A onça-pintada se aproxima devagar e silenciosa, procurando não ser notada. Seus olhos estão fixos na possível presa, um tamanduá-bandeira, que tem praticamente o mesmo tamanho. Já o tamanduá, que não enxerga nem escuta bem, sente a presença do predador com seu olfato acurado.
Alertas, as duas espécies latino-americanas, ambas consideradas vulneráveis à extinção, ficam bem próximas uma da outra e calculam os movimentos.
Então, o embate acontece. Mas não é o predador que ataca a presa. É o tamanduá-bandeira que parte em defesa própria. Avança em direção à onça-pintada e parece tentar dar um soco com sua forte pata dianteira, munida de garras longas e afiadas – seu interesse é apenas se defender, já que se alimenta de formigas e cupins.
Após o ataque do tamanduá, o felino se afasta com muita agilidade. E desiste da caçada, pois a presa é valente demais.
Cenas como essas são momentos raros da vida selvagem do Brasil. Nos últimos anos, foram registradas em vídeo duas vezes. Uma delas pelo projeto Onçafari, no Refúgio Ecológico Caiman, em Mato Grosso do Sul, em setembro de 2018. Outra, na Reserva Biológica do Gurupi, no Maranhão, em janeiro de 2016, pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
“Monitoramos a onça-pintada há oito anos. Nesse período, só avistamos a onça tentando predar tamanduá umas cinco vezes – e ela só teve sucesso uma vez”, diz Mário Haberfeld, coordenador do Onçafari. Nas imagens registradas pelo projeto, o tamanduá repele a aproximação de uma onça fêmea com cerca de dois anos, conhecida pela equipe do projeto como Xereta.
“O imaginário das pessoas é que é sempre um encontro fatal, em que a onça é quem preda. Mas há uma série de fatores que dão o resultado final. Por exemplo, se é um tamanduá mais maduro e se a onça está com pouca fome”, explica o biólogo Rodrigo Viana, fundador e pesquisador do Instituto Jurumi, que trabalha com tamanduás. “A tendência do tamanduá é fugir, mas se ele se sentir ameaçado, pode tentar se defender”.
“O tamanduá é uma presa da onça, mas não é a principal. Ele vai de fato tentar se defender, usando suas garras. A onça foge porque reconhece o risco”, afirma Ronaldo Morato, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap) do ICMBio, que faz monitoramento de biodiversidade com câmeras noturnas – uma delas, inclusive, que registrou o encontro entre o tamanduá e a onça no Gurupi, em 2016.
Onça e tamanduá enfrentam ameaças parecidas
Originalmente, a onça-pintada e o tamanduá-bandeira viviam espalhados do Sul da América do Norte até o Sul da América do Sul. Mas, ao longo do tempo, foram perdendo grande parte do seu habitat natural. Em diversos países, como os Estados Unidos e o Uruguai, as espécies já estão extintas.
Hoje, é no Brasil que vivem em maior número. Mas também por aqui são consideradas vulneráveis à extinção. Antes, viviam espalhadas por todo o país, de Norte a Sul. Já agora, estão praticamente extintas nos Pampas, no Rio Grande do Sul, e são pouco vistas na Mata Atlântica e na Caatinga. A Amazônia e o Pantanal são as regiões onde ocorrem com mais frequência.
“A onça-pintada e o tamanduá-bandeira já não estão presentes em diversos locais do Brasil. Onde um deixou de existir, o outro também”, explica Rodrigo Viana, do Jurumi.
“As onças-pintadas estão bem na Amazônia e no Pantanal. Nos Pampas, estão extintas. Na Caatinga e na Mata Atlântica, estão super ameaçadas”, fala Haberfeld, do Onçafari. Ao longo de oito anos, o projeto identificou 134 onças – a identificação se dá pelo padrão de pintas, que é como uma digital, único para cada animal. O mesmo ocorre com o tamanduá-bandeira, que já é considerado extinto na maior parte do Sul do Brasil e também no Rio de Janeiro.
A principal ameaça às duas espécies é a perda de habitat, provocada pelo desmatamento, avanço da produção agrícola e da pecuária e implantação de rodovias. Estima-se que o número de animais das duas espécies tenha caído 30% nas últimas três décadas.
No caso específico das onças-pintadas, a espécie também é caçada por pecuaristas que querem se vingar caso o felino tenha atacado o gado.
Já os tamanduás-bandeiras, que têm movimentos lentos, são frequentemente vítimas de atropelamento em rodovias. “Outro problema é que pessoas matam o tamanduá porque acham que ele é perigoso. Mas não é”, explica a bióloga Flavia Miranda, uma das maiores especialistas brasileiras nessa espécie, do Instituto Tamanduá. “Ele é muito tranquilo, até nos movimentos”, completa Rodrigo Viana.
O maior felino das Américas e uma das espécies mais antigas do continente
A onça-pintada é o maior felino do continente americano. Pode pesar mais de 100 quilos e ter mais de 1,5 metro de comprimento, sem contar a cauda. Extremamente ágil, não tem nenhum predador natural.
Seu cardápio favorito são antas, capivaras e jacarés, mas também pode incluir predar o tamanduá. Costuma sair para caçar no final da tarde e à noite.
O ICMBio estima que existam apenas cerca de 10 mil onças-pintadas no Brasil. Cada uma delas pode ocupar uma área de até 260 quilômetros quadrados.
Já o tamanduá é uma das espécies mais antigas da América Latina, com mais de 50 milhões de anos, explica Flávia Miranda. “São fósseis vivos”, diz ela.
O bicho é bem mais leve que a onça-pintada, pesando entre 30 e 40 quilos. Mas tem porte semelhante. Pode medir mais de 2 metros de comprimento, contando a extensa cauda repleta de pelos longos, à semelhança de uma bandeira hasteada – por isso, seu nome.
Sua dieta alimentar são insetos. Por dia, pode chegar a comer cerca de 30 mil cupins ou formigas. A força da pata dianteira e as garras com de 8 a 10 centímetros servem para arrebentar cupinzeiros.
“O tamanduá não tem dente, então cuida da garra com todo o carinho e só usa para se defender ou para achar cupinzeiro ou formigueiro”, diz Flavia Miranda.
Fonte: Amanda Rossi – BBC