Era um dia calmo, sem qualquer indício de que más notícias vinham em minha direção para partir minha vida em duas.
Eu tinha acabado de me acomodar no acampamento, tomava café com biscoitos – biscoitos doces sul-africanos. Estava a trabalho em um safári no delta do Okavango, em Botsuana, e depois de uma caminhada matinal, parei para fazer um balanço de tudo o que havia visto. O brilho reluzente de flores amarelas, babuínos em posição de lótus, pegadas de hipopótamo, pássaros verde-limão. Era uma manhã muito bonita.
Dois dias antes, nosso guia, Simon Byron, me trouxera até aqui com meu colega fotógrafo Felix Odell, cruzando canais pantanosos cobertos por plantas aquáticas. Estávamos nas profundezas de um pântano labiríntico, dormindo em tendas às margens de águas negras.
Esta foi a segunda etapa de uma expedição de três partes pelo delta do Okavango. A primeira foi uma jornada confortável e emocionante que se estendia do amanhecer ao anoitecer em busca da singular vida selvagem da região. Era o fim da estação chuvosa, e os animais eram abundantes, estavam contentes em banhar-se na grama da primavera. Filhotes de elefantes e girafas balançavam ao lado de suas mães, e pequenos javalis saltitavam atrás de seus pais. A savana pulsava com vida, como se, em vez de água, sangue quente corresse pelas planícies inundadas. A única coisa que queria ver e não vi foi um leopardo, o predador mais furtivo de todos – e o que eu mais desejava ver em Botsuana.
A parte seguinte da jornada foi uma imersão no deserto intocado e, sem aparelhos eletrônicos para arruinar o silêncio, eu já sentia que minha alma estava se recuperando de alguma coisa. O cheiro de sálvia, jasmim e manjericão silvestres soprava pelos campos, e eu me perguntava se era algum tipo de narcótico, de tão profunda a minha sensação de calma.
Ruído distante
Byron disse ter ouvido um ruído distante de leopardo no começo da madrugada, mas era improvável que essas criaturas arredias passassem pelo acampamento ao ar livre. Eu tinha mais alguns dias em Botsuana, então não tinha pressa.
Mais tarde naquela manhã, Byron recebeu uma mensagem. Estávamos a dois aviões e um barco de distância de uma torre de celular, então um telefone via satélite era nosso único meio de comunicação. “Você precisa ligar para casa”, me disse baixinho. Em outra ocasião, eu teria sido tomada por uma fantasia mórbida, pelo medo de que algo tivesse acontecido com um dos meus filhos.
Finalmente, uma voz me trouxe de volta do espaço sideral. “Ela faleceu em paz”, disse meu marido. “O sofrimento dela acabou”. A ligação cortou bruscamente e eu fixei o olhar no aparelho na palma da minha mão.
“Minha mãe está morta”, pensei. E eu estava do outro lado do mundo.
Eu a tinha visto em Boston apenas uma semana antes. A região americana da Nova Inglaterra (que junta seis Estados do nordeste dos EUA) estava se preparando para uma nevasca no final do inverno e, enquanto eu seguia o habitual rito de estocar café, vinho e pipoca, meu pai ligou. Em dois dias, eu deveria deixar Connecticut para o Botsuana. “Sua mãe piorou”, ele disse. “Eu queria que você soubesse disso”.
“Estou indo para aí”, disse, e segui rumo a Massachusetts, em direção à tempestade.
Minha mãe estava se aproximando de seu quarto ano de Alzheimer. Para uma doença já marcada pela crueldade, a dela era extraordinariamente trágica. Ela não tinha linguagem inteligível e parecia estar em estado de terror mortal. Certa vez ela me atacou, assim como atacou suas outras três filhas devotas. Ela me reconhecia? Espero que não. Não havia nada de reconhecimento, muito menos de amor. Foi uma morte em vida, e eu a perdi há muito tempo.
Estava quente em seu pequeno quarto. Meu pai, uma das minhas irmãs e eu tocamos as músicas que ela amava. Mergulhei um cotonete na limonada e ri quando ela o mordeu com força, como uma criança com um pirulito. Eu narrei histórias sobre seus netos. Sua beleza retornara nesse estado liminar. Seu rosto era suave, sua cor rosada. Enquanto isso, o tempo em Massachusetts tinha fechado totalmente. Ficamos presos por duas noites e dormimos em colchões perto da minha mãe, acasulados por uma camada de neve do lado de fora.
Meu pai, um médico, não estava otimista de que ela “acordaria”, mas essa doença enigmática estava repleta de truques, e não havia como prever o que qualquer dia traria. Isso já tinha acontecido antes nos últimos quatro anos, e eu dizia “adeus” toda vez que a deixava. Minha família me pediu para ir à África para o trabalho que eu amava. Minha justificativa era simples: na verdade, não acreditava que minha mãe morreria.
“Vejo você em duas semanas, mãe”, sussurrei. “Eu vou encontrar um leopardo para você. Prometo.”
Minha mãe tinha a habilidade de encontrar caminhos sem precisar de mapas. Em outra época, ela poderia ter liderado uma expedição pela Amazônia, mas passou décadas como esposa e mãe dona de casa. Mas depois que os filhos saíram de casa, ela finalmente atendeu, com viagens, ao chamado de sua mente inquieta e curiosa. Sua viagem favorita foi um safári no Quênia com meu pai, onde ela viu de tudo, menos um leopardo. Ela amava aqueles lindos gatos, era fascinada pela delicadeza de seus movimentos, sua força e calma, como se nos alertassem para não mexer com eles.
