Na Câmara dos Deputados, em Brasília, o secretário do Ministério de Minas e Energia, Alexandre Vidigal, confirmou que o Governo Federal prepara uma proposta para regulamentar a mineração em terras indígenas. Em audiência pública dia 11 de setembro, Vidigal anunciou que em breve o Poder Executivo encaminhará a proposta ao Congresso. “O nosso compromisso nesse ministério, e isso diga-se com todas as letras, é, sim, transformar o patrimônio mineral em riqueza mineral. Até por que, se não o fizermos, o mundo fará”, disse Vidigal. “Nós não podemos prescindir da riqueza e da importância que o setor mineral traz ao país.”
Na Câmara, Vidigal não entrou em detalhes sobre o conteúdo da minuta, por se tratar de um “tema interno”. Contudo, argumentou que a regulamentação seria uma determinação da Constituição. Disse também que a atividade mineradora não aconteceria se houvesse a negativa de determinada comunidade indígena, mas isso não significa o direito a veto.
Em outubro, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, informou que a proposta estava em fase final e seria apresentada ao Congresso Nacional ainda naquele mês. Entretanto, o projeto ainda não foi enviado, e seu teor continua desconhecido. Por exemplo, é incerto se o governo pretende regulamentar o garimpo em terras indígenas. Esta atividade é inconstitucional, mas o presidente Jair Bolsonaro já manifestou a favor de legalizá-la. “É intenção minha regulamentar o garimpo”, ele disse em setembro. “Inclusive para índio. Tem que ter o direito de explorar o garimpo na tua propriedade. A terra indígena é como se fosse propriedade dele.” Pesquisa realizada em junho, pelo Datafolha, identificou que 86% dos brasileiros são contra a exploração mineral em terras indígenas.
Para Joenia Wapichana, advogada e primeira mulher indígena eleita deputada federal, essa incerteza sobre a proposta se soma ao recrudescimento das políticas indigenistas e ambientais neste governo. “Nosso presidente foi eleito com base nesse discurso de abrir as terras indígenas para a mineração, desfazer demarcações e unidades de conservação, acabar com a ‘fábrica de multas’ e que diminuiria os recursos humanos e financeiros”, recordou Wapichana em um seminário sobre direitos indígenas e desenvolvimento na Amazônia, realizado em 24de outubro na Fundação FHC, em São Paulo. “O Ministério do Meio Ambiente teve 34% a menos [no orçamento], justamente recursos que poderiam ser usados para fiscalização, monitoramento, proteção.” Contingenciamento de recursos, cortes no orçamento e afastamento de investimentos internacionais, como o Fundo Amazônia, implicam no desmonte da política indigenista, avalia a deputada federal.
De agosto de 2018 a julho de 2019, o desmatamento em terras indígenas (TI) teve alta de 74% em relação ao mesmo período anterior. Foram 423,3 km² de floresta derrubados nas TIs, conforme dados oficiais do Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Dos 10,1 mil km² de desmate na Amazônia Legal no calendário anual, 41% ocorreram em terras públicas ainda sem destinação e em áreas protegidas, conforme análise dos dados do Prodes feita pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
“Se a Amazônia é estratégica para a conservação da biodiversidade, se a árvore em pé serve para mantermos o carbono e combater os efeitos das mudanças climáticas, por que retirar parcerias e investimentos? O que a gente espera de um chefe do Executivo é o contrário”, questiona Wapichana. “Quais interesses estão em conflito? Justamente essa visão predatória, distorcida e equivocada sobre o desenvolvimento na Amazônia.”
Além disso, houve a transferência do Serviço Florestal Brasileiro – responsável pelo Cadastro Ambiental Rural – para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e as tentativas de transferir a Funai e as demarcações de terras indígenas e quilombolas do Ministério da Justiça para o MAPA. O Ministério da Saúde também tentou extinguir a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), mas recuou após protestos. Agora, a deputada questiona o fato de o governo preparar a proposta da mineração sem antes conversar com os povos indígenas.
As ameaças de Jair Bolsonaro à população indígena levou a Comissão Arns e o Coletivo de Advogados de Direitos Humanos a apresentar uma representação contra o presidente ao Tribunal Penal Internacional, baseado em Haia, na Holanda. Segundo reportagem da BBC Brasil, os denunciantes pedem uma investigação preliminar sobre ações de “incitação ao genocídio e ataques sistemáticos contra populações indígenas”. O órgão internacional precisa decidir se abre investigação.
