Infestação de escorpiões desespera famílias no interior de SP e Ministério da Saúde cria ‘força-tarefa’

Divulgação/Instituto Butantan
Aumento de incidentes é tão grande que o número de mortos por picadas de escorpião ultrapassou o de picados por cobras

A fotógrafa Caroline Ruffo, de 38 anos, moradora de Americana, cidade a 120 km de São Paulo, precisou mudar do bairro Terramérica para se ver livre da infestação de escorpiões em sua casa – em 20 dias, encontrou pelo menos 10 bichos.

A técnica em RH Jessika Martins, de 27 anos, que mora no Jardim São Pedro – bem em frente a um tradicional colégio da cidade – encontrou 31 escorpiões em sua casa num período de 15 dias e até o trilho do box do banheiro ela retirou em busca de ninhos do animal.

A dona de casa Lúcia Marchesin, de 38 anos, já foi picada duas vezes pelo pequeno aracnídeo, precisando receber soro antiescorpiônico nas duas ocasiões.

Os relatos acima mostram um pequeno retrato do aumento dos casos de acidentes envolvendo escorpiões não apenas no interior de São Paulo, mas em todo o Brasil – o que tem levado as famílias ao desespero para tentar eliminar os animais de dentro de casa.

Segundo série histórica do Ministério da Saúde feita a pedido da BBC News Brasil, o número de casos passou de 52.509 em 2010 para 124.903 no ano passado – um salto de 138% nos registros. Se considerarmos as mortes, o aumento no período foi de 152%, saindo de 74 em 2010 para 184 em 2017.

O aumento de casos é tão expressivo que o número de mortos por picadas de escorpião ultrapassou o de picados por cobras – que até então lideravam o ranking de animais peçonhentos que mais matam no Brasil.

Apesar de o crescimento ser um problema nacional, os Estados de São Paulo e de Minas Gerais são os que exibem a situação mais alarmante: ambos registraram, respectivamente, 26 e 22 mortes por picadas de escorpião no ano passado.

Ainda em Americana, a dona de casa Daiana Pântano, também moradora do bairro Terramérica, já desembolsou cerca de R$ 5.000 reais para capinar terrenos vizinhos à sua casa que estão abandonados e para comprar produtos para vedar frestas e dedetizar sua casa.

Em Santa Bárbara d’Oeste, cidade vizinha, uma criança de 10 anos morreu no início deste mês após ser picada duas vezes por um escorpião.

A primeira picada foi no pé. Ao reagir pela dor, a criança também foi picada na mão. Ela chegou a ser socorrida, mas morreu antes da chegada do soro.

Na mesma semana, uma criança de 13 anos foi picada dentro de uma escola estadual na cidade e um detento foi picado dentro da cadeia pública. Ambos foram atendidos em hospital e passam bem.

Jessika, o marido Rafael Bezerra e as filhas Eloah, de 2 anos, e Ágatha, de 1 ano
Jessika Martins encontrou 31 escorpiões num período de 15 dias em sua casa na cidade de Americana

Força tarefa para educar médicos e agentes de saúde

O Ministério da Saúde reconhece o problema e afirma que desde 2009 faz campanhas educativas com os profissionais de saúde dos Estados para orientá-los a respeito do pequeno aracnídeo.

Mas, diante do crescimento acelerado de picadas, juntou forças com o Instituto Butantan – fabricante do soro antiescorpiônico – para elaborar uma série de vídeos educativos e ferramentas educacionais voltadas para médicos e agentes de saúde, com foco na vigilância, prevenção e assistência das vítimas.

A médica Fan Hui Wen, gestora de projetos do Núcleo Estratégico de Venenos e Antivenenos do Butantan, é uma das responsáveis pelo material que está sendo elaborado e será distribuído aos Estados a partir de 2019.

De acordo com ela, o objetivo é orientar os profissionais de saúde a não negligenciarem possíveis casos de envenenamento e que requeiram o uso imediato do soro. Também serão oferecidas vídeo-aulas para técnicos e agentes responsáveis pela vigilância em saúde.

“Até agora, estamos enxugando gelo no combate aos acidentes com escorpião. Os casos estão aumentando e precisamos encontrar uma resposta para a população. Essa parceria vai permitir fornecermos educação e treinamento à distância para todo o País”, afirma Wen.

Pesquisa para entender o comportamento da espécie

E não é apenas o Ministério da Saúde que está buscando formas de controlar a infestação de escorpiões. O Butantan também firmou uma parceria com a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) para iniciar uma pesquisa inédita que vai mapear a evolução dos casos e buscar entender o comportamento da espécie – no caso, o Tityus serrulatus, o escorpião amarelo, o mais comum na região Sudeste.