E agora, eram negócios inacabados. Eu devia a ela pelo menos isso. Eu estivera ausente em seu leito de morte e me perguntava se a ferida da minha culpa poderia se curar. Mas eu também estava em Botsuana para trabalhar, e a tristeza começou a pintar cores inesperadas na minha tarefa.
Byron e Odell esperaram eu me recompor. Estava anestesiada. “Minha mãe”, repetia.
“O que você gostaria de fazer?”, perguntou Byron. Entramos no barco em direção ao emaranhado de água e deserto. O universo tem maneiras de oferecer conforto, e nos oferecia isso a cada passo. Tais sinais são visíveis apenas para os que estão dispostos a vê-los, e a pura vivacidade de Botsuana estava me preparando graciosamente para minha perda.
O delta estava repleto de lírios e aves coloridas. Como se meus olhos fossem telescópios, vi as penas de cobalto de um martim-pescador-malaquita através de um arbusto de bambus. Sob uma nuvem cor de carvão, fios de chuva caíam sobre a água distante. Byron abriu uma garrafa de champanhe. “Qual era o nome da sua mãe?”, ele perguntou.
“Ruth”, respondi.
Levantamos nossas taças para a vida, a morte, a luz, a escuridão, o terreno e o eterno. “À Ruth”, brindamos.
Naquela noite, fui tomada pela realidade da minha distância, e Byron me emprestou seu telefone via satélite. Eu encontrei sinal no barco sobre um canal cheio de crocodilos. Na escuridão líquida, vi vários pares de olhos amarelos de hipopótamo do outro lado da margem.
Uma de minhas irmãs falava em meio ao ruído de estática. “Você teve um belo adeus na segunda-feira passada”, disse e foi firme ao dizer para eu ficar os dias restantes em Botsuana, como planejado. “Você está onde a mamãe gostaria que você estivesse”. Eu me retirei para a minha tenda e chorei lágrimas silenciosas, procurando ouvir aquele som semelhante ao de um serrote cortando madeira: o chamado do leopardo.
Morte e renovação
Quando chegamos à parada final do safári, fiquei tocada com um rito de morte e renovação, tão comum na savana, que parecia mais verde do que quando cheguei. Um bando de cães selvagens arrastou uma carcaça de impala para uma clareira e se banqueteava com ela. Um pequeno antílope saltou para encontrar seu rebanho. Minha mãe estava em toda parte: nos raios de sol que cortavam a neblina com o nascer do dia, no toque de brisa que roçou minha bochecha.
Eu a via em todas as macacas, zebras e elefantes que protegiam seus bebês de predadores, como minha mãe fazia quando eu era uma garotinha e era meu único baluarte contra o mundo.
O último dia foi úmido e decepcionante. Nosso voo partiria às 10h da manhã seguinte, e embora estivesse prevista uma tempestade, eu esperava percorrer uma última vez a mata selvagem antes do embarque. A natureza não dá garantias, mas fui para a cama esperançosa.
Acordei às 4h30, puxada por mãos invisíveis para o mato que me esperava. Eu me vesti e peguei o café. Nosso novo guia, Dave Luck, disse: “Vamos ver o que está por aí”.
Horas passadas sob uma parede de aço no céu, e a terra encharcada cheirava a frescor. O sol nasceu e nuvens se levantaram para revelar listras pastéis no horizonte. A sorte guiava o Land Rover pela lama e pelos barrancos encharcados. Havia urgência em sua direção, e isso refletia a percussão do meu coração naufragado. Com a lanterna, iluminou uma trilha de felino na beirada da estrada. “Leão”, disse. Em uma hora, eu estaria no avião em direção à minha casa, à minha família, e aos preparativos do funeral e ao vazio que a morte da minha mãe deixara.
Com um barulho constante no rádio transmissor, Luck disparou em uma direção que só ele conhecia.
Olhei para Odell e nós dois erguemos as sobrancelhas.
“Temos que nos apressar”, disse Luck.
Fechei meus olhos e punhos. Meus pulmões seguraram uma rajada de ar. Quando paramos, exalei, olhei para cima e vi a face de um leopardo a 18 metros de distância. A fêmea reclinou-se no galho retorcido de uma árvore, com as pernas e a cauda penduradas languidamente. “É Marothodi”, disse Luck. “Isso significa ‘gota de chuva'”. Sua mãe é Pula. Significa “chuva”. Todas as sinapses do meu corpo incharam de alegria. Eu temia que ela desaparecesse se eu piscasse. Marothodi reorganizou seus membros em uma curva da árvore, parecendo relaxada e à vontade. Mas eu sabia que seu poder era maior que o meu, do que o nosso.
Meu corpo deu lugar a soluços agradecidos e exaustos e, num instante, vi pedaços do universo como se fossem banhados pela claridade. O contínuo implacável, uma nevasca da Nova Inglaterra e um nascer do sol africano conectados pelo mesmo céu. A precariedade e a impermanência da vida, mas principalmente sua espantosa generosidade. Eu vi um leopardo, que, por um momento, fixou seus surpreendentes olhos cor de laranja nos meus, como se me dissessem: “Você está onde sua mãe gostaria que você estivesse”.
Por fim, o felino desceu pelo tronco, adentrou a grama alta e mais um dia brilhante na Terra.
Fonte: BBC