Garimpo em terras indígenas
“É notória a existência de inúmeros garimpos em terras indígenas, sem que o Estado venha ser eficaz na erradicação”, observou o sub-procurador geral da República, Mario Luiz Bonsaglia, durante o mesmo seminário. Ele é membro da sexta câmara do Ministério Público Federal (MPF), encarregada da defesa dos direitos indígenas e comunidades tradicionais. O sub-procurador destacou a invasão de garimpeiros na terra indígena Yanomami, que se estende nos estados de Roraima e do Amazonas. A Constituição proíbe o garimpo em TIs. Contudo, a atividade ilegal já vinha se instalando na região nas últimas décadas e disparou em 2019, quando mais de 20 mil garimpeiros ocupavam o território.
Segundo Bonsaglia, as reuniões entre comunidades indígenas e membros da sexta câmara do MPF têm sido frequentes, a fim de articular a atuação na região. Em2 de outubro, o MPF em Roraima entrou com ação civil pública para pedir o restabelecimento de quatro bases de proteção etnoambientais na TI Yanomami – três das bases haviam sido fechadas em 2015 e 2016, por falta de orçamento. A reinstalação da primeira base deve terminar neste ano e as demais em 2020.
Erradicar a atividade garimpeira das terras indígenas “depende muito do poder executivo”, continua Bonsaglia. É preciso uma ação integrada que forneça um aparato de segurança e logística com o apoio de órgãos como as Forças Armadas, a Aeronáutica, o Exército, a Força Nacional e as Polícias Federal e Militar. “O mero deslocamento de alguns contingentes policiais para a área [Yanomami] e a movimentação que o cumprimento dessa decisão está gerando já afastou milhares de garimpeiros.”
Trata-se de uma indústria clandestina milionária. Sem que haja autorização para exploração do ouro em Roraima, 194 kg do metal, quantia equivalente a R$ 30 milhões, foram exportados do estado para a Índia entre setembro de 2018 e julho de 2019, como revelou reportagem da BBC Brasil.
No garimpo ilegal “há aspectos criminais sérios”, observou Bonsaglia. “Além da questão ambiental e da violação dos direitos indígenas, nós temos crimes graves sendo perpetrados – organização criminosa, evasão de divisas. Crimes a merecer, inclusive, a atuação investigatória da Polícia Federal, abrindo outro leque a respeito do assunto.”
Em setembro, a Força-Tarefa Amazônia, do MPF, quantificou em um parecer os prejuízos causados pelo garimpo do ouro no bioma. A prática ilegal tem como resultado “o desmatamento e a inviabilização da exploração sustentável das matas, mediante extração de produtos madeireiros e não madeireiros, até a desestruturação de serviços ecossistêmicos, como regulação climática, oferta de água e manutenção da biodiversidade”.
Diante dos 42 anos que levam para a região degradada se recuperar, o parecer estima que o prejuízo é de R$ 3 milhões por quilo de ouro extraído. Essa valoração servirá para embasar ações civis públicas em processos que tratem dos prejuízos ambientais em decorrência da exploração de ouro, segundo o MPF.
Direitos constitucionais
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Assim começa o artigo 231 da Constituição Federal, no capítulo voltado aos direitos indígenas.
O documento assegura a posse permanente das terras que determinada etnia tradicionalmente ocupa, seja para habitação, atividades produtivas, preservação de recursos ambientais fundamentais “a seu bem-estar e a sua reprodução física, cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Concede também aos índios “o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
“O que se tem medo é da tentativa de deslegitimar uma decisão de uma coletividade e levar alguns indivíduos para defenderem um tema que é tão importante na vida dos indígenas.”
POR JOENIA WAPICHANAADVOGADA E PRIMEIRA MULHER INDÍGENA ELEITA DEPUTADA FEDERAL
Já o parágrafo terceiro condiciona à aprovação do Congresso Nacional “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluindo os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas”, após “ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados lavra, na forma da lei”. O parágrafo sétimo, por sua vez, veda a prática do garimpo em terras indígenas.
Em sua fala no painel da Fundação FHC, Joenia Wapichana se baseou na Constituição para defender o posicionamento contrário à mineração em terras indígenas. Destacou que as áreas, de propriedade da União, são inalienáveis e indisponíveis. “Mesmo eu sendo indígena, não posso dispor do meu direito para uma empresa, cooperativa, garimpo ou qualquer interessado.” E que o direito dos povos indígenas à terra é imprescritível.
