A energia escura, maior componente do universo em que vivemos, ainda é um enigma para nós.
Os átomos compõem tudo o que é conhecido: os planetas, as estrelas e nós, seres humanos. Mesmo assim, tudo isso representa apenas 5% de todo o universo.
O restante é formado pelo que os cientistas chamam de energia escura (a maior parte) e de matéria escura.
Os astrônomos agora têm um novo e poderoso instrumento para estudar essa energia escura, o Instrumento Espectroscópico de Energia Escura (conhecido como Desi, na sigla em inglês).
Esse equipamento vai permitir a produção de um mapa mais detalhado do universo depois de observar cerca de 35 milhões de galáxias em cinco anos.
Mas o que se sabe até agora sobre a energia escura e como o Desi vai estudá-la?
A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com um dos especialistas que realizará a tarefa, o astrônomo argentino Ariel Sánchez, PhD em astronomia e pesquisador do Instituto Max Planck de Física Extraterrestre, com sede em Garching, na Alemanha. Confira a entrevista abaixo.
BBC – A previsão inicial era de que a expansão do universo que começou após o Big Bang se tornaria mais lenta devido à gravidade. Mas está acelerando. Como você explica esse fenômeno?
Ariel Sánchez – A evolução do universo em suas maiores escalas é controlada pela gravidade. Atualmente, a melhor descrição da gravidade que nós temos foi dada por Albert Einstein em sua teoria da relatividade geral.
A aplicação das equações de Einstein ao universo como um todo são soluções de universos dinâmicos, ou seja, eles se expandem ou se contraem.
Desde que (o astrônomo americano) Edwin Hubble fez suas observações por volta de 1930, sabemos que nosso universo está se expandindo.
De acordo com Einstein, a matéria contida no universo tende a desacelerar essa expansão.
Isso ocorre porque a expansão do universo, que tenta aumentar a distância entre dois pontos no espaço, deve lutar contra o efeito da atração gravitacional da matéria que ele contém, o que tende a aproximá-los.
No final do século 20, os astrônomos tentaram medir essa taxa de desaceleração de expansão usando observações de supernovas em galáxias distantes. O resultado foi surpreendente.
A expansão do universo não está em desaceleração. Pelo contrário, ela está se acelerando. As distâncias entre galáxias longínquas estão aumentando em uma taxa crescente.
BBC – Isso indica a presença da energia escura?
Sánchez – Esse resultado mudou drasticamente nossa compreensão do universo. No contexto da relatividade geral de Einstein, isso não é possível se o universo contiver apenas matéria.
Isso indica a existência de um componente adicional, uma forma de energia desconhecida que tem pressão negativa e que neutraliza o efeito atrativo da gravidade, impulsionando a expansão acelerada do universo.
Decifrar a natureza desse componente que denominamos energia escura é um dos problemas em aberto mais importantes da física atual.
BBC – Como é possível saber que a energia escura constitui uma grande parte do universo? E qual é a porcentagem disso?
Sánchez – Um dos objetivos da cosmologia (ramo da astronomia que estuda a origem e a formação do universo) é fazer um inventário detalhado da energia que o universo contém, listando todos os seus componentes e a fração da energia total que cada um representa.
Para chegar a isso, usamos observações astronômicas da distribuição de matéria e luz no espaço.
Graças a essas observações, sabemos que a idade do universo é de cerca de 14 bilhões de anos e que, aproximadamente quatro bilhões de anos atrás, sua expansão começou a se acelerar.
Esse ponto corresponde ao momento da história do universo em que a energia escura começou a dominar a matéria.
Isso indica que a energia escura é atualmente o principal componente deste inventário cósmico e que ela constitui aproximadamente 70% da energia total no universo.
BBC – Como a energia escura difere da matéria escura?
Sánchez – No inventário, o próximo componente em importância é a matéria escura, uma vez que constitui cerca de 25% da energia total do universo.
A matéria escura é uma forma de matéria que não interage com a luz. Sua presença é detectável apenas por seus efeitos gravitacionais na formação e evolução de estruturas no universo, como galáxias e aglomerados de galáxias.
Existem inúmeras evidências da existência de matéria escura.
A matéria comum, feita de átomos, constitui menos de 5% da energia total do universo.
E outros componentes, como neutrinos ou fótons, têm contribuições muito menores.
BBC – Quais são as propriedades da matéria escura que a tornam diferente da energia escura?
Sánchez – Embora a natureza da matéria escura não seja conhecida exatamente, as observações astronômicas nos permitem ter uma boa ideia de suas propriedades.
Como a matéria comum, a matéria escura ajuda a retardar a expansão do universo; isto é, o efeito oposto da energia escura.
Outra diferença importante entre esses componentes é sua distribuição no espaço.
A matéria escura apresenta flutuações em sua densidade que crescem com o tempo, com áreas mais densas adquirindo cada vez mais matéria devido à sua atração gravitacional.
