Image captionHutton não chegou a testemunhar seu próprio legado, mas suas ideias mudaram nossa percepção sobre o tempo (Foto: John Van Hoesen)
“Só um pouquinho mais à frente, logo após a próxima curva”, disse Jim, meu guia, enquanto nosso barco de pescador desbravava as águas densas do Mar do Norte. Não foi muito tranquilizador. Mas, conforme avançávamos lado a lado, eu lembrei que o motivo da viagem valia a pena.
Nós estávamos refazendo uma jornada de 230 anos de existência, que mudou para sempre a perspectiva da humanidade sobre a história da Terra – e até do próprio tempo.
Nosso destino era o Ponto Siccar. Eu o havia visitado mais cedo naquele dia, mas a pé. Ao ficar de pé sobre os penhascos, a uma hora de distância de carro a leste de Edimburgo (Escócia), eu tive a impressão incontestável de estar em uma fronteira. Muito abaixo, lascas pontiagudas de rochas cinzentas mergulhavam no mar cheio de espuma. Nos penhascos em volta, porém, as pedras tinham um tom mais avermelhado.
Image captionO Ponto Siccar é uma das localidades geológicas mais importantes do mundo – e foi um fazendeiro de 62 anos quem desvendou sua importância (Foto: John Van Hoesen)
De repente, Jim deu um tapinha no meu ombro. “Logo ali”, apontou ele. Conforme nos aproximávamos, eu comecei a notar os afloramentos rochosos que o anunciam. Mais perto, o contraste entre as camadas verticais de pedra oceânica com a base do penhasco e as camadas horizontais de arenito bem mais acima estava claramente visível.
Em 1788, poucas pessoas entendiam a importância desse contraste. Foi um pensador iluminista – o fazendeiro de 62 anos James Hutton, que fez essa viagem em volta do Ponto Siccar há mais de dois séculos – que percebeu que ele comprovava a existência de um “tempo profundo”.
Muito antes da chegada de Hutton, o Ponto Siccar tinha uma importância histórica e geográfica. Mais de mil anos atrás, os britânicos antigos haviam construído um pequeno forte ali para espantar os invasores do norte. Mas ninguém havia percebido como o Ponto Siccar ilustrava a própria história da Terra.
Image captionMuito antes de James Hutton, o Ponto Siccar já tinha uma importância histórica (Foto: John Van Hoesen)
Na verdade, quase todas as pessoas na sociedade do século 18 ainda acreditavam que a Terra tinha entre 4 e 10 mil anos de idade, uma estimativa baseada em interpretações literais da Bíblia. Hutton acreditava que a Terra era na verdade muito mais velha. Era uma percepção que mudaria o curso da ciência.
Assim como muitas figuras-chave do Iluminismo Escocês do século 18, como o economista Adam Smith, o filósofo David Hume e o poeta Robert Burns, Hutton era um polimato (quem estuda ciências diversas). Nascido em 1726, ele entrou na Universidade de Edimburgo com apenas 14 anos e com 23 ele tinha um diploma de medicina da Universidade de Leiden, na Holanda, além de um interesse crescente em química.
Alguns anos depois, ele descobriu como isolar cloreto de amônio da fuligem. Hutton começou um negócio produzindo a substância em sais, tintas e metais, o que lhe garantiu riquezas pelo resto da vida.
Apesar do sucesso profissional, a vida pessoal de Hutton havia mudado para pior. Tido como um “homem de pouco caráter” pela elite de Edimburgo após ter um filho ilegítimo, ele se isolou em várias fazendas perto da fronteira entre a Escócia e a Inglaterra, terras que herdou de seu pai. Isso deu início a um fascínio pela agricultura que ele mais tarde descreveu como “o estudo da minha vida”. A agricultura levou sua mente inquieta a questionar os processos que formavam a Terra – e a própria idade da Terra.
“Uma das dificuldades que ele enfrentou foi muita erosão do solo”, disse Colin Campbell, chefe-executivo do centro de pesquisas Instituto James Hutton. “Ele ficava se perguntando como manter o solo na terra durante as tempestades. Mas ele começou a perceber que havia um processo de renovação: enquanto o solo era levado, um novo solo começaria a ser formado e esse ciclo levava bastante tempo”.
Hutton começou a entender que a Terra havia sido formada e esculpida em processos graduais, todos operando em escalas de tempo imensas e, depois de juntar seus pensamentos um a um lentamente, ele apresentou suas descobertas e um pequeno grupo acadêmico de filósofos na Sociedade Real de Edimburgo. Foi bem recebido. Mas, para convencer uma audiência maior, Hutton sabia que precisava de mais evidências.