A deputada federal frisou o trecho que veda “a remoção dos grupos indígenas de suas terras”. Conforme a Constituição, os povos só podem ser deslocados “em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantindo, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”. “Não pode tirar uma comunidade dali para cavar buraco ou fazer mineração”, observou Wapichana.
Além disso, deve-se anular e extinguir qualquer ato que vise “a ocupação, o domínio e a posse das terras”, “ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Entretanto, abre a exceção caso haja “relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar” – ainda inexistente –, com “benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”.
O Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, estabelecida por decreto no país em 2004 e reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. A Convenção determina aos governos “consultar os povos interessados por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”. Insere-se nisso o interesse de atividades como a exploração mineral e a necessidade de consulta prévia realizadas com “boa fé e de uma maneira adequada às circunstâncias, no sentido de que um acordo ou consentimento em torno das medidas propostas possa ser alcançado.”
A polêmica da regulamentação
“A Constituição diz que precisa de lei específica. Enquanto não existir tal lei, podemos desde logo dizer que toda atividade de mineração em terra indígena é ilegal e deve cessar imediatamente.Garimpo nunca será legal, nunca será constitucional”, observou Bonsaglia.
Pouco depois da aprovação da Constituição em 5 de outubro de 1988, os primeiros projetos de lei sobre o tema chegaram ao Parlamento, porém nunca foram para a frente. Em levantamento recente sobre as atuais propostas para regulamentar a mineração em terras indígenas, o MPF constatou que a mais avançada na tramitação é o PL 1.610/1996, do ex-senador Romero Jucá. Entretanto, o projeto está parado pois a comissão que o avaliava foi extinta.
Bonsaglia ressalta que a lei precisará restringir a exploração mineral onde há presença de povos indígenas em isolamento voluntário, “evitando-se o risco de desaparecimento por razoes óbvias. Deve-se banir o uso de substâncias tóxicas, a exemplo do mercúrio, na exploração minerária em terras indígenas”.
O setor da mineração busca dissociar empreendimentos minerários do garimpo presente na Amazônia. Na visão de Elmer Salomão, conselheiro da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM),a regulamentação da exploração mineral em terras indígenas cumpriria o que determina a Constituição e frearia as sistêmicas violações aos povos tradicionais.
De 1990a 1995,Salomão foi diretor do Departamento Nacional de Produção Minerária (DNPM), atual Agência Nacional de Mineração. Ele representou o setor no painel da Fundação FHC. Na análise do geólogo, nenhum projeto de lei apresentado no Congresso até hoje compreendeu, ao mesmo tempo, conhecimento sobre o setor minerário e o direito indígena.Ele acredita que, em concordância com as comunidades indígenas, a mineração organizada seja “a alternativa viável para esse aproveitamento sustentável das jazidas minerais”.
Salomão elencou algumas premissas que deveriam nortear a regulamentação defendida pela ABPM. Entre elas, a de que “minerar em terras indígenas só faz sentido se trouxer benefícios reais para a qualidade de vida da comunidade”, que a opinião dos povos indígenas sobre ter ou não mineração em suas terras deve ser obrigatória, que “mineração organizada não é atividade de garimpagem” e que o foco precisa ser a Amazônia, a “última fronteira mineral talvez do planeta”, além dos “fundos dos mares e a Antártica e o Polo Norte”.
“Os bens são da União, devem servir a toda a sociedade. Mas a sociedade não pode fazer nada com esse bem. As áreas indígenas, principalmente da Amazônia, são cegas sob o ponto de vista do conhecimento geológico. Não se conhece o potencial real dessas áreas em termos de mineração”, disse Salomão, segundo o qual apenas sete das 424 terras indígenas na Amazônia Legal possuem indicações concretas de ocorrências minerais significativas.Regulamentar a atividade minerária nessas terras, para o geólogo, seria um primeiro passo em mitigar conflitos reais ou potenciais com garimpeiros.
“Qual é o problema hoje? A devastação que está acontecendo nas terras indígenas pelo garimpo. Vamos acessar o garimpo e botar uma empresa que vai recuperar aquela área. E os próprios índios poderiam ter concessões para garimpar em suas terras, com o suporte técnico de instituições como a CPRM [Serviço Geológico do Brasil], do CFEM [Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais] e das próprias empresas”, argumentou Salomão.
