Florestas conservadas ganham um papel inédito na atual Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas, a COP26, que ocorre em Glasgow, Escócia. Um pacto firmado por mais de 100 países, chamado Declaração dos Líderes de Glasgow sobre Florestas e Uso do Solo, é a maior iniciativa já vista nas negociações diplomáticas para frear o desmatamento e recuperar áreas degradadas.
A mobilização assinada nesta terça-feira (02/11), que se seguiu com a promessa de recursos para atingir os objetivos da declaração até 2030, é considerada bastante relevante. Doadores dos setores público e privado comprometeram pelo menos 17 bilhões de dólares, aproximadamente R$ 96 bilhões, voltados para países com florestas.
O Brasil, detentor de 60% da Floresta Amazônica, a maior tropical do mundo, está entre os signatários. O país tem estado sob os holofotes internacionais pela alta do ritmo de destruição do bioma, que ultrapassou a casa dos 10 mil quilômetros quadrados no balanço anual de 2019 e 2020 – o que não se via desde 2008.
Apesar de celebrado pela presidência da COP26, não se sabe exatamente como o dinheiro será distribuído geograficamente. As florestas boreais da Rússia, por exemplo, são as maiores em extensão do globo. Canadá, Estados Unidos, China e Austrália, além do Brasil, também têm grandes áreas dessa vegetação.
Há dúvidas ainda sobre quais critérios precisam ser cumpridos para que governos tenham acesso aos recursos anunciados e se organizações da sociedade civil, assim como povos indígenas, poderão pleitear o dinheiro.
“Em tese, o governo do Brasil não deveria ser elegível a receber recurso nenhum sem de antemão demonstrar resultado”, comenta Carlos Rittl, pesquisador associado ao Institute for Advanced Sustainability Studies (IASS), na Alemanha, e especialista em políticas públicas da Rainforest Foundation da Noruega.
Cenário crítico em casa
A situação brasileira é vista como duvidosa também por João Paulo Capobianco, do Comitê Brasil Clima, Florestas e Agricultura.
Celebrado no passado por ter reduzido o desmatamento na Amazônia em 80% de 2004 a 2012, o país colocou em xeque sua capacidade de combate à devastação da floresta após o rápido desaparecimento da vegetação observado nos anos recentes pelo sistema de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“O país jogou fora literalmente o acúmulo que tinha em conservação florestal”, disse Capobianco à DW Brasil. “Foi uma década de muito resultado positivo, mas o país desmontou esse sistema todo nos últimos anos”, analisa.
O momento atual é visto como de “total descontrole”, em que o desmatamento cresce associado ao aumento dos ataques aos povos indígenas e a áreas de conservação. “É um momento muito ruim não só pelo aumento do desmatamento, mas pela violência e pela forma como ele está desrespeitando todos os critérios que a lei prevê de proteção de áreas declaradas públicas”, comenta Capobianco.
Por esses motivos, a expectativa é que o dinheiro anunciado em Glasgow exija ações concretas dos países beneficiários. “A declaração nós temos, o que falta agora é governo”, critica Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima.
Durante a COP 26, a rede, formada por mais de 70 organizações, lançou um documento em que analisa os mil dias da administração de Jair Bolsonaro. Nele, o presidente brasileiro é classificado como o “negacionista climático mais perigoso do mundo”.
“Nenhum discurso verde pode apagar o fato de que, desde que Bolsonaro assumiu o cargo, uma área de floresta do tamanho da Bélgica virou cinza só na Amazônia. Ou que o Brasil foi provavelmente o único país do G20 a aumentar suas emissões de carbono no ano pandêmico de 2020. Ou que as políticas racistas de Bolsonaro em relação aos povos indígenas o tornaram o único presidente brasileiro a ser denunciado no Tribunal Penal Internacional”, pontua o documento.
Financiamento de projetos contra o desmatamento
Não é a primeira vez que uma iniciativa internacional promete acabar com o desmatamento. Em 1992, durante a Eco 92, uma declaração conjunta já pleiteava um esforço global para proteger todas as florestas. “Mas de lá, pra cá, só assistimos à perda florestal no planeta”, comenta Capobianco.
Em 2014, em Nova York, dezenas de países assinaram outra declaração prometendo reduzir pela metade a taxa de desmatamento até 2020, e interrompê-la até 2030 – o que, à época, não contou com apoio do governo federal brasileiro. O que o anúncio em Glasgow muda é que ele abarca mais países e é seguido pela promessa de recursos.
A ideia de financiar projetos que previnem e combatem o desmatamento foi acordada numa conferência do clima pela primeira vez em 2006, na COP12, em Nairóbi, Quênia. A proposta debatida pelo Brasil era condicionar o uso do dinheiro à redução do desmatamento, o que acabou dando origem ao Fundo Amazônia, em 2008.
Os recursos, doados principalmente pela Noruega e Alemanha, financiaram desde então 102 projetos em toda a Amazônia Legal com R$ 1,8 bilhão. Em 2019, após a chegada de Bolsonaro ao poder, o fundo foi paralisado. Desde então, nem mesmo os projetos que já haviam sido aprovados receberam apoio.
“Atualizando monetariamente, são R$ 3,2 bilhões depositados hoje, sem uso, simplesmente porque o governo Bolsonaro não gosta da estrutura de governança que tinha participação da sociedade civil para controle social”, comentou Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex–presidente do Ibama, num debate sobre o tema em Glasgow.
O que falta
De modo geral, a Declaração dos Líderes de Glasgow sobre Florestas e Uso do Solo demonstra que o desmatamento é encarado como um problema grave e que precisa ser enfrentado com apoio global e com dinheiro.
Por outro lado, é preciso mais empenho de países que são grandes consumidores de produtos que, direta ou indiretamente, têm ligações com o corte da floresta. No caso do Brasil, essa lista vai além da madeira e da soja.
“A Europa, por exemplo, está discutindo uma legislação para eliminar desmatamento das suas importações, mas que não inclui commodities importantes como couro e carne processada”, critica o pesquisador Carlos Rittl.
Para ele, se todos os vetores do desmatamento não forem incluídos, é possível que, além de produtos, as importações europeias contenham também resquícios de conflitos gerados por atividades econômicas em comunidades locais e em territórios indígenas.
“Não adianta só jogar recursos nos países em desenvolvimento sem fazer a parte do lado do consumo também. É preciso coerência”, argumenta.
Fonte: Deutsche Welle