Lançada pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), a campanha Segunda Sem Carne, presente em mais de 40 países, completa 10 anos no Brasil como a maior do mundo. Em 2018, foram 67 milhões de refeições servidas em escolas públicas, refeitórios de empresas e restaurantes populares.
Em entrevista à DW, a coordenadora do Segunda Sem Carne no Brasil, Mônica Buava, aborda a mudança de estratégia no ativismo vegano, o papel do mercado de produtos sem ingredientes de origem animal e as barreiras para que mais pessoas adotem a dieta. Para ela, o maior empecilho são as lembranças afetivas associadas aos hábitos alimentares.
DW: Como você avalia esses dez anos da Segunda Sem Carne no Brasil?
Mônica Buava: A Segunda Sem Carne já chegou ao Brasil com apoio institucional da Secretaria do Verde e Meio Ambiente do município de São Paulo. Nesses dez anos, trabalhamos ativamente com outras instituições governamentais, secretarias, empresas, formadores de opinião e a cada ano a campanha cresce mais. Fechamos 2017 com 47 milhões de refeições, 2018 com 67 milhões e estamos projetando 80 milhões para 2019, sem contar as refeições das pessoas em casa.
O que contribuiu para o crescimento da campanha no país?
Segundo o Datafolha, 67% da população quer reduzir o consumo de carne. Nesses dez anos, o acesso à internet fez com que as pessoas conhecessem melhor a indústria da carne e os benefícios de uma alimentação baseada em vegetais. Apesar de o Brasil ser um dos maiores produtores de carne e de o consumo per capita ser alto, o brasileiro gosta muito de animais. A maioria dos lares tem animais de estimação, há uma comoção popular muito forte quando há denúncia de maus tratos.
Tem também a questão da saúde. Havia alguns mitos sobre proteína, cálcio e tudo isso está sendo desmascarado. Os estudos têm mostrado cada vez mais que uma alimentação baseada em vegetais é melhor para a nossa saúde. E tem a questão ambiental. A produção de proteína vegetal é muito mais eficiente do que a produção de carne, sob qualquer parâmetro, como o uso de água, de solo.
Se você perguntar para a grande maioria das pessoas se elas querem uma saúde melhor e um meio ambiente mais equilibrado, todo mundo quer. Ninguém vai falar ‘acho super justo’ para o que acontece com animais nas granjas e nos matadouros. Então é mais uma questão de ajudarmos as pessoas a descobrirem novos sabores e introduzirem novos hábitos.
Mas o engajamento em defesa dos direitos dos animais é muito maior com alguns animais do que com outros e não ao ponto de parar o consumo de carne.
Sim, é o início da expansão do círculo de compaixão. A gente acredita que cada passo é válido.
E o papel do mercado?
O mercado tem um papel importantíssimo. Quando eu virei vegana, há 15 anos, foi muito importante ter um creme vegetal e um leite de soja de caixinha porque eu era uma adolescente que comia pão francês com manteiga e leite no café da manhã. Foi muito importante porque o gosto do prato mudou um pouco, mas não visualmente.
Além disso, existem os carnistas convictos, os vegetarianos e veganos e a turma do meio, que são aquelas pessoas que querem reduzir, mas também vão ao churrasco, que chamamos de reducionistas. Hoje empresas líderes de laticínios produzem opções veganas porque o mercado está mostrando que o consumidor, mesmo aquele que consome produtos de origem animal, quer reduzir, quer alternativas. Quanto mais opções houver, mais essas pessoas vão optar por esses produtos e isso vai fomentar esse mercado, que é o que está acontecendo.
Nos Estados Unidos a previsão do instituto Euromonitor International é que o mercado de carne alternativa dobre até 2023, mas o consumo mundial de carne não cai, pelo contrário. Afinal, o vegetarianismo está ou não decolando?
Ele está decolando, mas a população está crescendo, e a carne ainda tem um status social. Você tem a China e a Índia se abrindo mais para esse mercado. São países com uma população gigantesca. Há também um aumento do consumo per capita. No Brasil, por exemplo, o Ministério da Saúde recomenda menos de 200g de carne por dia, e o brasileiro chega a consumir até 500g. Então as pessoas que estão consumindo carne estão consumindo muita carne. Então, o aumento mundial no consumo de carne vem da expansão de mercados e do aumento do consumo individual de quem come esses alimentos.
