Como o oceano pode se tornar um inimigo da humanidade

Peixes nadam ao lado de corais

Recifes de corais estão ameaçados pela acidificação dos oceanos

As mudanças climáticas vêm devastando os mares e regiões anteriormente congeladas do planeta como nunca antes, aponta uma nova pesquisa feita pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Segundo um painel de cientistas da ONU, as águas dos oceanos vêm subindo, o gelo derretendo e as espécies de animais marinhos vêm mudando de habitat em níveis inéditos, por causa de ações humanas.

E a perda de terras permanentemente congeladas ameaça liberar ainda mais carbono, acelerando esse processo, de acordo com a pesquisa.

Há alguma esperança de que os piores impactos possam ser evitados, desde que sejam feitos cortes profundos e imediatos nas emissões de carbono.

Gráfico mostra mudanças no nível do mar em 2100

Este é o terceiro de uma série de relatórios produzidos pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), ao longo dos últimos 12 meses

Os cientistas analisaram como o mundo reagiria se as temperaturas subissem 1,5° C até o final deste século. Eles também relataram como diferentes áreas de terra seriam afetadas pelas mudanças climáticas.

No entanto, este novo estudo, que analisa o impacto do aumento da temperatura nos oceanos e regiões congeladas, talvez seja o mais preocupante e deprimente dos três.

O que eles descobriram e quão ruim é?

Em poucas palavras, as águas estão ficando mais quentes, o gelo do mundo está derretendo rapidamente e isso tem implicações para quase todos os seres vivos do planeta.

“O planeta está em sério perigo, sofrendo muitos impactos de várias direções, e a culpa é nossa”, disse o coordenador da pesquisa, Jean-Pierre Gattuso.

Os cientistas estão “praticamente certos” de que o oceano aqueceu, sem pausas, desde 1970.

Pequena ilha no meio do oceano
Pequenas regiões insulares serão seriamente atingidas pelo aumento do nível do mar, segundo o relatório do IPCC

As águas absorveram mais de 90% do calor extra gerado pelos seres humanos nas últimas décadas, e a taxa de absorção desse calor dobrou em relação à de 1993.

O nível dos mares estava subindo principalmente devido à expansão térmica – que se refere à maneira como o volume de água se expande quando é aquecido. A energia extra leva as moléculas de água a se moverem mais e, com isso, ocuparem mais espaço. Mas o IPCC diz que o aumento dos níveis dos oceanos hoje é impulsionado principalmente pelo derretimento da Groenlândia e da Antártida.

INTERACTIVEQaleraliq glacier, southern Greenland

2018

Satellite image of Qaleraliq glacier, Greenland in 2018

1993

Satellite image of Qaleraliq glacier, Greenland in 1993

Graças ao aquecimento, a perda de massa (ou seja, a quantidade de água sólida que virou líquida) da camada de gelo da Antártida entre 2007 e 2016 triplicou na comparação com os 10 anos anteriores.

Geleira com pouca neve em suas montanhas
Geleiras em todo o mundo estão perdendo seu gelo rapidamente, apontam os cientistas

A Groenlândia, por exemplo, viu uma duplicação da perda de sua massa no mesmo período. O relatório estima que isso continue ao longo do século 21 e depois disso.

Para geleiras localizadas em áreas como os Andes tropicais, Europa Central e Norte da Ásia, as projeções são de que elas perderão 80% do gelo até 2100, em um cenário de altas emissões de carbono. Isso terá enormes consequências para milhões de pessoas.

Quais são as implicações de todo esse gelo derretido?

Toda essa água extra jorrando para os mares está elevando os níveis médios de água dos oceanos em todo o mundo. E isso continuará nas próximas décadas.

Este novo relatório indica que o nível médio global do mar pode aumentar em 1,1 metro até 2100, no pior cenário de aquecimento. Trata-se de um aumento de 10 centímetros em relação às projeções anteriores do IPCC, por causa da intensificação nas perdas de gelo, que está ocorrendo na Antártida.

“O que mais me surpreendeu é o fato de que a maior elevação projetada do nível do mar tenha sido revisada para cima e agora seja de 1,1 metro”, disse Jean-Pierre Gattuso, da CNRS, a agência nacional de ciência da França.

“Isso trará consequências em geral em todas as regiões de costas baixas, onde quase 700 milhões de pessoas vivem. É preocupante”.

Análise de David Shukman – Editor de Ciências, em Hull, na Inglaterra

Na costa leste da Inglaterra, a maior parte da cidade de Hull fica abaixo do nível de uma maré alta típica. O mar aqui pode ser uma fonte de riqueza, mas também uma ameaça à vida.

Portanto, as conclusões do relatório do IPCC têm um significado real. Uma tempestade numa noite de inverno, há seis anos, encontrou um trecho frágil no paredão do mar e inundou empresas e casas.

Barco navegando em local de derretimento
O aumento do nível do mar ocorreu devido principalmente à expansão térmica dos oceanos, mas o derretimento da Groenlândia e da Antártida agora é o principal fator, aponta o relatório do IPCC

Novas barreiras foram solicitadas e construtoras já trabalham ao longo da costa. Mas essas defesas não podem proteger todo mundo. Simulações em computador, desenvolvidas pela Universidade de Hull, mostram que, se o nível do oceano estiver um metro mais alto do que hoje, o centro da cidade deve continuar bem, mas as regiões vizinhas serão inundadas.

Isso traz à tona uma questão dolorosa, enfrentada em lugares baixos do mundo todo: quais áreas devem ser salvas e quais devem ser abandonadas à medida que as águas sobem?

O relatório diz claramente que algumas regiões insulares provavelmente se tornarão inabitáveis ​​depois de 2100.