Image captionHutton encontrou sua ilustração ideal da história da Terra no Ponto Siccar (Foto: John Van Hoesen)
Ele partiu Escócia adentro procurando paisagens com junções claras ou inconformidades, que ele acreditava representar intervalos de tempo entre diferentes períodos geológicos. Quanto mais visualmente evidente o contraste, mais fácil era ver que essas características haviam sido criadas separadamente ao longo de enormes períodos de tempo, com intervalos de até milhões de anos.
Assim que Hutton avistou o Ponto Siccar, ele sabia que havia encontrado o que procurava. Como o matemático John Playfair, seu companheiro naquele dia, descreveu mais tarde: “A mente parecia ficar um pouco tonta de olhar para tão longe no abismo do tempo”.
O palpite de Hutton estava certo. Hoje sabemos como certas pedras oceânicas foram formadas há 435 milhões de anos. Com o tempo, camadas de lama no fundo marinho endureceram, cresceram na vertical, subiram acima do nível do mar e então lentamente sofreram erosão, revelando as formações.
Image captionAs pedras grauvaque do Ponto Siccar foram formadas 435 milhões de anos atrás (Foto: John Van Hoesen)
Mas foram necessários outros 65 milhões de anos até que o arenito fosse formado. Isso aconteceu em um período climático muito diferente, quando a Escócia era uma região tropical que ficava um pouco ao sul da Linha do Equador. Lentamente, os rios que se formavam no período chuvoso depositaram desertos de areia no topo da pedra de grauvaque.
“Hutton percebeu que a formação e o movimento dessas rochas para criar o litoral que vemos no Ponto Siccar não poderia ter ocorrido em cataclismas repentinos no intervalo de anos ou décadas”, disse Iain Stewart, geólogo da Universidade de Plymouth. “Ele entendeu esse conceito da profundidade do tempo: são necessárias dezenas de milhões de anos para ter grandes mudanças no planeta como efeito. E isso é perfeitamente ilustrado pela desconformidade entre as camadas de pedra oceânicas e terrestres”.
As ideias de Hutton começaram a se tornar dominantes no começo do século 19, depois que Playfair publicou seu livro de ilustrações da Teoria Huttoniana da Terra, em 1802, resumindo as teorias de seu amigo. O livro incluía uma ilustração do Ponto Siccar.
Muitas décadas depois, o geólogo Charles Lyell escreveu a então inovadora obra de três volumes Os Princípios da Geologia, levando as ideias revolucionárias de Hutton ao público em geral e propondo uma idade indefinidamente longa da Terra.
“O próprio Hutton, durante sua vida, era conhecido por dar essas palestras impenetráveis”, diz Stewart. “Boa parte de sua escrita também era inacessível. Mas, para Playfair, e mais tarde Lyell, a lógica do seu pensamento era muito atraente e eles tiveram um papel fundamental na sua popularização e em fazer as pessoas aceitarem a longevidade da história da Terra”.
Image captionO arenito no local foi formado 65 milhões de anos após a formação da grauvaque, o que deu a Hutton a desconformidade que ele precisava (Foto: John Van Hoesen)
Essas ideias influenciaram intensamente o então jovem Charles Darwin, fornecendo boa parte da base para seus pensamentos, que acabaram o levando à teoria da evolução. “Se você acredita que a Terra tem apenas 4 mil anos, não há muito tempo para seleção natural e evolução”, disse Campbell. “Mas se você acredita que o mundo tem milhões e milhões de anos, isso lhe dá todo tempo que você precisa para a evolução. É por isso que Hutton teve um impacto tão grande no pensamento das pessoas nos séculos seguintes”.
O próprio Hutton nunca testemunhou o legado de suas ideias. Ele morreu em 1797, com 70 anos de idade, nove anos após sua visita ao Ponto Siccar. Apesar de ser um dos maiores cientistas da Escócia, sua morte mal foi homenageada e ele foi enterrado em uma cova sem identificação. Somente 100 anos mais tarde, um grupo de geólogos juntou recursos para criar uma lápide para ele.
“Ninguém sabe por que isso aconteceu”, diz Campbell. “Deve haver várias razões – ele não havia se casado, teve um filho ilegítimo. Algumas pessoas dizem que ele bebia muito e ficava mais feminino, mas isso pode ser um mito. Além de sua genialidade científica, há muita história pessoal sem explicação no caso de Hutton”.
Ainda assim, em um intervalo de décadas, as ideias de Hutton influenciaram a cultura popular e se tornaram amplamente aceitas, até mesmo pela Igreja Anglicana. Muito disso se deve não apenas a Hutton, mas ao próprio Ponto Siccar.
“É um contraste tão grande e óbvio não apenas no ângulo mas nas cores das pedras, e isso não dá margem para discussão”, disse Campbell. “Resume tão bem as teorias de Hutton, e eu acho que esse é um dos motivos para sua importância”.
Fonte: BBC