Eles estão sempre se abraçando, não brigam por alimento e raramente exibem comportamentos agressivos – os maiores macacos das Américas são só paz e amor. Mas o muriqui-do-norte é um dos primatas mais raros do mundo. Criticamente ameaçados de extinção, os últimos indivíduos da espécie ocorrem em pequenos trechos de Mata Atlântica conservada no Sudeste do Brasil. Com cerca de 1,3 metro de comprimento e pesando 9 kg, eles andam em bandos de até 100, vivem por cerca de 28 anos e são poligâmicos – as fêmeas escolhem seus parceiros e os machos fazem fila, ninguém se enfrenta.
Quase tudo isso que sabemos sobre esses macacos vem das mãos, olhos e orientação da norte-americana Karen Strier, antropóloga, professora, presidente da Sociedade Internacional de Primatologia e um dos nomes mais reconhecidos da primatologia mundial. Strier ainda mora e trabalha nos Estados Unidos, mas há mais de 35 anos fundou e ainda coordena o projeto Muriquis de Caratinga, no Vale do Rio Doce, interior de Minas Gerais. Para conhecer esta quarta personagem do especial Mulheres da Conservação, aproveitamos uma das viagens anuais que Karen faz ao Brasil para orientar os bolsistas do projeto.
Mas assim como aconteceu na reportagem de Neiva Guedes e as araras-azuis – quando queimadas devastaram um enorme trecho das fazendas onde as pesquisas eram conduzidas alguns dias depois de partirmos – e Beatrice Padovani – os corais que ela estudo estavam sob risco de serem atingidos pelo óleo que sujou boa parte do litoral do Nordeste –, nossa chegada em Minas Gerais para acompanhar o trabalho de Karen Strier precedeu outra tragédia. Alguns dias depois de terminarmos as saídas de campo, o estado começou a ser atingido por uma série de tempestades que mataram 59 pessoas e deixaram mais de 50 mil desalojadas ou desabrigadas.
Destino: Minas Gerais
Depois de deixar a capital mineira Belo Horizonte, chegamos a Santo Antônio de Manhuaçu, um pequeno povoado ao lado da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdala, na região da emblemática fazenda Montes Claros, uma propriedade marcada na história da conservação brasileira. Trata-se de um fragmento de Mata Atlântica protegido desde os anos 1940 por iniciativa do fazendeiro Feliciano Miguel Abdala, que abrigava os já raros muriquis-do-norte.
Por um tempo, acreditou-se que a espécie estava extinta até que o conservacionista Álvaro Coutinho Aguirre a redescobriu nas matas mineiras na década de 1960. Em 1976, o pesquisador brasileiro Célio Valle, da Universidade Federal de Minas Gerais, avistou o muriqui-do-norte na fazenda Montes Claros e logo contou ao primatólogo e conservacionista Russell Mittermeier, então vice-presidente da ONG WWF. A história depois disso foi veloz. Em 1981, Russell esteve no Brasil para registrar os animais em filme. E foi assim, a partir do documentário O Grito do Muriqui, que a história de Karen começou a mudar para a floresta tropical atlântica. Ela teve acesso ao material e rapidamente entrou em contato com o primatólogo para que ele a ajudasse a vir ao Brasil a fim de conhecer e ver de perto o animal.
Desde então, a vida da antropóloga e professora, que não sabia falar nada de português, se entrelaçou com a vida desses primatas, dos pesquisadores brasileiros e das pessoas do entorno da fazenda, principalmente Seu Feliciano, que a recebeu em casa no início das pesquisas. A partir dessa chegada, a vida dos muriquis começou a ser desmitificada. Ou melhor, revelada.
Do povoado, leva-se 15 minutos de carro para chegar na RPPN. O clima estava bastante seco e quente, mas ao entrar nessa ilha de mil hectares de Mata Atlântica conservada, a experiência inclui uma mudança significativa de temperatura.
Karen havia chegado bem cedo à sede de pesquisas e centro de visitação da ONG Preserve Muriqui, e nos aguardava com um rádio comunicador em mãos, ansiosa para entrar na mata. Bem-humorada, com português fluente e um sotaque delicioso, ela mal nos deu tempo para as apresentações antes de nos convocar a entrar na trilha cujo início ficava a poucos metros da casa. “Para não perder o momento”, disse, animada.
