No último 6 de maio o mundo acordou com os resultados divulgados pela ONU do mais importante diagnóstico sobre o estado da biodiversidade no mundo: 1 milhão de espécies de animais e vegetais ameaçadas. O número é o resultado de uma compilação de 15 mil estudos dos últimos três anos foi feita pela Plataforma Intergovernamental para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos. E no caso dos oceanos a notícia é ainda mais grave – por conta da sobrepesca, pelo menos 60% dos estoques de peixes marinhos estão no limite.
Nove dias depois dessa constatação catastrófica sobre o futuro do planeta, acompanhamos um projeto com o objetivo de recuperação e repovoamento de uma espécie marinha emblemática: a garoupa-verdadeira.
Numa quarta-feira ensolarada, mas com água ainda turva no litoral norte de São Paulo, esta repórter e o fotógrafo Luciano Candisani testemunharam, junto à equipe da Associação Ambientalistas Terraviva (Atevi), a soltura de duas mil jovens garoupas, a última de 2019. O Projeto Garoupeta tem apoio da Fundação Grupo O Boticário e outros parceiros, e um prazo de duração de dois anos. Neste primeiro ano, a missão era soltar dez mil garoupetas, duas mil por vez.
O local da ação foi o Santuário Ecológico Marinho da Ilha das Cabras, uma área conservação municipal na Ilhabela, litoral norte de São Paulo, região de ocorrência das garoupas.
Cada área foi escolhida após muitos mergulhos de pesquisa sobre a biomassa para permitir segurança ao crescimento das garoupinhas no ambiente. O projeto fará o monitoramento e senso visual da espécie a cada 60 dias.
“O que estamos buscando é entender como a soltura das garoupas pode impactar o ambiente. Queremos saber como a biomassa evoluirá depois dessas solturas. Quantas garoupas vamos encontrar por aqui?”, conta a veterinária e presidente da Atevi, Claudia Kerber.
Após meia hora de navegação ao lado das duas mil garoupinhas nadando em um tanque com uma pedra de oxigênio – monitorado de perto pela veterinária –, chegamos ao local escolhido. Este é um ponto selecionado porque atende requisitos importantes: desde profundidade, presença de tocas e de outros indivíduos da espécie no local.
Definido o ponto de soltura, os mergulhadores transportam as garoupetas em gaiolas na água. Cada “lote” tem 500 peixes. A soltura é fracionada para garantir que as jovens garoupas não sejam alvo fácil de predadores e se espalhem melhor nas tocas.
A visibilidade neste dia não era muito boa. Não passava de 1,5 m. Mas isso não é importante para os peixes. A soltura foi realizada pelo mergulhador e caiçara Felipe “Caranha”. Ele também é pescador e ficou muito emocionado pela chegada deste dia.
Caranha conta que se sente como a mãe das garoupas. E faz sentido. Há mais de uma década, foi ele o responsável pela captura dos primeiros exemplares para os testes iniciais no laboratório de reprodução. Hoje ele cuida também da circulação da água nos tanques do projeto e na busca dos ambientes ideais para as próximas solturas.
“Para nós que nascemos na Ilhabela a garoupa é muito mais que nota de cem reais: representa a família, representa a união”, disse Caranha. “Quando a gente pesca uma garoupa dividimos ela no almoço com a família. Os nossos antepassados com certeza estariam apoiando o que está acontecendo hoje aqui.”
A garoupa-verdadeira é uma espécie marinha considerada topo de cadeia – carnívora, controla o equilíbrio dos corais e se alimenta de moluscos e pequenos peixes. Mas é de crescimento lento, demora 50 anos para atingir 50 quilos. Por conta do tamanho, é é muito procurada pela pesca tradicional e pela caça submarina (hoje proibida no Brasil). Felizmente, ela também é muito “caçada”, em outro sentido, por mergulhadores. É uma grande emoção observar este peixe bem desenvolvido em seu ambiente.
As caraterísticas únicas da garoupa deixaram a espécie na lista vermelha de espécies ameaçadas da IUCN, na categoria vulnerável. Isso significa que a sua pesca ainda é permitida, mas com uma série de restrições com relação ao tamanho. Tudo bem definido pela portaria 445 do MMA. A garoupa só pode ser pescada a partir de 47 centímetros. E não pode ser maior que 73 centímetros.
Apesar das regras, acolhidas pelos pescadores de Ilhabela, por exemplo, ainda existe muita pressão e procura pela garoupa-verdadeira. “Ainda vejo muitas postagens em redes sociais de caça sub com garoupas fora do tamanho permitido”, conta Claudia Kerber.
Laboratório único no mundo
A vontade do casal para recuperar a espécie tão importante para o litoral começou há 12 anos. Claudia e o marido Pedro Antônio dos Santos tinham a Peixaria Comunitária, onde vendiam apenas espécies trazidas pelos pescadores locais. Não demorou para notarem o declínio da oferta de garoupa e outras espécies. Como veterinária, Claudia decidiu mudar essa perspectiva.
O casal criou em Ilhabela o único laboratório no mundo, coordenado pela Redemar Alevinos, para criação de garoupas e o primeiro e único do Brasil na produção de peixes marinhos com finalidade comercial. A produção de alevinos em laboratório é uma das soluções para conseguir o repovoamento de espécies fundamentais para a recomposição de estoques pesqueiros.
As jovens garoupas soltas têm 120 dias e 15 gramas. O tamanho é uma questão crucial – se uma garoupa é solta muito pequena, vira alvo fácil de predador. E se ela é muito grande, tem que se acostumar a ativar os instintos, o que leva um tempo. Por se tratar de uma ação pioneira, o resultado será colhido com o tempo.
Ao final do dia, Claudia Kerber comemorou a última soltura do ano e início da nova etapa: “Com as informações, teremos dados para propor novas políticas públicas para outros lugares onde a garoupa já desapareceu.”
Agora é esperar os dados de monitoramento. E que mergulhadores e pescadores do litoral de São Paulo tenham logo boas histórias para contar sobre garoupas.
Fonte: National Geographic