A Grande São Paulo viveu um dia de caos nesta segunda-feira (10/02). Mais uma vez, a estrutura da cidade não suportou o grande volume de chuvas que atingiu a região.
Houve centenas de pontos de alagamento, ruas e avenidas intransitáveis, pessoas ilhadas em carros e ônibus. Linhas de trens ficaram paradas, houve deslizamentos e o transbordamento dos dois principais rios que cortam a capital paulista, o Pinheiros e o Tietê.
O Corpo de Bombeiros atendeu a mais de 5 mil chamados desde a noite de domingo, entre eles 182 desabamentos ou desmoronamentos, 1018 pontos de inundação e 206 árvores caídas na Grande São Paulo.
As enchentes em São Paulo, assim como outras grandes cidades brasileiras, são históricas e recorrentes. Em 2016, por exemplo, 25 pessoas morreram depois de uma noite de chuvas fortes — parte delas em deslizamentos. Em março de 2019, ao menos 12 mortes foram registradas também em decorrência das chuvas.
Em bairros periféricos como Jardim Pantanal e Vila Itaim, no extremo leste da capital, que chegam a ficar meses alagados — constantemente, os moradores perdem móveis e eletrodomésticos para a água que invade suas casas.
Mas seria a chuva forte a principal culpada pelas enchentes? Ou a cidade foi planejada e construída de uma maneira que deixa mais difícil suportar as precipitações? A BBC News Brasil ouviu urbanistas para entender onde a cidade errou e o que poderia ser feito para minimizar o problema.
Erros de planejamento
Para Anderson Kazuo Nakano, professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), os grandes municípios brasileiros não foram planejados para “respeitar os ciclos hidrológicos da natureza”: a evaporação da águas e, depois, as precipitações que atingem as cidades.
“O normal seria a água se infiltrar no solo, para depois desembocar nos córregos e rios, que então correm para o mar. E, assim, o ciclo recomeçaria”, explica.
“Quando a chuva chega no espaço urbano, a água cai sobre no solo impermeável e não consegue se infiltrar. Nossos canais e rios estão canalizados. Essas águas, em grande quantidade e velocidade, escorrem para as sarjetas e galerias, que não conseguem suportá-las.”
Além disso, diz, cidades como São Paulo tiveram um crescimento desordenado, com ocupações precárias construídas em encostas e várzeas de pequenos rios e córregos, o que desequilibra o curso normal das águas que correm para grandes rios como o Tietê.
“A periferia se expandiu, impermeabilizando o solo de áreas verdes. O ideal seria criar processos de macrodrenagem que pudesse interferir nessa lógica, com a criação de praças e parques lineares ao lado desses pequenos córregos e rios, de modo a fazer com que a água se infiltre mais facilmente”, explica o urbanista.
Os chamados piscinões, grandes espaços para represamento da água da chuva, são sempre citados como obras públicas que podem diminuir as enchentes — só a cidade de São Paulo tem 32 deles. Para Kazuo, os piscinões hoje “são parte do problema” e não a solução.
“Não adianta você construir uma área de cimento, cercá-la com grades e esperar que a água vá parar ali. Hoje, os piscinões acumulam lixo, têm manutenção reduzida e acabam transbordando”, diz.
Para ele, as mudanças climáticas também têm um papel importante nesse processo. “Com as mudanças climáticas, a temperatura dos espaços urbanos tem ficado maior. A tendência é que tenhamos grande quantidades de chuva intensas em um período mais curto de tempo. E as cidades não se prepararam para isso”, diz.
O urbanista cita medidas de microdrenagem como possíveis soluções para mitigar esses efeitos, como recuperar sarjetas, galerias e bocas de lobo, além de arborização e desassoreamento de rios e córregos.
Já a arquiteta urbanista e diretora do Movimento Defenda São Paulo, Lucila Lacreta, diz que os principais pontos são conter o avanço imobiliário que não leva em conta várzeas e o lençol freático da cidade.