Duas estudantes bolsistas já estavam na floresta acompanhando um grupo de macacos e comunicaram pelo rádio que em breve nos encontrariam. Boa parte das trilhas são as mesmas que Karen conheceu quando, em 1982, ainda com vinte e poucos anos, chegou ao Brasil acompanhando Mittermeier para avistar, pela primeira vez, o muriqui-do-norte na floresta tropical.
A espécie seria tema de sua tese de doutorado na Universidade de Harvard, nos EUA, mas a escolha por estudar os primatas já tinha sido feita alguns anos antes, quando Karen completou um estágio com babuínos no Quênia ainda durante a graduação. A mudança do ambiente de uma savana para a densidade e umidade da Mata Atlântica foi significativa e impactante, assim como o primeiro encontro com o muriqui-do-norte.
“Quando entrei na floresta, lembro que respirei e senti aquela energia da vida. Ouvimos os barulhos das árvores balançando, depois o relincho, e depois apareceu o muriqui”, lembra Karen. “E aconteceu uma coisa no meu corpo inteiro, uma coisa fisiológica, como se todas as coisas na minha vida ficassem alinhadas.”
Logo depois dos primeiros minutos dentro da mata pudemos entender a dimensão, a “energia da vida” e a intensidade da proximidade com esse primata carismático. Nos primeiros 100 metros de trilha começamos a ouvir um barulho forte nas árvores, de galhos altos quebrando e alguns relinchos. Quando olhamos para cima, um grupo de 10 ou 15 machos se aproximava rapidamente. Meu coração disparou – éramos observados de perto. Nos agachamos e, em silêncio, esperamos um pouco.
“Estamos a dois metros de uma das espécies de primatas mais criticamente ameaçadas do mundo”, me sussurra Karen, visivelmente feliz. “Eles não estão com medo, mas bravos porque estamos atrapalhando o café da manhã deles.”
A voltar para a sede fomos entendendo o universo que Karen encontrou há quase 38 anos quando começou suas pesquisas no Brasil. Em 1983, já decidida a desenvolver um estudo sobre o muriqui-do-norte e com financiamento garantido por Harvard, voltou a fazenda Montes Claros e se abrigou na casa de Feliciano Abdala, um brasileiro raro, que continuou apoiando o trabalho de Karen e sua equipe até morrer, em 2000, aos 92 anos.
A pesquisadora passou 14 meses visitando a mata diariamente e passava, em média, 12 horas sozinha, em silêncio, observando a floresta e acompanhando um grupo de 22 indivíduos. De certa forma, essa barreira natural da língua foi determinante para o período de observação e descobertas sobre o animal.
“Eu acho que esse tempo na mata sozinha me ensinou primeiro a não estar distraída. Tive que aprender como chegar perto, como me comportar na presença do grupo de muriquis. Tudo que estava vendo era novo”, diz Karen. “Como já vinha treinando como antropóloga e com a perspectiva comparativa dos babuínos, pude ver que os muriquis são absolutamente diferentes e eu estava aberta para essas possibilidades, mas com conhecimento. Porque às vezes com conhecimento e cabeça fechada não se vê as coisas, e sem conhecimento e com cabeça aberta, não se sabe como interpretá-las.”
Passamos um tempinho na casa sede e retornamos à mesma trilha. Agora os muriquis estavam mais afastados. Mesmo assim, permanecemos cerca de duas horas conversando e observando os animais. Um grupo de machos bem ativos continuava se alimentando. Era o grupo do Matão, o mais antigo em observação. Hoje, os pesquisadores acompanham cinco grupos e um total de 250 macacos na área da RPPN. Um dos métodos da pesquisa e de identificação implementados por Karen é o do desenho manual da face de cada indivíduo, para que ele possa ser reconhecido em campo. Todos os estudantes e pesquisadores que passam pelo projeto, principalmente os bolsistas, utilizam as técnicas e rotinas que ela desenvolveu durante os 14 meses de pesquisa de campo de seu doutorado, cada um com seu desenho e caderneta. Outros dados também são coletados em tablets e passam para um centro comum de informações.
Os muriquis-do-norte são hipnotizantes. A cara com marcas esbranquiçadas permite que cada um tenha uma caraterística única de identificação. E o método de desenho manual é fundamental para a pesquisa. “Cada pesquisador faz a sua interpretação. Cada um tem seu jeito de vê-los”, conta Karen.
Caminhava conosco uma estudante bolsista do projeto, Camila Barrios, que já estava acompanhando o grupo do Matão desde as primeiras horas da manhã. Outras duas bolsistas monitoravam o grupo Jaó, que frequenta áreas mais distantes da sede. Este ano, a equipe de estudantes é 100% feminina.
