Pela última vez, Edson Albanez retorna aos escombros do sítio onde morou por 30 anos. Atrás do portão de ferro que ficou intacto, montes de lama e destroços estão sobre tudo o que existia ali – casa, piscina, animais de estimação, veículo, documentos, recordações de uma vida.
O terreno fica a menos de um quilometro do ponto de colapso da barragem da Vale em Brumadinho, Minas Gerais. Quando a estrutura rompeu, há um mês (25/01), o tsunami de rejeitos da mineração destruiu, sem aviso, o que encontrou pela frente a uma velocidade de 70 km/h.
A esposa de Albanez, Sirlei de Brito Ribeiro, não conseguiu fugir a tempo – os dois funcionários da casa que trabalhavam no local sobreviveram. Ela era Secretária de Desenvolvimento Social da cidade, seu corpo foi encontrado cinco dias depois.
“Aos 64 anos, tenho que recomeçar minha vida de um jeito que nunca imaginei. Sem a minha esposa, sem o meu ambiente. Perdi tudo”, diz Albanez, que trabalhou na Vale, sua vizinha de terreno, por 22 anos. No momento da catástrofe, ele estava numa reunião em Belo Horizonte.
Perto dali, homens e mulheres do Corpo de Bombeiros continuam as buscas no grande vale de lama que se formou depois da enxurrada de rejeitos. Um mês depois da tragédia, as equipes usam máquinas pesadas na tentativa de localizar 139 desaparecidos. Até o momento, foram encontrados e reconhecidos 171 corpos de vítimas. Nos últimas dias, os bombeiros têm recuperado apenas fragmentos – há mais de 150 que aguardam resultado de análise de DNA.
A equipe de resgate, que chegou a contar com 470 militares por dia, hoje atua com 138. Eles vasculham cerca de 269 hectares com apoio de helicópteros, tratores anfíbios e escavadeiras para atender a dois objetivos: recuperar os corpos e restabelecer a normalidade na comunidade.
Maria Aparecida dos Santos, 44 anos, diz viver os dias mais anormais da sua vida. Ela atribui à Vale a culpa pelo sofrimento e humilhação. “A minha revolta nunca vai passar. Eu não me conformo com aquela sirene: a gente ouviu tanto ela tocar nos treinamentos de emergência e no dia do desastre ela não soou”, diz Santos, que era funcionária de uma fazenda que foi devastada, onde também morava.
Desde então, a família de Santos ocupa um dos 470 quartos de hotéis pagos pela Vale para os desabrigados. Outras 74 casas foram alugadas em Brumadinho e em Belo Horizonte, respondeu a empresa à DW Brasil.
Tudo o que Santos tem agora foi doado: das roupas ao dinheiro para comprar remédios. Sem casa e sem emprego, a família dela ainda não recebeu qualquer apoio financeiro da Vale.
No dia do rompimento da barragem, ela chegou dez minutos antes em casa para esquentar o almoço para a filha, que estava sozinha. Depois de ouvir um estrondo e sentir uma “ventania”, Santos correu quando notou que um mar de lama se aproximava.
Ela gritou pela filha, pegou o celular e pediu a Ana Clara, de nove anos: “Não olhe para trás”. Os chinelos que usavam foram engolidos pela lama.”Quando o nível parou de subir, liguei para meu marido e avisei que a lama estava descendo. Consegui salvar umas 25 vidas”, conta.
Sebastião Oliveira, 65 anos, estava a salvo, mas correu na direção dos rejeitos quando ouviu gritos. Conseguiu salvar uma jovem que estava atolada e que ele nunca mais viu. Refugiado na casa da filha, – o sítio onde morava como caseiro está isolado – ele só conseguiu acesso ao local por estar na companhia da Defesa Civil.
A Vale ainda não consegue explicar as causas do desmoronamento da barragem. Um comitê independente foi criado para investigar o caso. Desde o episódio, um clima de insegurança ronda cidades com barragens do tipo: moradores em Barão dos Cocais, Nova Lima e Ouro Preto foram evacuados em “caráter preventivo”, como alega a mineradora. Segundo a empresa, 744 pessoas tiveram que deixar suas casas nesses municípios.
Diferente da experiência de Mariana, onde em 2015 o colapso da barragem de Fundão matou 19 pessoas, destruiu vilarejos e contaminou o rio Doce até chegar ao Atlântico, a Vale se apressa para compensar em dinheiro as vítimas em Brumadinho.
Uma doação de R$ 100 mil é feita a familiares das pessoas mortas após um registro de representantes das vítimas junto à empresa. Para moradores, produtores rurais e comerciantes atingidos, a Vale se propôs a doar R$ 15 mil ou R$ 50 mil, segundo os critérios da empresa.
A mineradora vai pagar ainda um salário mínimo para todos os moradores de Brumadinho por um período de um ano. O acordo foi assinado com diferentes órgãos públicos numa audiência no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Paralelamente, promotores e defensores públicos atuam numa ação coletiva contra a Vale em busca de indenização para todos os afetados. “A gente quer chegar numa solução construída com a participação das pessoas, com uma reparação justa e integral e o mais rápido possível”, comentou Antônio Lopes de Carvalho, defensor público no estado.
Na unidade de extração de minério da Vale em Brumadinho, as atividades estão suspensas. Os funcionários que sobreviveram irão receber os salários até o fim de 2019. Depois disso, tudo é incerto.
A movimentação no área próxima à antiga barragem é intensa para a reparação de estradas e contenção dos rejeitos. A mancha de contaminação continua escorrendo do local pelo córrego do Feijão até o rio Paraopeba, importante fonte de água para a região. A estimativa do Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos é que os rejeitos tenham percorrido, até agora, 150 quilômetros pelo rio. As multas aplicadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) ultrapassam R$ 250 milhões.
“Eu não tinha mais força, mas consegui escapar por causa da minha filha”, relembra Maria Aparecida dos Santos. “Mas a tragédia está aí, correndo pelo rio, e tem ainda tanta gente naquela lama. Eu acho que a cidade acabou. Mas eu vou ficar até o fim dos dias na Terra lutando por justiça”, declara Santos, que espera notícias de amigos e vizinhos que ainda não foram encontrados.
Fonte: Deutsche Welle