“Hoje, construímos grandes edifícios com subsolos de até cinco pavimentos sem levar em conta a geologia onde está localizado. O crescimento hoje ignora tudo isso e trata a cidade como se fosse um tabuleiro de terra plano e uniforme”, afirmou.
Ainda nessa linha, a urbanista acrescenta que o Plano Diretor de São Paulo, que prevê qual tipo de construção é permitido em cada ponto da cidade, também desconsidera a geologia.
“A ideia do plano diretor foi colocar grandes construções no eixo de transporte, mas esse eixo fica nas margens de grandes rios, muitos canalizados, como nas (avenidas) Radial Leste e Francisco Morato. Justamente nos terrenos mais frágeis da cidade é onde foi proposta a construção de prédios mais altos e profundos”, afirmou.
Na visão da arquiteta e urbanista, a cidade precisa barrar construções em áreas frágeis e criar projetos de desimpermeabilização para facilitar a drenagem da água.
“Precisamos fazer calçadas e asfalto que absorvam água pluvial. Também precisamos incentivar que as pessoas aumentem as áreas de drenagem em suas casas, além de criar uma política de longo prazo, com investimento, para criar canais drenantes. Precisamos observar o uso do solo e impedir que façam prédios num lugar onde o lençol freatico é próximo da superfície”, afirmou Lacreta.
A arquiteta diz, porém, que essa questão será dificilmente resolvida porque os interesses econômicos costumam se sobrepor às questões ambientais.
“Nos anos 1970, Figueiredo Ferraz (prefeito de São Paulo de 1971 a 1973) disse que a capital precisava parar. Ninguém deu bola e o interesse do mercado imobiliário prevaleceu acima de tudo. Hoje precisamos repensar. Planejar a cidade para quem: mercado imobiliário ou para pessoas?”
‘Chuva histórica’
De acordo com o Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE), da Prefeitura de São Paulo, nos últimos dez dias choveu 179,9 milímetros, equivalente a 83% da média esperada para o mês. A medição foi feita às 7h. Em apenas três horas de chuva, foram registrados cerca de 60 milímetros.
Para dar uma ideia da dimensão, 60 milímetros de chuva é o mesmo que jogar 60 litros de água numa área de 1 metro quadrado. O bairro da Lapa, na zona oeste da capital, registrou 98,3 milímetros de chuva.
Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a capital paulista registrou o maior volume de chuvas em 24 horas num mês de fevereiro dos últimos 37 anos.
Das 7h às 13h choveu 88,7mm em São Paulo, o que equivale a 41% da média para o mês. A previsão é que a chuva continue na capital paulista e a frente fria que provocou as chuvas se afaste em direção ao litoral do Estado do Rio de Janeiro.
No início da tarde desta segunda, o Corpo de Bombeiros tinham recebido o registro de 857 pontos de enchente, 151 desabamentos ou desmoronamentos e 134 quedas de árvore.
A gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB) afirmou que aumentou em 54,1% o número de piscinões da cidade — de 24 para 32 unidades. No total, os novos equipamentos representam investimento de R$ 107,8 milhões. A prefeitura também afirma que tem realizado obras de drenagem e canalização de córregos em todas as regiões do municípios.
Outras medidas contra enchentes
Na capital, o rio Tietê possui 53 bombas sob responsabilidade do Daae (Departamento de Águas e Energia Elétrica), do governo do Estado, que passam por manutenção semanal. Em 2019, o desassoreamento foi feito ao longo de 44 quilômetros do rio e retirou mais de 400 mil toneladas de sedimentos como areia e argila em 2019, com investimento de R$ 49 milhões.
Para 2020, está previsto investimento de mais R$ 20 milhões para ações, especialmente no Alto Tietê.
O nível do rio Pinheiros é o maior nos últimos 15 anos, de acordo com a Emae (Empresa Metropolitana de Águas e Energia). Em 2019, as equipes da Emae registraram recorde de retirada de sedimentos do leito do Pinheiros, com carga equivalente à de 28 mil caminhões basculantes. Também houve a retirada de 9 mil toneladas de lixo das águas.
Fonte: BBC