A energia escura, por outro lado, parece seguir uma distribuição uniforme, com a mesma densidade no espaço.
BBC – A energia escura será estudada com um novo e poderoso instrumento, o Desi. Por que as pessoas estão dizendo que ele tem 5 mil mini telescópios?
Sánchez – O Instrumento Espectroscópico de Energia Escura contém um conjunto de 5 mil fibras ópticas, cada uma delas controlada por um pequeno braço robótico que as coloca na posição correta para receber luz de uma galáxia.
Ele está instalado no telescópio Mayall do Observatório Kitt Peak, no Arizona, nos Estados Unidos, e tem quatro metros de diâmetro.
Seu design permite cobrir em cada observação um grande campo no céu.
E isso, juntamente com a possibilidade de ‘enxergar’ 5 mil galáxias simultaneamente, faz com que ele seja uma máquina perfeita para construir um grande catálogo em um curto espaço de tempo.
Projetos anteriores criaram catálogos de galáxias semelhantes, mas o Desi levará esses esforços a um novo nível, observando cerca de 35 milhões de galáxias em cinco anos.
BBC – Como o Desi vai capturar a luz de 5 mil galáxias simultaneamente e como essa luz vai medir suas distâncias?
Sánchez – Quando olhamos para uma galáxia no céu, não sabemos a que distância ela está de nós. Mas a expansão cósmica nos ajuda a inferir isso.
Quando as ondas de luz se propagam pelo espaço, a expansão do universo as “estica”, alterando seu comprimento de onda e tornando-as mais avermelhadas. Esse processo é conhecido como “desvio para o vermelho”.
Se separarmos a luz das galáxias distantes nas cores que as compõem, semelhante ao que pode ser feito com um prisma, podemos reconhecer o efeito do desvio para o vermelho.
Quanto mais distante a galáxia, maior será o seu desvio para o vermelho. Dessa forma, podemos estimar a distância para as galáxias.
O Desi vai observar cerca de 35 milhões de galáxias para medir seus desvios para o vermelho.
Juntamente com suas posições no céu, essas distâncias nos permitirão construir um mapa tridimensional da distribuição de galáxias em um grande volume do universo.
Um detalhe importante é que quanto mais distante uma galáxia, mais sua luz viaja em nossa direção. Portanto, ao observar galáxias a diferentes distâncias de nós, podemos estudar a evolução do universo ao longo do tempo.
BBC – Como esse mapa o ajudará a entender o que é energia escura?
Sánchez – Os dados do Desi nos permitirão reconstruir com precisão a história da expansão do universo e a taxa de formação da estrutura ao longo de um período de 11 bilhões de anos.
Esses dados vão permitir caracterizar as propriedades da energia escura com grande precisão.
Todos os dados que temos hoje são consistentes com o modelo cosmológico padrão, no qual a energia escura corresponde à “energia de vácuo”.
Essa é uma energia de origem quântica, pequena, mas irredutível, que é uma propriedade do próprio espaço, mesmo na ausência de matéria.
Esse componente aumenta continuamente o espaço, impulsionando a expansão acelerada do universo.
De qualquer forma, podemos esperar uma caracterização muito mais precisa da energia escura quando tivermos os dados do Desi, o que nos aproximará um pouco das respostas às grandes questões abertas da cosmologia.
BBC – Por que o Desi ajudará a testar a teoria da gravidade de Einstein?
Sánchez – No contexto da relatividade geral, a expansão acelerada do universo implica na existência de energia escura.
Alternativamente, isso poderia ser interpretado como a indicação de um problema na teoria de Einstein, evidência de que ela não descreve corretamente o modo como a gravidade se comporta em escalas cosmológicas.
A distribuição de galáxias no universo que será observada pelo Desi nos permitirá testar as previsões da relatividade geral em escalas cosmológicas, muito maiores do que as usadas em outros testes.
Os dados do Desi nos ajudarão a distinguir entre os dois cenários possíveis para a origem da expansão acelerada do universo: a existência de energia escura ou a necessidade de modificar a teoria da relatividade geral de Einstein.
BBC – Como você decidiu se dedicar ao estudo da energia escura?
Sánchez – Desde a adolescência, eu já sabia que queria me dedicar à cosmologia. A descoberta da aceleração cósmica ocorreu logo após o início dos meus estudos.
A importância dessa descoberta foi reconhecida com o Prêmio Nobel de Física de 2011. Ela revolucionou o campo da cosmologia para torná-la uma das áreas mais dinâmicas da física.
Tive a sorte de começar minha carreira a tempo de fazer parte desse desenvolvimento.
Me considero muito sortudo por poder contribuir com meu trabalho para a tarefa de entender nosso universo com mais detalhes.
BBC – O que você sente quando pensa que nós só conhecemos 5% do universo?
Sánchez – Isso gera ainda mais curiosidade em mim.
O desejo de conhecer nosso universo e as leis que o controlam com mais detalhes é a principal motivação do meu trabalho e de muitos de meus colegas.
Fonte: BBC