Ficamos o resto da manhã na trilha, observando o grupo de machos se alimentar, passar por entre nós pelas copas das árvores e relinchar muito. Enquanto monitoravam os animais, Karen e Camila trocavam percepções o tempo todo.
Pela observação de longo prazo Karen pode descobrir caraterísticas completamente inéditas dos muriquis e o que os diferenciam de todos os demais primatas: vivem em uma sociedade pacífica, igualitária, não agressiva, resiliente e dispersora de sementes. Uma inspiração para a humanidade, de acordo com a pesquisadora.
Foi o tempo de observação que mostrou, por exemplo, que a fêmea, depois de sete anos, sai do seu grupo para encontrar um novo e iniciar seu período reprodutivo. Boa parte das informações iniciais já mostravam que o comportamento desses animais era completamente diferente de tudo o que se conhecia sobre primatas. Outros dados genéticos e sobre fertilidade vieram do cocô. Isso mesmo, as fezes do muriqui são essenciais para o método não invasivo de Karen, que diz sempre colocar o bem-estar dos animais à frente de seus objetivos científicos.
“Posso ficar anos e anos os seguindo e ainda não vou conhecer a fisiologia, os hormônios. Então, desenvolvemos pesquisas cujos métodos não exigem contato nenhum com os animais”, conta Karen. “Fizemos isso através das fezes, e o cocô é uma substância mágica: reciclável, regenerável, e eles fazem várias vezes por dia. Depois da coleta, e usando as técnicas de laboratório, se extrai informações sobre hormônios, genética.”
Karen acredita que, além de contribuir para a tranquilidade de indivíduos de uma espécie criticamente ameaçada, o método não invasivo para obter informações biológicas também pode ser útil se, por algum motivo, veterinários precisarem manipular um animal. Mas fazer toda a coleta e enviar esses materiais para análises em laboratórios nos anos 1980 não era uma tarefa simples. Karen relata que só foi possível com a colaboração de muitas pessoas, desde pesquisadores a moradores das comunidades próximas.
Em 1992, a americana lançou a primeira edição do livro Faces das Floresta. Em 1994, um artigo que rodou, e roda, o mundo, O mito do primata típico, apresentou o que ela vinha descobrindo sobre o maior macaco das Américas. Essas duas obras mudaram a percepção do que se conhecia sobre os muriquis-do-norte. O que se supunha até então vinha de referências de animais completamente diferentes do macaco brasileiro. Pensava-se que eram como chipanzés, entre os quais brigas e agressividade por comida ou fêmeas são atitudes comuns. Mas por aqui, na Mata Atlântica, não tem guerra.
Depois de uma manhã extasiante ao lado dos macacos e da pesquisadora, fizemos uma pausa durante a hora mais quente, quando os animais também diminuem a atividade. Voltamos para a mata às duas da tarde. Karen já tinha recebido as informações das pesquisadoras sobre fêmeas que estavam se locomovendo em outra parte da RPPN. Seguimos para lá, mas, enquanto nos preparávamos para uma íngreme subida, ela fez uma pausa e sugeriu que esperássemos pois, provavelmente, teríamos uma surpresa.
Em menos de 20 minutos, um grupo grande de machos passou por nós. Atrás deles vinham algumas mães carregando filhotes em suas costas. Pareceu que Karen tinha combinado algo com os bichos. Mas, na verdade, trata-se de mais uma habilidade adquirida com o tempo na floresta e com os muriquis: Karen ouve sua intuição. “Quando estava começando a seguir os muriquis, às vezes era muito difícil chegar até eles pelas trilhas, o que me deixava pensando: se fosse um muriqui o que faria agora?”, perguntou-se Karen. “Muitas vezes acertei com esse pensamento.”
A sequência de comportamentos que pudemos assistir, ali parados, foi emocionante e inesperada para todos que testemunharam. Alguns macacos começaram a beber a água que fica represada em buracos nas árvores. Com mão em forma de cuia, coletam a água e ingerem tranquilamente, um de cada vez. A cena deixa Karen satisfeita. Pouco antes eu havia a indagado sobre algumas ameaças previsíveis, como as mudanças climáticas. A pesquisadora me contou que essa é uma grande preocupação para todos que trabalham com conservação de espécies. Grandes períodos de secas – que devem se tornar mais comuns com o aumento da temperatura global – podem ser determinantes para o futuro dos muriquis.