Escorpiões encontrados na casa de Jessika Martins em Americana
Escorpiões encontrados na casa de Jessika Martins em Americana

Segundo Wen, no começo dos anos 2000, os casos ficavam restritos à região de Ribeirão Preto. Hoje, já há casos em todo o Estado de São Paulo, e também na região Sul do País.

“Precisamos entender como o escorpião se comporta, como ele se desloca. Ele não anda quilômetros, ele é levado de um lugar para o outro. Hoje em dia já nem conseguimos dizer mais qual é o seu habitat natural, de tão bem que ele se adaptou às áreas urbanas”, diz a médica.

O professor Francisco Chiaravalotti Neto, do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP, será um dos coordenadores do projeto. Ele explicou que o mapeamento das ocorrências será feito por meio das notificações de caso, sem coleta in loco dos animais.

Dessa forma, explica o professor, será possível pensar novas estratégias de saúde pública e redefinir critérios de distribuição do soro antiescorpiônico, por exemplo.

“Hoje, a logística de entrega do soro é baseada nos casos de picadas de cobra. Mas já sabemos que os escorpiões estão mais perigosos que as cobras. Essa pesquisa nos dará um norte e, talvez, a estratégia de entrega do soro mude”, afirmou o professor.

Buscar foco de escorpião como se busca o de dengue

A médica Fan Wen, do Butantan, espera que os resultados da pesquisa tragam respostas à população e, mais do que isso, novas estratégias de combate às picadas.

Extração do veneno do escorpião para fabricação do soro antiescorpiônico
Extração do veneno do escorpião para fabricação do soro antiescorpiônico

Na opinião dela, é preciso que as vigilâncias sanitárias das cidades alterem sua rotina de fiscalização e incluam o escorpião nas buscas, assim como acontece com a dengue.

“O agente de saúde vai de casa em casa buscando focos de dengue para evitar casos, certo? Não dá mais para trabalharmos de forma isolada. Os municípios precisam incluir a busca de focos de escorpiões na rotina e fazer com que os agentes procurem o escorpião além do mosquito da dengue”, avalia.

Aquecimento global e aparecimento de baratas

Mas, afinal, por que o número de acidentes com escorpiões tem crescido tanto na última década? Segundo o Ministério da Saúde, ainda não há uma resposta específica e nem se pode atribuir a um único fator. Mas é fato que o aumento da temperatura global tem influenciado na reprodução da espécie.

“Os escorpiões gostam de ambientes quentes e úmidos. Há inúmeros estudos sendo feitos analisando o aumento da temperatura com o aparecimento dos escorpiões”, afirma Wen.

Outro fator que ajuda a proliferação dos escorpiões é o crescimento desordenado das cidades, com aumento da quantidade de lixo e entulhos. Nesses locais, há o aparecimento de baratas e onde há baratas, há escorpiões.

“Cada ser humano produz, em média, 1 kg de lixo por dia. Onde tem lixo, tem barata. E no calor, elas aparecem ainda mais. As baratas são o principal alimento dos escorpiões”, explica o biólogo Randy Baldresca, especialista no aracnídeo e consultor em controle de pragas.

Fabricação do soro antiescorpiônico
Depois de diluído, o veneno extraído dos escorpiões é injetado em pequenas doses em cavalos

Além disso, a fêmea do escorpião não precisa do macho para se reproduzir – ela entra num processo chamado partenogênese e consegue se reproduzir sozinha, liberando de 20 a 30 filhotes a cada ciclo.

“A fêmea encontrou tudo o que precisa para seu ciclo biológico: calor, umidade, comida e abrigo”, diz a médica Wen.

Dedetizar não adianta

Ainda não existe um tipo de veneno específico para o combate aos escorpiões, por isso, as pessoas dedetizam suas casas e os bichos continuam aparecendo. Segundo Baldresca, um dos equívocos é aplicar inseticida em casa achando que vai matar os animais. De acordo com ele, os escorpiões possuem um exoesqueleto, um tipo de carapaça, que os protegem.

“Quando ele sente o veneno, ele fica irritado com o cheiro e pode até ficar grogue, mas não vai morrer. No máximo, vai se deslocar procurando outro abrigo. Então, ao invés de matar, que era o efeito desejado, você só vai espalhar mais o animal”, orienta o biólogo.

Como cada um pode se proteger?

