uma montanha para escapar da água, onde trabalharam juntos para rolar pedras aquecidas no mar. Ao fazer isso, conseguiram conter seu avanço.
No noroeste da Europa, as histórias que Nunn e seus colaboradores estudaram são obviamente bem diferentes.
São pelo menos 15 histórias focadas no destino de cidades submersas, cada uma com um nome diferente, e estão concentradas ao longo da costa da Bretanha, das Ilhas do Canal da Mancha, da Cornualha e do País de Gales — áreas onde, diz Nunn, a “continuidade cultural” pode ter sido maior nos últimos milhares de anos.
Em duas histórias, as elaboradas barreiras de contenção da cidade sugerem que os habitantes haviam lutado uma batalha perdida contra o mar por gerações.
Na Bretanha, a história é sobre a cidade de Ys, governada pelo rei Gradlon, que era protegida por uma série complexa de barreiras marítimas que exigiam a abertura de portões na maré baixa para permitir que o excesso de água escoasse da terra.
Um dia, a filha do rei, Dahut, possuída por um demônio, abriu esses portões na maré alta, permitindo que o oceano inundasse a cidade, que acabou sendo abandonada.
No oeste do País de Gales, uma história semelhante é contada sobre o destino da cidade de Cantre’r Gwaelod, na Baía de Cardigan.
O trabalho de detetive não para por aí. Nunn foi capaz de reconstruir as linhas costeiras mencionadas nas histórias e, a partir do conhecimento das mudanças anteriores no nível do mar, estabeleceu uma idade mínima de 6 mil a 8 mil anos para essas histórias.
“Uma coisa que podemos aprender com essas histórias antigas é que o aumento do nível do mar não pode ser interrompido com muita facilidade por barreiras de contenção, como quebra-mares”, diz Nunn.
“A única solução de longo prazo são as soluções transformadoras, que realmente envolvem as pessoas saírem da zona de perigo.”
“A outra coisa que acho que podemos aprender é que os tipos mais eficazes de adaptações para esses tipos de pressões ambientais são locais. Isso é algo que a ciência realmente só descobriu nos últimos cinco anos, mas, se você voltar 7 mil anos, você pode ver que as pessoas agiram localmente e acreditaram na sua eficácia, e conduziram isso por conta própria. Não esperaram por instruções de outros lugares.”
Apesar do crescimento da geomitologia, ela ainda é vista como “excêntrica” por alguns acadêmicos.
“Provavelmente ainda tem um caráter indigesto para parte de cientistas e historiadores!”, diz Mayor.
“Mas as histórias geomitológicas são expressas em metáforas poéticas e imagens míticas ou sobrenaturais, e as descrições de eventos catastróficos e fenômenos naturais podem ser distorcidas ao longo de milênios e, por causa disso, os cientistas e historiadores tendem a não perceber o fundo de verdade e os conceitos racionais embutidos em suas narrativas.”
Nunn expõe esse argumento de maneira mais contundente.
“Sou um geólogo com formação convencional e posso dizer que muitos outros geocientistas com formação convencional realmente não gostam desse tipo de coisa. Muitos têm curiosidade, mas em geral, é algo considerado tão radical que as pessoas realmente não querem pensar a respeito.”
“Pessoas letradas também são intrinsecamente céticas sobre o poder das tradições orais de transmitir as coisas por meio de centenas de gerações.”
E, nesse contexto, aparecem ainda outras questões.
O fato de acadêmicos pegarem histórias de povos indígenas e publicarem pesquisas sobre as mesmas pode facilmente levar a acusações de apropriação cultural caso não sigam boas práticas simples, como pedir permissão primeiro.
A geomitologia enfrentou uma longa caminhada para ser considerada pelo meio científico, e esta jornada está longe de terminar.
Um ano depois de Dorothy Vitaliano usar o termo pela primeira vez, ela escreveu no Journal of the Folklore Institute que a geomitologia é a “aplicação geológica do evemerismo”, e que os geomitólogos poderiam “ajudar a converter a mitologia de volta à história”, e cinco anos depois ela publicou seu pioneiro livro Legends of the Earth (1973). Infelizmente, ele agora está esgotado.
Foram necessárias três décadas de interesse crescente sobre a área até o 32º Congresso Geológico Internacional realizar sua primeira sessão sobre geomitologia em 2004, na qual Vitaliano, já idosa, fez uma palestra para “250 pessoas em uma sala reservada para cerca de 100 pessoas” .
A geóloga morreu quatro anos depois, após ver a primeira coleção de artigos revisados por pares sobre o assunto, Mito e Geografia, lançada em 2007.
“Foi preciso muita coragem para ela publicar seu livro na década de 1970, e ela foi mantida à distância por vários geólogos por muito, muito tempo”, diz Nunn, que falou após Vitaliano naquele evento.
“Foi a sessão de 2004 no Congresso Internacional de Geologia que realmente ajudou a validar a geomitologia na cabeça de muitos cientistas.”
O campo fundado por Vitaliano começou a evoluir.
Pode ter levado 20 anos para Mayor pesquisar e escrever The First Fossil Hunters (2000), mas o livro que ela lançou criou o conceito de “mitos fósseis” porque foi o primeiro estudo sistemático de evidências para a antiga descoberta de fósseis.
Mayor é conhecida por ter feito a conexão entre as descrições gregas e romanas do lendário grifo, que ela achou que pareciam relatos de testemunhas oculares, e os incríveis fósseis de dinossauros que podem ser encontrados na superfície do deserto de Gobi, perto da Rota da Seda, usada para conectar comercialmente a Europa e a China.
Sua pesquisa mais recente inclui trabalhar com o paleontólogo Lida Xing, na China, para descobrir como as tradições orais chinesas sobre criaturas míticas explicam os rastros de dinossauros locais.
Em maio de 2021, o livro Geomythology: How Common Stories are Related to Earth Events, de Timothy Burbery, chegará às livrarias para se tornar o primeiro livro didático de geomitologia.
“Mayor colocou a geomitologia em outro patamar, não olhando apenas para eventos geológicos, mas também para os paleontológicos”, diz Burbery, professor de inglês na Universidade Marshall, nos EUA.
“E realmente tendo noção de quão traumático teria sido para os povos antigos encontrarem os ossos de algum animal enorme e estranho”, completa.
No fim das contas, a geomitologia desafia nossa maneira de pensar sobre nosso passado e nosso futuro.
“A geomitologia desafia a crença de que todos os mitos e lendas são apenas ficção e fantasia”, afirma Mayor.
“Geomitos são tesouros de informações e detalhes para as ciências físicas que, de outra forma, seriam perdidos.”
Segundo ela, novos geomitos podem até ser criados para as futuras gerações analisarem.
“Imagino que o aquecimento global, as mudanças climáticas e a elevação do nível do mar podem inspirar novos geomitos”, diz.
“A lição mais importante é que vamos sobreviver”, acrescenta Nunn.
“Isso não significa que não teremos que nos adaptar, em muitos casos de forma radical, para acomodar os efeitos da mudança climática. Mas significa que iremos sobreviver a ela”.
Fonte: BBC