Existem vários movimentos hoje que propõem a redução do consumo de carne e não a eliminação total do consumo. A estratégia do ativismo vegano mudou?
Acho que sim. Está se aprendendo que a polarização pode ser danosa. Mudar de hábitos do dia para a noite é muito difícil. Um estudo nos Estados Unidos, se não me engano, mostrou que a adotar o veganismo passo a passo leva a uma decisão que é muito mais consolidada do que mudar tudo de uma vez. A grande maioria da população precisa se adaptar à nova rotina, por isso essas campanhas, como a Segunda Sem Carne e outras, como o Desafio 21 dias Sem Carne, crescem tanto dentro do movimento vegano e entre influenciadores. E quanto mais reducionistas a gente tiver, mais vai fomentar o mercado, e assim vai virando um ciclo virtuoso.
Quais barreiras ainda precisam ser vencidas para que a adesão dos brasileiros aumente?
A social. É o costume do churrasco de domingo ou do pão de queijo com café. Essas novas opções alimentares cumprem um papel social muito interessante porque ajudam as pessoas a manter sua rotina social, mas com uma alternativa completamente vegetal.
O que precisamos, e esse é o convite da Segunda Sem Carne, é inserir novos sabores e, através deles, colocar novos protagonistas no prato para fazer com que as celebrações com familiares e amigos continuem acontecendo, mas com alimentos mais alinhados com aquilo que queremos.
Outra barreira, um pouco mais complexa, é o mundo acadêmico. Temos várias pesquisas que mostram que uma alimentação baseada em vegetais é benéfica para a nossa saúde, mas você não tem, nas faculdades de Nutrição, uma matéria sobre alimentação vegetariana. Como pode 14% da população se declarar vegetariana e nas universidades não ensinarem isso? A SVB trabalha para ajudar os profissionais que querem se capacitar porque as universidades ainda estão muito ultrapassadas.
Os críticos dizem que não faz sentido deixar de comer carne para comer soja, cujo cultivo também é associado ao desmatamento. O que você tem a dizer sobre isso?
Ótimo porque não faz sentido mesmo comer soja, mas quem é que come soja? Os bois.
Mas a maioria das carnes alternativas no Brasil é feita de soja.
Mas a soja que está acabando com os biomas não é a soja para produtos vegetarianos, é a soja para criar animais. A gente tem muito mais animais no Brasil do que gente, e eles consomem água, terra e comida. Então se a preocupação é a questão ambiental, mais um motivo para reduzir o consumo de produtos de origem animal porque são esses animais os grandes comedores de soja. Do farelo de soja, 95% vai virar ração.
Além disso, quem come carne come muito mais agrotóxicos do que quem não come porque a soja transgênica consome mais agrotóxicos, e os animais têm um processo chamado de bioacumulação. Ou seja, ao longo dos anos, eles vão acumulando essas substâncias no seu tecido adiposo, e depois as pessoas comem essa bomba de veneno.
Qual é o retorno que vocês recebem de pessoas que participam da campanha porque a empresa ou escola aderiu? Ou seja, de pessoas que participam, mas não por iniciativa própria.
Nesta semana eu recebi depoimento de colaboradores de uma empresa parceira que queriam ser vegetarianos e, com a Segunda Sem Carne, viram que é possível. Recebi depoimentos dessa mesma empresa de pessoas que nunca tinham comido cogumelos e estavam felizes por comer comida diferente. Existem desafios e algumas críticas, mas até mesmo dentro das escolas públicas existe uma aprovação alta no teste de aceitabilidade (realizado pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar).
O que percebemos é que as pessoas estão dispostas abrir a cabeça e o leque de possibilidades. O que ninguém está disposto, e eu acho mais do que certo, é de abrir mão do sabor. Tem um estrategista do movimento vegano que diz que o maior inimigo do movimento não é a indústria da carne, mas a comida vegana ruim. Eu concordo. Não importa a versão do veganismo que a pessoa vai querer, do junk food ao raw plant based, o que importa é que a comida seja saborosa.
Fonte: Deutsche Welle