Os cientistas também dizem que vale a pena considerar a realocação de pessoas longe de comunidades ameaçadas, “se localidades alternativas seguras estiverem disponíveis”.

O que muda para você?

Uma das principais mensagens é o modo como o aquecimento dos oceanos e da criosfera (os pedaços de gelo na terra) formam uma cadeia de resultados ruins que afetarão milhões de pessoas no futuro.

Gráfico mostra cidades em risco pelo aumento do nível dos oceanos

Em cenários de emissões mais altas, mesmo megacidades ricas como Nova York ou Xangai e grandes polos agrícolas tropicais como a região do Mekong, no sudeste asiático, enfrentarão riscos altos ou muito altos por causa da elevação do nível do mar.

O relatório diz que um mundo com níveis severamente altos de água quente dará origem a grandes aumentos em eventos climáticos perigosos, como ondas de ciclones tropicais.

“A previsão é que eventos extremos do nível do mar historicamente raros (que ocorreram uma vez a cada século num passado recente) ocorram com frequência (pelo menos uma vez por ano) em muitos locais até 2050”, diz o estudo, mesmo que as emissões futuras de carbono sejam reduzidas significativamente.

“O que estamos vendo agora é uma mudança duradoura e sem precedentes”, disse a professora Debra Roberts, uma das líderes de outro grupo de trabalho do IPCC.

“Mesmo que você more em uma região de interior no mundo, as mudanças no sistema climático, atraídas pelas mudanças muito grandes no oceano e na criosfera, afetarão a maneira como você vive sua vida e as oportunidades para o desenvolvimento sustentável”.

As maneiras pelas quais você pode ser afetado são diversas – os danos causados pelas enchentes podem aumentar em duas ou três ordens de magnitude. A acidificação dos oceanos, graças ao aumento dos níveis de CO2, está ameaçando os corais a tal ponto que 90% das espécies podem desaparecer, no caso de um aquecimento de 1,5° C.

Quando o CO2 é dissolvido na água, ele forma ácido carbônico. Portanto, quanto mais dióxido de carbono se dissolve em nossos oceanos, mais ácida fica a água.

Helicóptero sobrevoa área de permafrost
O derretimento do permafrost pode adicionar bilhões de toneladas de CO2 à atmosfera

Com a elevação na temperatura dos oceanos, as espécies de peixes podem ser forçadas a migrar. A própria segurança no consumo de frutos do mar pode ser comprometida, por causa de uma maior exposição das plantas e animais marinhos a níveis elevados de mercúrio e poluentes orgânicos. Esses poluentes são resultado da mesma queima de combustível fóssil que libera o CO2.

Até a nossa capacidade de gerar eletricidade pode ser prejudicada à medida que derretem as geleiras, pois a disponibilidade de água para produzir energia hidrelétrica pode ser alterada.

O permafrost não é tão permanente assim

Enormes quantidades de carbono são armazenadas nas regiões permanentemente congeladas do mundo, como a Sibéria e o norte do Canadá.

É provável que essas áreas mudem drasticamente, com o derretimento de cerca de 70% desse permafrost – como é chamado esse tipo de superfície –, caso as emissões continuem aumentando.

A grande preocupação é que isso libere “de dezenas a centenas de bilhões de toneladas” de CO2 e metano na atmosfera até 2100. Isso representaria uma limitação significativa à nossa capacidade de desacelerar o aquecimento global nos próximos séculos.

Então, o que acontecerá a longo prazo?

Essa é uma pergunta fundamental, e depende muito do que fazemos no curto prazo para limitar as emissões.

No entanto, o relatório adverte que algumas alterações podem não ser facilmente desfeitas. Dados da Antártida, por exemplo, sugerem o início da “instabilidade irreversível do lençol de gelo”, que pode fazer o nível do mar subir vários metros em alguns séculos.

Tubarão nadando com peixes
As mudanças climáticas podem forçar as espécies a mudar de região

“Temos informações de que o nível dos oceanos subirá até 2300, pelas muitas mudanças já detectadas envolvendo os mantos de gelo”, disse Nerilie Abram, da Universidade Nacional da Austrália, em Camberra, que também liderou o estudo.

“Portanto, mesmo em um cenário em que consigamos reduzir os gases do efeito estufa, já há um futuro aumento do nível do mar para o qual as pessoas terão de se planejar”.

Também pode haver perdas culturais significativas e irreversíveis, pois as espécies de peixes das quais dependem comunidades indígenas, por exemplo, podem ter de se mover para escapar do aquecimento.

Mas o relatório nos dá alguma esperança?

Definitivamente. O documento deixa claro que o futuro dos oceanos ainda está em nossas mãos.

A essa altura, trata-se de uma fórmula já conhecida – cortes rápidos e significativos nas emissões de carbono, de acordo com o relatório do IPCC do ano passado, que exige reduções de 45% até 2030.

“Se reduzirmos as emissões bruscamente, as consequências para as pessoas e seus meios de subsistência serão, ainda assim, desafiadoras. Mas potencialmente mais gerenciáveis, especialmente no que diz respeito aos mais vulneráveis”, disse Hoesung Lee, presidente do IPCC.

Alguns dos cientistas envolvidos no relatório acreditam que a pressão pública sobre os políticos é uma parte crucial para confrontar os problemas derivados do aquecimento do planeta.

“Depois das manifestações dos jovens na semana passada, acho que eles são a nossa melhor chance”, disse um dos coordenadores do novo relatório do IPCC, Jean-Pierre Gattuso.

“Eles são dinâmicos, ativos. Espero que continuem suas ações e possam fazer a sociedade mudar”.

Fonte: BBC