“Vamos deixar para um segundo momento a licitação das áreas indígenas para minas de grandes empresas. Aquelas outras áreas onde têm mineração ao lado, nós sugerimos que não tenha licitação. Que os índios, com suporte, negociem diretamente com as empresas envolvidas lá, para saber se elas podem ou não continuar a minerar lá.”
Mineração como solução?
Em agosto, o MPF do Amazonas determinou o indeferimento de todos os requerimentos de pesquisa ou lavra mineral em terras indígenas do estado. “Como não tem lei regulamentando, não é possível conceder essa autorização. Não obstante, os pedidos são feitos para formar uma fila”, analisa Bonsaglia. A decisão está em recurso no Tribunal Regional Federal. “A Procuradoria da República em Roraima também entrou com uma ação semelhante. A tendência é que em outros estados a Justiça Federal faça a mesma coisa.”
O pedido de liminar do MPF se fundamentou em um estudo da WWF-Brasil. Com base em dados colhidos em fevereiro de 2018 na ANM, na Funai e no Ministério do Meio Ambiente, a ONG identificou 4.073 requerimentos de títulos minerários em TIs na Amazônia Legal em tramitamento, “dos quais 3.114 encontravam-se bloqueados até a definição do marco regulatório sobre mineração em terras indígenas”.
Já um levantamento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) identificou que, até 2016, havia uma fila de 4.332 requerimentos de autorização de pesquisa, concessão de lavras, licenciamento para aproveitamento de recursos minerais e permissão de lavra garimpeira.
Conforme o ISA, os pedidos de pesquisa englobam aproximadamente 28 milhões de hectares, um terço da área de terras indígenas. Abrangem 55 tipos de minérios, sendo que 70% deles visam a exploração do ouro. Os 532 requerimentos na TI Yanomami representam 40% do território. Também há grande interesse nas TI Menkragnoti, no Pará e Mato Grosso (393 pedidos), e na TI Alto Rio Negro, no Amazonas (387). A Mineração Silvana lidera o número de requerimentos para pesquisa em TIs (735), seguida pela Vale (216).
Além da invasão do garimpo na TI Yanomami, o Ministério Público Federal acompanha os impactos da exploração mineral na terra indígena Xikrin do Cateté, no Pará. Esta TI situa-se em uma área adjacente à região onde a Vale produz níquel.
O MPF encomendou à Fundação Oswaldo Cruzuma análise da água consumida pela população yanomami. O estudo apontou a presença de ferro, cobre, níquel e cromo em níveis acima do permitido para o tipo de curso d’água, “representando risco para a saúde humana seja para consumo e ingestão, seja para um mero banho ou uso na produção de alimentos”, constatou o Bonsaglia. O processo chegou ao Supremo Tribunal Federal, que determinou uma busca por conciliação que não teve êxito. Com isso, o MPF tem buscado a “plena implementação” de uma sentença que favoreça os indígenas.
Joenia Wapichana acredita que é um equívoco entender que a exploração mineral seja solução para o desenvolvimento dos povos indígenas, que já “são bastante assediados”. Na avaliação da deputada, hoje não há espaço para que os povos indígenas apresentem alternativas econômicas que enxerguem o real potencial econômico da Amazônia e que não envolvam a mineração. As práticas sustentáveis, como o extrativismo, já são realidade para os povos da Floresta Amazônica, entretanto, Wapichana entende que seja necessário maior investimento do governo.
“Se quiser ter mineração em outro lugar fora das terras indígenas, a gente pode conversar, com regras, controle e fiscalização. Bater o martelo para dizer que mineração é a solução para tudo não é ser racional nesse sentido”, defende a deputada. Ela considera que a instalação de empreendimentos minerários provocaria um fluxo migratório para o interior das terras indígenas, deslocaria os povos tradicionais de seus locais de origem e impactaria o meio ambiente.
“Não vou dizer que o pensamento indígena é unânime. A gente ainda precisa amadurecer essas discussões. Precisa ter um procedimento de consulta prévia, livre, informada, para justamente saber quais são os pontos positivos e negativos, e daí tirar uma conclusão”, ela observa. “O que se tem medo é da tentativa de deslegitimar uma decisão de uma coletividade e levar alguns indivíduos para defenderem um tema que é tão importante na vida dos indígenas.”