À primeira vista, parece ser um caso de extinção causada por mudanças climáticas: há mais de 160 milhões de anos, durante o período jurássico, uma exuberante fauna rastejava, nadava e voava pelas matas arejadas e úmidas do que agora é a região nordeste da China. Então, quase que num instante geológico, o ar ficou mais quente e a terra secou. Como a água desapareceu, o mesmo aconteceu com a vida. E, até hoje, os pesquisadores vêm tentando, com dificuldades, apontar o culpado climático por trás desse colapso ecológico.
Estudo recém-publicado no periódico Geology sugere que não foram as condições climáticas que mudaram, mas sim a localização geográfica da paisagem. As assinaturas paleomagnéticas presentes nas rochas da região indicam que, em algum momento entre 174 e 157 milhões de anos atrás, a região inteira sofreu um deslocamento ao sul de impressionantes 25 graus, convertendo paisagens viçosas em zonas de calor escaldante.
Essa primitiva e complicada guinada fez parte de um fenômeno conhecido como deriva polar verdadeira, no qual as camadas mais superiores do planeta, provavelmente até o núcleo líquido externo, giram de forma significativa, enquanto a Terra continua sua rotação diária em torno de seu eixo normal.
No Jurássico, a superfície e o manto terrestre realizaram esse giro ao longo de uma linha imaginária que passava pela curva da costa oeste africana conhecida como Golfo de Benin. A mudança teria sido de grandes proporções: se ocorresse uma alteração similar hoje, uma bandeira fincada em Dallas, Texas, acabaria onde atualmente se localiza a região norte de Manitoba, Canadá. No outro lado do mundo, o continente asiático seria lançado ao sul.
A Terra provavelmente passou por pequenas doses de deriva polar verdadeira em toda a sua história, e alguns cientistas acreditam que esse movimento continua.
“Estamos passando pela deriva polar verdadeira no momento desta nossa conversa”, afirma Dennis Kent, paleomagnetista da Universidade de Rutgers e da Universidade de Columbia, que não faz parte da equipe do novo estudo.
Para que fique claro, essas alterações mais recentes não são a causa das mudanças climáticas atuais, que são causadas pela liberação impiedosa de gases do efeito estufa pelos seres humanos na atmosfera. Além disso, ainda está sendo debatida a magnitude dessa guinada jurássica — e se a deriva polar verdadeira é um fenômeno real ou não.
“É uma área cabível de discussão”, afirma Christopher Scotese, diretor do Projeto PALEOMAP. “Mas é algo mais controverso do que as pessoas dizem”.
O estudo dos movimentos geológicos passados e presentes da Terra não ajuda apenas a solucionar essa controvérsia, como também a aperfeiçoar o nosso entendimento dos complexos mecanismos do planeta.
“É muito importante que ainda estejam sendo realizadas pesquisas básicas”, diz Lydian Boschman, geóloga do Eidgenössische Technische Hochschule (ETH) de Zurique, que não fez parte da equipe do estudo. “Se não compreendermos a base, não haverá nada que possamos fazer posteriormente”.
Gira-gira do passado
Embora os profundos giros geológicos possam ter impactos drásticos na superfície terrestre, o campo magnético do planeta fica, em grande parte, intocado após esses acontecimentos, uma vez que ele é gerado por uma misto de ferro e níquel derretidos no núcleo externo da Terra, cerca de 2,9 mil quilômetros abaixo da superfície. É possível, então, que os pesquisadores recorram aos minerais ricos em ferro, sintonizados com os campos magnéticos, para desvendar os giros e voltas que o planeta deu no passado. Com o acúmulo e solidificação de sedimentos ou com o endurecimento da lava, esses minerais se alinham ao campo magnético global, feito agulhas de bússolas, fazendo um retrato da localização de uma região do nosso planeta num dado período do passado.
Mas nem todas as rochas são estenógrafos perfeitos. Com a solidificação dos sedimentos, a compressão pode puxar a assinatura magnética e afetar a posição planetária gravada. Ao retirarem essa confusão sedimentar e só analisarem rochas vulcânicas, Kent e o finado Edward Irving, que trabalhavam no Serviço Geológico do Canadá, encontraram as assinaturas de um salto monstruoso ocorrido durante o período jurássico. Os resultados, publicados em 2010, sugeriam que a superfície da Terra teria se deslocado em cerca de 30 graus entre 160 e 145 milhões de anos atrás.
Outros estudos posteriores começaram a preencher as lacunas do registro e, de repente, parecia que o mundo inteiro voltava os olhos ao megagiro do Jurássico, com evidências encontradas na África, América do Norte, América do Sul e Oriente Médio. Um local, porém, parecia não ter saído do lugar: os Blocos do Leste Asiático, uma zona que compreende a maior parte da Mongólia, China, Coreia do Norte e Coreia do Sul.
“A região mal se moveu em termos de latitude em todo esse período”, afirma o coautor do estudo Joseph Meert, paleomagnetista da Universidade da Flórida. “Esse fato não parece corresponder muito com a posterior aridificação da região”.
Parte do problema consistia no fato de que os estudos que documentavam a posição da região por meio de análises paleomagnéticas não fizeram amostragem de um período longo o suficiente, explica Meert. Muito embora as rochas vulcânicas registrem com fidelidade o norte magnético, esse polo tem uma tendência de se deslocar, de modo que os pesquisadores precisam fazer uma média de suas análises com dados referentes a milhares de anos para levar em conta esses deslocamentos. (O norte magnético acabou de mudar — saiba como estamos tentando acompanhá-lo.)