Poucos minutos depois, antes das cinco da tarde do primeiro dia acompanhando os animais, outro momento especial: um grupo de pelo menos 10 machos começa a descer das árvores e se aproxima de nós. Quase rente ao chão, cinco deles fazem o que os pesquisadores chamam de “cacho” – sobem um em cima do outro e ficam olhando e vocalizando em nossa direção. Em seguida, ainda no chão, aproximaram-se mais um pouco até ficar a alguns metros de distância. A pedido de Karen, saímos imediatamente e voltamos para estrada principal.
Foram cenas inesquecíveis que deixaram a equipe em êxtase. A pesquisadora saiu para a estrada com sorriso no rosto. “Eu volto a sentir como se tivesse vinte e poucos anos. A pesquisa aberta, mil perguntas, curiosidade profunda – aí não consigo parar”, diz Karen.
A cena dos muriquis não era inédita – tanto Karen quanto suas estudantes bolsistas já tinham presenciado comportamento parecido anteriormente. Aliás, Camila Barrios e Isabella Moreira, outra pesquisadora do projeto, comentaram que a atitude parece estar acontecendo com maior frequência. “Estamos com dúvidas se está acontecendo ou se é só impressão”, comenta Karen. “Para entender o que significa, se é realmente algo diferente ou apenas uma mudança de comportamento, se eles estão importando uma atitude das árvores para o chão, precisamos mais observação e junção de dados.”
Ao longo dos dias me chamou a atenção a cautela da pesquisadora no uso das palavras. Nada é definitivo, nada está fechado, mas é recorrente o uso da intuição e da criatividade, inclusive em conversas que tive com as bolsistas. “Muitas pessoas acham que a criatividade e a intuição estão de um lado e a ciência, que é algo muito rígido, de outro. Mas eu não vejo ciência funcionando sem criatividade e intuição”, comenta Karen. “A diferença é que quando sinto, quero testar se meu sentimento está correto, aí entra na questão de como compatibilizar as duas coisas.
Para fechar o dia fomos até o mirante aberto para visitação da RPPN. Com o calor ainda intenso, é possível ver perfeitamente a ilha de conservação rodeada de morros já desmatados. Os então 900 hectares de floresta da fazenda Montes Claros, conservada pelo amor de Feliciano Abdala por essa mata densa, virou uma Reserva Particular do Patrimônio Natural em 2001. Hoje, a reserva é administrada pelo neto, Ramiro Abdalla Passos, através da ONG Preserve Muriqui, da qual Karen é diretora cientifica. “Meu avô admirava muito o trabalho dela”, comenta Ramiro. “Hoje a Karen nos ajuda a buscar recursos, descobre oportunidades, nos insere e participa do equilíbrio das pesquisas que acontecem aqui dentro, que não são apenas sobre os muriquis.”
Este ano, um projeto de ecoturismo para observação dos animais será inaugurado na reserva. Assim como acontece com algumas espécies no continente africano, como chimpanzés e gorilas, a ideia é atrair conservacionistas e ecoturistas interessados em ver o muriqui-do-norte em seu ambiente natural. Há também uma expectativa de que a renda possa atrair mais recursos para estruturar a visitação, treinar e remunerar guias e contribuir com a própria conservação do muriqui.
Ver com calma para ver melhor
No segundo dia, encontramos novamente com Karen na sede da RPPN e seguimos a pé pela estrada que corta a reserva. A mata é farta para os animais. Pela trilha pudemos ver muitas cascas de bicuíbas já devoradas pelos animais. A fruta, quando madura, exibe uma forte coloração avermelhada e é um dos alimentos preferidos do muriqui. Não demorou muito para, ali mesmo, começarmos a ver novamente alguns indivíduos do grupo Matão.
Desta vez, muitas mães com filhotes. Alguns filhotes estavam começando a trocar o leite pelas folhagens. Carregando os muriquis de pelo bem loirinho, as mães faziam a “ponte”, movimento em que utilizam a longa cauda para se segurar no galho de uma árvore e os braços no de outra, criando uma passagem para que o filhote atravesse as árvores. Muito outros indivíduos continuavam se alimentando e se abraçando. O tempo todo. O toque é algo fundamental no comportamento do muriqui – demonstra companheirismo, presença, união.
