OBrasil completa em 2018 seu décimo ano na liderança do ranking de maior consumidor de agrotóxicos do planeta. Todos os anos, são utilizados 7,3 litros de veneno para cada um dos habitantes do País, volume que, em 2017, resultou em 11 registros de intoxicação por exposição a agrotóxicos por dia.
De acordo com um estudo feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no total, 164 pessoas morreram após entrar em contato com a substância; e 157 ficaram incapacitadas para o trabalho, sem contar as intoxicações que evoluíram para doenças crônicas, como câncer e impotência sexual, e a subnotificação, estimada pela Organização Mundial da Saúde, em 50 casos reais para cada um registrado.
Apesar dos dados indicarem o evidente mal proporcionado pelo uso de agrotóxicos, principalmente aos trabalhadores rurais, a lógica dominante é que toda técnica destinada a solucionar o desafio alimentar no mundo é moralmente justificável e, portanto, deve ser aplicada.
Essa retórica, porém, só encontra base em um “mundo ideologicamente dominado pelos preceitos do liberalismo econômico”, conforme indicou o “Dossiê: Alerta sobre os Impactos dos Agrotóxicos na Saúde”, elaborado pela Associação Brasileira de Saúde Pública (Abrasco).
“São fartas as evidências documentadas que comprovam que a produção de alimentos intoxicados não é uma necessidade irremediável para assegurar o abastecimento de uma população mundial crescente”, afirma o documento.
“Uma extensa compilação de estudos realizada por pesquisadores da Universidade de Michigan (EUA) demonstrou que os sistemas orgânicos de produção sistematicamente alcançam rendimentos físicos iguais ou superiores aos dos sistemas que lançam mão de agroquímicos.”
A lista com os tipos de cultura que mais demandam o uso de agrotóxicos comprovam que a segurança alimentar está longe de ser a preocupação. Isso porque, 40% do volume total entre herbicidas, inseticidas, fungicidas, acaricidas e outros (adjuvantes, surfactantes e reguladores) são utilizados em lavouras de soja, sendo que quase 80% da produção vira ração para o gado. Em seguida estão o milho com 15%, a cana e o algodão com 10%.
Segundo a Abrasco, agrotóxicos são utilizados em 27% das pequenas propriedades rurais, que são responsáveis pelo fornecimento de 70% da comida que para na mesa do brasileiro. Por outro lado, 80% das propriedades grandes, com mais de 100 hectares e geralmente ocupadas com sistemas de monocultura voltada à exportação, utilizam veneno em seus processos.
O que rola por aqui é um exagero mesmo, principalmente se comparada à realidade dos países da União Europeia. Por lá, a legislação afirma que a água potável pode conter 0,1 miligramas por litro de glifosato, o herbicida mais vendido no mundo.
Por aqui o limite mínimo é 5 mil vezes maior. No caso do feijão e da soja, a lei brasileira permite o uso no cultivo de quantidade 400 e 200 vezes superior ao permitido na Europa.
Ao que tudo indica, a permissividade da legislação é pouco para a bancada ruralista. Representando 40% do legislativo, na Frente Parlamentar Agropecuária estão os maiores interessados na aprovação da Lei 6299/2002, que altera a forma de avaliar registros de agrotóxicos no Brasil, em tramitação.
As mudanças propostas começam na própria nomenclatura: de agrotóxicos, passariam a ser chamados de “defensivos fitossanitários”. “A eventual substituição pelo termo ‘fitossanitário’ visa estabelecer um caráter inofensivo a substâncias que, manifestamente, não o são”, afirma o subprocurador-geral da República Nívio de Freitas, em nota técnica emitida pelo Ministério Público Federal (MPF).
Segundo o parecer, a proposta não apresenta sequer uma consideração diretamente ligada aos efeitos dos agrotóxicos sobre a saúde ou meio ambiente – fechando os olhos para o fato de essas substâncias matarem cinco vezes mais trabalhadores rurais do que os conflitos agrários, segundo a Comissão Pastoral da Terra.
A aprovação do Projeto de Lei 6299/2002, de autoria do atual Ministro da Agricultura Blairo Maggi, violaria, pelo menos, seis artigos da Constituição Federal. Entre os principais problemas, está a abertura para a possibilidade de registro de substâncias que tenham características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, ou provoquem distúrbios hormonais e danos ao sistema reprodutivo.
No PL, a proibição de registro é substituída pela expressão “risco inaceitável” para os seres humanos ou para o meio ambiente, ou seja, autoriza o registro em situações em que o uso permanece inseguro mesmo com a implementação das medidas de gestão de risco.
A nota do MPF ainda alerta que o PL estabelece apenas uma possibilidade de revisão do registro dos agrotóxicos: em caso de alerta de organizações internacionais. O dispositivo reduz o papel dos órgãos federais de agricultura e saúde, principalmente pelo fato de restringir a ação regulatória à mera homologação da avaliação de risco toxicológico e de risco ambiental já apresentada pelos produtores dos agrotóxicos. “Não pode o Estado renunciar aos seus mecanismos de avaliação e controle prévio de substâncias nocivas ao meio ambiente e à saúde.”
Se aprovada, a lei vai dispensar os vendedores de advertir os consumidores sobre os malefícios decorrentes do uso de agrotóxicos, o que é inconstitucional. É necessário que os agricultores reconheçam os produtos como tóxicos e perigosos e não como meros insumos agrícolas.
Essa medida é fundamental para que ocorra a devida proteção ao meio ambiente, à saúde e ao consumidor em sua utilização. Em outro ponto inconstitucional, a proposta ainda retira dos estados e do Distrito Federal a possibilidade de legislar sobre a matéria, o que viola a Constituição em seu artigo 23.
Fonte: Revista Galileu