“O Rio? É doce/ A Vale? Amarga/ Ai, antes fosse/ Mais leve a carga.” Em 1984, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu estes versos sobre a maior empresa de mineração do Brasil – e não foi por acaso.
Tanto o poeta quanto a Vale nasceram em Itabira, cidade a 107 km de Belo Horizonte. Em mais de uma ocasião, o escritor fez críticas em seus textos sobre os impactos da mineração em sua terra natal: “Quantas toneladas exportamos/ De ferro?/ Quantas lágrimas disfarçamos/ Sem berro?”
A mesma Itabira vive em estado de atenção após barragens se romperem em Mariana, em 2015, e em Brumadinho, em janeiro deste ano. O primeiro incidente é considerado o maior desastre ambiental da história brasileira. O segundo, uma das piores tragédias recentes do país, ao deixar ao menos 165 mortos, 160 pessoas desaparecidas e dezenas de famílias desabrigadas.
O motivo da preocupação aparece frequentemente no horizonte dos 110 mil habitantes de Itabira. A Vale tem 15 barragens no município, das quais cinco ficam próximas do perímetro urbano – entre elas, as duas maiores, Pontal e Itabiruçu. Em alguns bairros, as casas terminam onde começa a represa de rejeitos de minério de ferro.
As cinco barragens mais próximas do centro da cidade armazenam 423 milhões de m³ de rejeitos, segundo os dados mais recentes da Agência Nacional de Mineração – o número é de janeiro deste ano. É um volume equivalente a 33 vezes o que havia na primeira barragem que se rompeu na mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho.
Essa proximidade aumenta especialmente o receio de quem mora perto delas. “O pessoal está com medo, sem saber o que pode acontecer”, diz o aposentado Sebastião Duarte.
Ele vive com a família há 12 anos em uma chácara a 500 metros de Itabiruçu, uma estrutura com 130,8 milhões de metros cúbicos de rejeitos. “Penso em me mudar”, diz o aposentado. “Estamos vendo se a Vale vai nos tirar de lá e nos indenizar.”
Cidade pede explicações à Vale
A Prefeitura pediu à Vale um diagnóstico da segurança das barragens. A maioria delas tem avaliação no cadastro da ANM como de alto dano potencial em caso de ruptura. Todas são classificadas como de baixo risco – assim como eram as barragens de Mariana e Brumadinho, que se romperam.
“Depois de Mariana, achamos que tinham sido tomadas as medidas necessárias e que a gente estava seguro, mas, com o que aconteceu em Brumadinho, a nossa cabeça gira. A população está assustada”, diz o prefeito Ronaldo Magalhães (PTB).
Ele calcula que 14 mil habitantes da cidade estariam vulneráveis a rompimentos de barragens. “A Vale nos diz verbalmente que está tudo sob controle, mas queremos os relatórios por escrito”, diz Magalhães.
Os vereadores de Itabira convocaram executivos da mineradora para dar explicações sobre o estado das estruturas em uma sessão da Câmara. O encontro está previsto para o próximo dia 19.
“Paira uma tensão no ar da cidade. Como estão nossas barragens? Vai acontecer aqui também?”, questiona o vereador André Viana, presidente do Sindicato Metabase de Itabira e Região, que representa trabalhadores da indústria de mineração.
Os vereadores também querem fazer uma análise independente, em parceria com pesquisadores de universidades federais. “A Vale vem e diz que está tudo bem, mas ninguém acredita mais na palavra dela”, afirma Viana.
À BBC News a Vale disse em nota que os planos para o caso de emergências das 15 barragens já foram protocolados na prefeitura e na Defesa Civil Municipal e que todas as estruturas têm “declarações de estabilidade aplicáveis e passam por constantes auditorias externas e independentes”.
Informou ainda que são feitas inspeções quinzenais, reportadas à ANM, órgão ligado ao Ministério de Minas e Energia responsável pela fiscalização de barragens de mineradoras. “Os dados de monitoramentos demonstram que as estruturas estão estáveis. Toda essa documentação está à disposição das autoridades.”
Drummond acusou mineração
A Vale foi criada em Itabira em 1942 por Getúlio Vargas (1882-1954) para explorar a riqueza mineral do quadrilátero ferrífero mineiro. Na época, ainda chamava-se Companhia Vale do Rio Doce.
As primeiras barragens foram erguidas na cidade nas décadas de 1970 e 1980. A construção da segunda maior delas, Pontal, com 226,95 milhões de m³ de rejeitos, foi inclusive feita sobre o local onde ficava uma das fazendas da família de Drummond, que o poeta frequentou durante a infância.
Também presente na obra de Drummond, o Pico do Cauê era um dos principais cartões-postais de Itabira com seus 1.400 m de altura. Também não existe mais. Foi dilapidado pela mineração, e, em seu lugar, resta uma cratera.
