Há mais água doce escondida abaixo da superfície da Terra em aquíferos subterrâneos do que em qualquer outra fonte, excluindo-se as camadas de gelo. As águas subterrâneas são extremamente importantes para os rios em todo o mundo, do San Pedro ao Ganges, mantendo-os vivos mesmo quando as secas reduzem o volume das águas.
Entretanto, nas últimas décadas, o homem retirou trilhões de litros desses reservatórios subterrâneos. O resultado, demonstra a pesquisa publicada na revista científica Nature, é que milhares de ecossistemas fluviais ao redor do mundo estão “secando lentamente”. Entre 15 e 21% das bacias hidrográficas que têm suas águas subterrâneas removidas já atingiram um limiar ecológico crítico, dizem os autores — e, até 2050, esse número pode subir rapidamente para algo entre 40 e 79%.
Isso significa que centenas de rios e córregos ao redor do mundo estariam sob tamanho estresse hídrico que sua flora e fauna chegariam a um ponto crítico, afirma Inge de Graaf, principal autora do estudo e hidrologista da Universidade de Freiburg.
“Realmente podemos dizer que esse efeito ecológico é uma bomba-relógio”, diz ela. “Quando retiramos águas subterrâneas, hoje, testemunhamos os impactos apenas após dez anos ou mais. Portanto, o que fazemos agora afeta o nosso ambiente nos próximos anos.”
Sustento da vida moderna
O último rio não represado no sudoeste dos EUA, o San Pedro, no sudoeste do estado do Arizona, costumava ser agitado e caudaloso. Pássaros gorjeavam e se banhavam em suas margens em momentos de pausa durante as migrações. Peixes raros nadavam em suas piscinas.
Mas, na década de 1940, poços começaram a ser perfurados na região, sugando água limpa e fresca dos aquíferos subterrâneos locais.
Foi constatado que boa parte da água do rio não vinha das chuvas e do derretimento da neve, mas de fontes subterrâneas. Quanto mais água era removida dos aquíferos, menos água fluía para o rio — e os pântanos, as árvores, a fauna e o volume de água do San Pedro foram todos prejudicados.
As águas subterrâneas são recursos ocultos que sustentam grande parte da vida moderna. Globalmente, cerca de 40% dos alimentos que cultivamos são irrigados com água extraída de baixo da superfície da Terra.
Mas muitos dos aquíferos dos quais as águas são extraídas levaram centenas ou mesmo dezenas de milhares de anos para serem preenchidos: águas subterrâneas podem ter infiltrado rachaduras na terra quando enormes camadas de gelo cobriram a cidade de Nova York pela última vez há 20 mil anos.
Grande parte dessa água está sendo removida muito mais rapidamente do que pode ser reabastecida. Isso pode trazer sérias consequências às pessoas que precisam de água para beber e que desejam irrigar suas plantações em áreas que não recebem chuva suficiente. Mas muito antes de esses impactos surgirem, os efeitos atingirão — e de fato já atingiram — rios, córregos e os habitats que os cercam.
“Imagine que o aquífero seja uma banheira cheia de água e areia”, explica Eloise Kendy, cientista de água doce da Nature Conservancy. Em seguida, imagine passar o dedo levemente sobre a areia, desenhando um pequeno caminho. Esse caminho se enche de água, que infiltra a areia formando um “córrego”.
“Se você retira apenas um pouco de água da banheira, o córrego seca, mesmo que ainda haja muita água na banheira”, afirma ela. “Contudo no que diz respeito a rios saudáveis, você acaba de destruir um. Mas como os rios não gritam e não reclamam, não sabemos necessariamente que eles estão com problemas.”
Água é vida, até ela desaparecer
Na nova pesquisa, a equipe examinou globalmente onde já acontece a extração de águas subterrâneas em volumes que drasticamente reduziram os níveis de água em rios e córregos a ponto de atingir um limiar ambiental crítico: quando os níveis de água caem para menos de 90% da vazão média durante a estação seca, época na qual as águas subterrâneas são mais importantes para a vazão dos rios. Atingir esse limiar em mais de três meses no ano, por pelo menos dois anos seguidos, põe em perigo a flora e a fauna dos sistemas fluviais, diz Brian Richter, especialista hídrico e cientista da Sustainable Waters.
“As águas podem sofrer apenas um pequeno esgotamento nesses momentos sensíveis, mas é algo significativo do ponto de vista ecológico”, afirma ele.
As espécies de água doce, como as que dependem de rios e córregos saudáveis, estão entre algumas das mais ameaçadas de extinção do mundo.
Na nova análise, de Graaf e seus colegas descobriram que de 15 a 21% das bacias hidrográficas que são abastecidas por águas subterrâneas já ultrapassaram esse limite (cerca de metade de todas as bacias hidrográficas do mundo são submetidas a extração). À medida que as mudanças climáticas exacerbam as secas em diversas partes do mundo, o estresse nas águas subterrâneas — e por extensão, nos rios e córregos — provavelmente ficará muito pior, eles afirmam.
Suas previsões podem ser conservadoras. Como ponto de início, eles utilizaram a demanda global de água em 2010 e expandiram o modelo climático para verificar como o estresse nos sistemas de águas subterrâneas pode se desenvolver. Mas, à medida que as populações crescem e a demanda por alimentos aumenta, esse estresse pode aumentar por outras razões que não as mudanças climáticas, acelerando a extração de fontes subterrâneas de água.
Contudo, os efeitos da retirada em excesso de águas subterrâneas levam anos, se não décadas, para se tornarem visíveis. Mudanças nos níveis de chuva têm efeitos imediatos e óbvios na vazão do rio, explica Gretchen Miller, hidrologista e engenheira da Texas A&M University: quando chove, os rios normalmente ficam muito cheios. Mas as águas subterrâneas estão ocultas: as mudanças demoram muito mais para vir à tona e nem sempre se manifestam no local onde a extração é realizada. Isso torna os problemas de gerenciamento de aquíferos ainda mais desafiadores, e planos para resolver esses problemas futuros existem apenas para uma pequena fração das bacias hidrográficas.
Enquanto isso, rios e córregos são como “canários em uma mina de carvão”, diz Richter. “Eles são um alerta de que estamos usando a água de forma insustentável. Precisamos parar e refletir sobre o que estamos fazendo.”
Fonte: Alejandra Borunda – National Geographic