Além disso, a própria região já foi excluída diversas vezes das discussões sobre as mudanças globais em função de seu histórico complexo, acrescenta Kent. Se, por um lado, o percurso das outras massas de terra pode ser remontado até o supercontinente Pangeia, que se rompeu há mais ou menos 180 milhões de anos, a rota do Leste Asiático continua incerta.
“A região dançava conforme a própria música naquela época”, diz Kent.
A guinada monstruosa
No verão de 2015 e primavera de 2018 do hemisfério norte, a última equipe iniciou as buscas de um registro paleomagnético mais consistente para desvendar os movimentos geológicos do Leste Asiático, afirma o principal autor do estudo, Zhiyu Yi, da Academia Chinesa de Ciências Geológicas, em Pequim.
As pedras encontradas na China contam histórias muito diferentes, retratadas nas colorações completamente distintas. Os depósitos das épocas inferior à média do Jurássico são escuros e ricos em carvão, sugerindo uma paisagem primitiva e úmida, repleta de plantas. Por outro lado, as formações do período superior do Jurássico apresentam depósitos em tom de ferrugem, dispostos em condições mais secas.
A equipe amostrou rochas vulcânicas entrelaçadas a essas formações contrastantes em 57 locais, no total. Em 2017, a análise dessas rochas confirmou o trabalho anterior que indicara que as rochas vermelhas mais novas estavam dispostas em latitudes baixas, onde provavelmente prevaleceram as condições quentes e secas, diz Yi. A hora da verdade, porém, chegou no verão do ano seguinte, quando eles analisaram as amostras mais antigas e descobriram que elas haviam se formado em latitudes incrivelmente altas.
“Eu soube, naquele momento, o que esses dados significavam —que tínhamos finalmente encontrado os sinais [da deriva polar verdadeira]”, escreve Yi por e-mail.
Meert admite ter sido um pouco cético quanto a esse grande movimento no início, mas os novos achados o convenceram: “Dissemos: é, realmente, é isso mesmo”, comenta, relembrando o jantar que teve com Yi em Pequim para revisão dos dados. “O sentido do movimento e tudo o mais parece se encaixar. Daí, tomamos uma cerveja, brindamos e dissemos: vamos ao trabalho”.
Os resultados sugerem que a superfície sofreu, no Jurássico, uma rotação de no mínimo 17 centímetros por ano, o que teria causado o gradual ressecamento da paisagem do Leste Asiático, que muito provavelmente extinguiu muitas das plantas e animais antigos da região, chamados coletivamente de Biota de Yanliao. Estudos anteriores já sugeriram que outro movimento de deriva, menor, ocorrido há cerca de 130 milhões de anos, devolveu ao Leste Asiático o clima temperado, formando a base para uma explosão de vida conhecida como Biota de Jehol. Esses fósseis de excepcional conservação possibilitaram diversos achados surpreendentes, inclusive a descoberta do primeiro dinossauro emplumado, que não tinha relação direta com os pássaros.
Futuros em revolução
“A beleza disso tudo é que é bastante simples”, diz Giovanni Muttoni, paleomagnetista da Universidade de Milão, Itália, que não participou deste trabalho, mas que estudou amplamente a grande deriva do período jurássico. O movimento e a magnitude estão alinhados com os indicados dos trabalhos anteriores, ele observa, e estabelecem uma conexão entre misteriosas mudanças climáticas e essa torção planetária.
Scotese, contudo, não está convencido que tenha ocorrido alguma deriva polar verdadeira nos últimos 200 milhões de anos, defendendo que os efeitos podem ser explicados pelo movimento de placas tectônicas. Durante o período jurássico, diz ele, a Ásia e a América do Norte moviam-se vagarosamente, como se estivessem numa gangorra em cima da Europa. Enquanto a América do Norte se movia a noroeste, a Ásia deslocava-se a sudeste.
“Há uma enorme quantidade de ruído no banco de dados paleomagnético, que os paleomagnetistas fazem todo tipo de malabarismo para minimizar, ou para corrigir aquilo que eles acreditam ser erros”, afirma. “Mas eu discordo dessa filosofia. Acho que é deixar o banco de dados enviesado”.
Já outros reafirmam os dados que apontam para a deriva polar verdadeira e a monstruosa deriva ocorrida no Jurássico.
“Elas existem”, diz Muttoni. “Estão gravadas nas pedras”.
Se assim for, muitas perguntas continuam em aberto. Para começar, ainda não está claro o que exatamente impulsiona uma alteração nessas proporções, um acontecimento que deve envolver uma redistribuição significativa da massa do nosso planeta. Talvez o nascimento de zonas de subducção — regiões onde uma placa tectônica se encavala embaixo de outra — seja o motivo da deriva, diz Boschman. Ou poderia ser a ruptura de placas já submetidas à subducção, o que causaria a imersão de pedaços da crosta no manto terrestre, atrapalhando o equilíbrio planetário, acrescenta Kent. Por ora, essas diversas questões geológicas fazem parte do mistério a ser solucionado.
“Temos em mãos um bom conjunto de conhecimentos, ainda em expansão, e é claro que queremos saber exatamente tudo o que acontece”, diz Kent. “Mas, ao mesmo tempo, sabemos que há ainda um longo caminho a percorrer”.
Fonte: Maya Wei-Haas – National Geographic