Drummond costumava dizer que a mineração extrai sem colocar nada no lugar, não finca raízes onde atua e migra para outro ponto quando os recursos se esgotam.
“O maior trem do mundo/ puxado por cinco locomotivas a óleo diesel/ engatadas geminadas desembestadas/ leva meu tempo, minha infância/ minha vida/ triturada em 163 vagões de minério e destruição”, diz um de seus poemas.
E prosseguiu: “Lá vai o maior trem do mundo/ vai serpenteando vai sumindo/ e um dia, eu sei, não voltará/ pois nem terra nem coração existem mais.”.
Vale movimenta 70% da economia da cidade
Hoje privatizada, a Vale extrai em Itabira 41 milhões de toneladas de minério de ferro por ano – 11% de sua produção deste metal. A companhia responde por 30% da receita de Itabira e, de forma direta e indireta, movimenta 70% da economia local, diz a prefeitura.
“Queremos uma produção responsável, porque não pode deixar de produzir. É o principal fator econômico da cidade”, afirma o vereador André Viana. “Gostem ou não, a empresa gera 10 mil empregos diretos e indiretos. Não é um assunto simples.”
O ex-vereador Bernardo Mucida critica a empresa ao dizer que ela tira vantagem de sua importância para a economia local e faz “chantagem” sempre que precisa ter aprovados novos planos, como a recente elevação de Itabiruçu.
“Eles vêm e dizem: ‘se não aprovar, a mina vai parar, vai ter demissão, vai cair a arrecadação’. É sempre essa pressão”, afirma Mucida.
Na nota enviada à BBC News Brasil, a empresa não respondeu diretamente a esta questão. Declarou apenas que “está aberta ao diálogo e que mantém contato com os poderes Executivo e Legislativo municipais com o objetivo de esclarecer dúvidas e buscar soluções”.
Barragens de Itabira são consideradas mais seguras
Diferentemente de Mariana e Brumadinho, as barragens de Itabira usam um método considerado mais seguro para elevar seus diques e, assim, ampliar sua capacidade – um alteamento, no jargão da indústria.
As barragens que se romperam nas outras cidades mineiras eram ampliadas com a técnica a montante, mais comum e barata. Os rejeitos são depositados na própria barragem, formando uma “praia” de resíduos que, com o tempo, é adensada. Este material é usado para os alteamentos.
Em Itabira, as barragens são elevadas a jusante. Ou seja, é usado o mesmo material do dique inicial ou de outro tipo, como pedras e argila. É um método mais caro, que ocupa mais espaço e provoca maior impacto ambiental, com desmatamento, de acordo com especialistas.
“Nossa situação é melhor do que a de outras cidades que têm barragens a montante. Isso nos tranquiliza um pouco, porque o risco de rompimento é menor, mas não é zero”, diz o prefeito Ronaldo Magalhães.
A Vale diz ter instalado no ano passado um sistema com 28 sirenes de alerta na cidade e afirma estar finalizando o cadastro dos moradores em áreas vulneráveis. Também informou que fará em 2019 treinamentos e simulados de emergência com funcionários da empresa e as comunidades locais.
A prefeitura diz ter pedido que a companhia acelere este trabalho. “O prazo anterior era até julho deste ano, mas isso vem avançando lentamente, está atrasado. Queremos que esteja tudo concluído até abril. E não adianta instalar as sirenes e colocar cartaz explicando o que as pessoas têm que fazer. Queremos que eles passem de casa em casa”, afirma Magalhães.
O aposentado Sebastião Duarte conta ter notado que existe agora uma sirene perto de sua casa, mas diz que, até o momento, a Vale não bateu em sua porta.
“Colocaram uma sirene aqui, mas ninguém deu explicação nenhuma, e nunca ligaram a sirene. Nem sei se funciona.”
Quanto à Drummond, o poeta nunca mais retornou à Itabira até morrer, depois de uma visita final em 1948. Ele guardava de lembrança uma fotografia da cidade emoldurada na parede de casa, como disse em um dos seus poemas.
Em 1981, explicou em uma entrevista que isso causou “um certo aborrecimento” com os moradores de Itabira que “achavam que era pouco caso” com a cidade e explicou que sua ausência era por não querer “assistir às ruínas do meu passado”.
“Ao contrário, isso é o testemunho da presença pungente de Itabira na minha vida, no meu ser. Não vou lá porque meus parentes morreram, meus amigos morreram. Itabira é hoje uma cidade de gente de fora, da Companhia Vale do Rio Doce. Então, eu vou lá para quê? Para ver um passado meu que não existe mais? Para sofrer, me angustiar?”, disse Drummond.
“Vejo a minha Itabira do passado na minha fotografia na parede. Sou melhor itabirano aqui. Quando eu preciso meter o pau na Companhia Vale do Rio Doce, eu reclamo, xingo. Não adianta nada, mas eu lavo a alma.”
Fonte: BBC