Encontrada na entrada de cavernas do Parque Estadual Intervales, em Ribeirão Grande (SP), uma larva de mosquito aparentemente não tinha interesse para o grupo do bioquímico Vadim Viviani, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em Sorocaba, que investiga a capacidade de alguns seres vivos de produzir a própria luz.
A larva do gênero Neoditomyia, porém, mostrou-se um promissor objeto de estudo. Apesar de não emitir luz como alguns outros insetos da família Keroplatidae na ordem Diptera, das moscas e mosquitos, ela possui uma molécula imprescindível aos animais bioluminescentes desta família, a luciferina.
A descoberta, inédita na região neotropical, foi publicada na revista Photochemical & Photobiological Sciences.
As outras 15 espécies da família Keroplatidae que possuem luciferina só são encontradas nos Montes Apalaches nos Estados Unidos (uma espécie), na Nova Zelândia (oito), na Austrália (uma) e na Eurásia (cinco). Todas são bioluminescentes.
“Se o que encontramos aqui possui luciferina mesmo sem emitir luz, é possível que a molécula tenha uma outra função bioquímica no organismo que ainda não sabemos”, disse Viviani à Agência FAPESP.
A larva de mosquito da Mata Atlântica não emite luz porque tem apenas um dos elementos para isso, a luciferina. Trata-se de uma molécula pequena que, ao ser oxidada (exposta ao oxigênio), emite luz.
Para que a luciferina seja oxidada e emita luz, no entanto, o animal precisa produzir também a luciferase, uma enzima que catalisa a reação bioluminescente. As parentes do hemisfério Norte e da Oceania, além de insetos como os vagalumes, possuem essas duas moléculas e, por isso, fabricam a própria luz.
As estruturas moleculares das luciferinas e das enzimas luciferases de dípteros e vagalumes são completamente diferentes, uma não reage com a outra para produzir luz. Somente a luciferina e a luciferase do mesmo organismo conseguem reagir para produzir luz.
Para saber se a substância encontrada na larva do mosquito era mesmo luciferina, ela foi misturada à luciferase purificada de Orfelia fultonii, espécie encontrada nos Apalaches. Para surpresa dos pesquisadores, a mistura gerou uma luz azul similar à da espécie do hemisfério Norte.
As enzimas parecidas com luciferases de besouros já haviam sido encontradas antes em especies não luminescentes. Entretanto, a ocorrência de luciferinas em organismos terrestres sempre estava restrita às espécies luminescentes, não ocorrendo em espécies não luminescentes, daí a novidade da descoberta.
Além de Viviani, o trabalho teve ainda como autores o pós-doutorando Danilo Trabuco do Amaral e a doutoranda Vanessa Rezende Bevilaqua, ambos da UFSCar e bolsistas da FAPESP, além da pós-doutoranda Rafaela Falaschi, da Universidade Estadual de Ponta Grossa. O estudo integra o Projeto Temático “Bioluminescência de Artrópodes”, financiado pela FAPESP.
Uso em laboratório
Mais do que encantar as pessoas que encontram as espécies bioluminescentes à noite, as substâncias presentes nelas têm bastante aplicação nas áreas de pesquisa médica, biotecnológica, industrial e farmacêutica. Por meio de manipulação genética, células específicas podem ser marcadas com substâncias bioluminescentes e serem facilmente visualizadas no microscópio.
“Elas já são usadas para marcar células de câncer, testar a viabilidade de espermatozoides, detectar patógenos e mesmo metais pesados em amostras de água”, disse Viviani, que também é presidente da International Society for Bioluminescence and Chemiluminescence (ISBC).
Quando for caracterizada por completo, a nova luciferina poderá ser utilizada também para aplicações analíticas, incluindo marcar células específicas. “Ainda não sabemos todo o potencial aplicativo dessa nova substância, mas ela tem peculiaridades em sua composição química que podem levar a muitos outros usos”, disse Viviani.
O professor da UFSCar lembra que luciferina e luciferase que produzem luz azul possuem aplicações diferentes na biotecnologia em relação à luciferina e luciferase de vagalumes que produzem luz verde-amarela, por terem mais energia.
Evolução recente
Os autores do estudo agora publicado testaram ainda larvas de outras duas espécies de mosquito, em busca de luciferina que interagisse com a luciferase da Orfelia fultonii.
Embora a Arachnocampa luminosa seja conhecida por emitir luz para enganar suas presas em cavernas na Nova Zelândia, o ensaio em laboratório mostrou que ela possui um sistema bioluminescente diferente, pois não emitiu luz quando em contato com a luciferase da espécie dos Montes Apalaches.
O mesmo ocorreu com as amostras de Aedes aegypti, mostrando que o mosquito transmissor da dengue, chikungunya, zika e febre amarela não possui moléculas similares à luciferina, pelo menos não que interajam com a luciferase testada.
O estudo, porém, abre caminho para a busca de substâncias bioluminescentes em outras espécies. A ocorrência da luciferina em uma larva não luminescente pode indicar outra função biológica importante da substância nessa família de mosquitos. Além disso, pode implicar que a bioluminescência é uma característica evolutiva mais recente, tendo surgido em mosquitos que já possuíam luciferina para outras finalidades biológicas.
Os pesquisadores não excluem a possibilidade futura de aplicar esses conhecimentos com luciferina e luciferase de mosquitos luminescentes no controle de mosquitos que são vetores de doenças, pois essas moléculas são ideais para marcar células e investigar processos intracelulares.
“Além disso, se a luciferina de dípteros e compostos relacionados tiverem função importante na fisiologia do organismo, poderíamos eventualmente interferir na reprodução dos mesmos”, disse Viviani.
A próxima etapa do projeto é determinar a estrutura química da nova luciferina, o que Viviani pretende fazer em colaboração com o professor Cassius Stevani, do Instituto de Química da USP, e outras instituições parceiras.
O artigo Orfelia-type luciferin and its associated storage protein in the non-luminescent cave worm Neoditomyia sp. (Diptera: Keroplatidae) from the Atlantic rainforest: biological and evolutionary implications (doi: 10.1039/c8pp00207j), de Vadim R. Viviani, Danilo T. Amaral, Vanessa R. Bevilaqua e Rafaela L. Falaschi, pode ser lido em: https://pubs.rsc.org/en/content/articlelanding/2018/pp/c8pp00207j.
Fonte: Agência FAPESP