Diante de um cenário tão desfavorável, os especialistas recomendam ficar atentos à limpeza de casa e dos terrenos vizinhos. “É preciso que haja uma mudança de comportamento das pessoas. Não adianta nada eu manter a minha casa limpa se a casa do lado está cheia de mato e entulho”, diz Wen.

Ao encontrar um animal em casa, as orientações são: não tente pegar o escorpião, isso pode causar um acidente. Mate-o e se certifique de que ele realmente morreu; não passe inseticida, pois eles não vão eliminar os escorpiões, vão fazer apenas eles se deslocarem temporariamente; não acumule lixo; não deixe louça na pia de um dia para o outro para não atrair baratas; coloque telas nas janelas e nos ralos; vede rachaduras e proteja os vãos sob as portas. Se morar em casa, criar galinhas d’Angola é uma ótima saída, pois elas comem escorpiões.

Se você for picado, procure imediatamente o hospital mais próximo para avaliar a necessidade de recebimento do soro antiescorpiônico. O veneno do escorpião é neurotóxico e ataca o sistema nervoso central, podendo ser letal. Segundo a médica Wen, a maioria das picadas é sem gravidade, mas, nos casos graves, o socorro imediato é fundamental.

“Se nada for feito para combater a proliferação dos escorpiões, a tendência é que os acidentes aumentem em 70% nos próximos dois anos”, alerta o biólogo Baldresca.

A fabricação do soro

O Instituto Butantan, vinculado ao governo de São Paulo, é um dos responsáveis pela fabricação do soro antiescorpiônico para o Ministério da Saúde. O Instituto recebe os animais e os cria num biotério.

A Prefeitura de Americana, por exemplo, já mandou para o Butantan até outubro deste ano mais de 13 mil escorpiões recolhidos nos dois cemitérios da cidade.

Ao chegar, os animais passam por uma triagem para avaliar como chegaram, se não estão letárgicos ou machucados. Em seguida, eles passam por uma quarentena, para avaliar sua resistência. São mantidos em caixas que simulam o seu ambiente preferido, com água, baratas e temperatura estável.

A cada mês, os escorpiões adultos são levados para extração manual do veneno. O veneno extraído é levado para ser diluído e aplicado em cavalos, de forma que o animal não sinta o envenenamento.

Segundo a médica Wen, é o cavalo que vai produzir anticorpos de defesa contra aquele veneno aplicado. Em seguida, os anticorpos que estão no sangue (no plasma) do cavalo são separados e as hemácias (células vermelhas do sangue) são devolvidas ao animal.

“Os cavalos são animais de grande porte que respondem bem à imunização. São animais dóceis, de fácil manejo”, explica Wen.

O plasma é a matéria-prima para a produção do soro – o anticorpo está no plasma, que passa por um processo de purificação antes de virar remédio.

Soro antiescorpiônico
Butantan enviou 44 mil doses de soro antiescorpiônico no período de um ano ao Ministério da Saúde

“Um mesmo cavalo trabalha anos e anos. Cada animal é submetido a quatro ciclos de imunização por ano. O processo todo tem várias etapas e pode demorar de seis a oito meses”, disse Wen.

Para se ter uma ideia da quantidade de escorpiões usada na fabricação de soro, Wen disse que enviou 44 mil doses de soro antiescorpiônico no período de um ano ao Ministério da Saúde – e para isso usou cerca de 12 mil escorpiões.

A indicação do uso do soro depende da reação do paciente após a picada. Em geral, o principal sintoma é uma dor aguda. Mas se houver sudorese, agitação, náuseas, vômito e falta de ar, há a indicação imediata do uso do soro.

“As toxinas causam alterações cardíacas e é preciso agir com rapidez”, afirma Wen.

As prefeituras de Americana e de Santa Bárbara d’Oeste informaram que o aumento de casos acontece por causa do crescimento acelerado das cidades. Dizem que o controle dos animais é feito por meio de coleta noturna em cemitérios e que a maior incidência de acidentes ocorre nos meses mais quentes do ano, mas que o risco para acidentes graves, principalmente em crianças, permanece o ano todo.

As autoridades ainda dizem que a população deve manter limpos o quintal e o jardim; evitar acumular entulho e lixo para não atrair baratas e outros insetos (alimentos preferidos dos escorpiões); examinar roupas e calçados antes de vestir; verificar toalhas de banho e as roupas de cama; utilizar luvas de couro quando for trabalhar com materiais de construção e evitar andar sem calçados.

Fonte: BBC