Além de serem as fêmeas que deixam o grupo ao atingir maturidade sexual – algo raro entre mamíferos – a cópula dos muriquis também é um caso peculiar. Não existe agressividade nem entre os machos, nem entre machos e fêmeas. Em parte, porque ambos têm o mesmo tamanho, mas, sobretudo, pela atitude dócil desses primatas. Os machos nunca competem pela fêmea e a fêmea pode copular com quantos machos quiser. Se um macho é preterido, não tem problema. Sem estresse no mundo dos muriquis. Uma sociedade igualitária, da não violência e com muito abraço e apoio. Dá ou não dá para nos inspirarmos com os muriquis-do-norte?
“Quando estava começando a seguir os muriquis, às vezes era muito difícil chegar até eles pelas trilhas, o que me deixava pensando: se fosse um muriqui o que faria agora? Muitas vezes acertei com esse pensamento.”
POR KAREN STRIERPRIMATÓLOGA
É a possibilidade de trazer informações valiosas para a ciência que faz da pesquisa de longo prazo um trabalho tão importante. A organização na coleta dos dados, possibilitando a utilização pelos especialistas através de uma matriz de dados existe graças a dedicação e a atuação permanente e persistente de Karen e seus colaboradores. Por isso, todos em campo andam com tablets, coletando informações sobre que animal foi avistado, que tipo de atividade foi observada, quais eram os indivíduos no entorno, a localização.
Para Karen, a disponibilização das informações, tanto pelos seus artigos e a prolífica produção acadêmica, quanto por essas trocas, treinamentos e colaborações, é vital. “Dá continuidade a vida de cada animal. E, quando essas pessoas vão embora, treinamos outras pessoas, e quando elas vão embora, outras”, comenta Karen. “Isso possibilitou que aumentássemos muitas coisas no projeto. Hoje, não é apenas um grupo sendo monitorado, são cinco grupos com quatro pessoas na mata direto – estamos treinando muita gente, é a continuidade do acompanhamento.”
Reconhecimento internacional
“Este é o estudo sobre primata em área neotropical de longo prazo mais antigo e dentre os mais importantes do mundo”, me conta o primatólogo Russell Mittermeier em entrevista por telefone. “Não há ninguém no mundo que fez tanto para treinar pessoas em um país tropical no estudo de um primata tão importante. Karen merece todo reconhecimento. Ela fez muito para o desenvolvimento da ciência e da primatologia neste país.”
Em quase 38 anos de existência, o projeto Muriqui de Caratinga já formou 75 pessoas em mestrado, doutorado ou colaborações em estudos próprios. Esse volume nos permite imaginar como o conhecimento dessa pesquisadora já foi replicado e como seus estudos influenciam cientistas no Brasil e o mundo.
Pergunto de onde ela tira tanta inspiração. “Eu gostaria de pensar que eu consigo, de uma forma ou de outra, pelo treinamento, pela produção científica, despertar o interesse das pessoas. Porque é fascinante o que a gente está fazendo com os muriquis e a importância de tudo isso. Eu mostro que é possível – se tiver interesse, se tiver paixão – conseguir seguir seus sonhos.”
À noite, em nossa despedida de Caratinga, confraternizamos com toda a equipe de mulheres pesquisadoras e Karen. Foi divertido. Nesses momentos, não deixo de pensar em como, se não fosse pelo sotaque, ela passaria por brasileira, adaptando-se rapidamente ao jeitinho do país.
Febre amarela e a rede Muriqui
Se no passado a caça foi um dos grandes motivos do declínio dos muriquis-do-norte na Mata Atlântica, hoje a fragmentação da floresta somada a outros fatores imponderáveis, como mudanças climáticas e doenças, preocupam todos que trabalham pela conservação da espécie.
Para melhor entender o futuro das pesquisas com esses animais, saímos de Caratinga e rodamos 400 km rumo a Conceição do Ibitipoca, um distrito do município de Lima Duarte, na Zona da Mata mineira. Por lá, em outra reserva particular, a Reserva do Ibitipoca, acompanhamos um novo projeto de pesquisa com esses primatas. Essa nova etapa veio acompanhada de uma mudança nos métodos de Karen. A urgência exigida em caso de doenças a fez abrir exceções importantes na abordagem não invasiva de pesquisa. Em 2016, a febre amarela chegou com tudo na Mata Atlântica. Em Minas Gerais, foi devastadora. Ainda hoje se fala de matas silenciosas, de onde os macacos bugios, ou barbados, sumiram.
Uma das principais colaboradoras de Karen Strier, a bióloga Carla de Borba Possamai, que começou a estagiar com a pesquisadora em 2001, hoje está a frente de um novo estudo sobre o impacto da doença em primatas. O projeto contou com financiamento da National Geographic Society.
Entre os muriquis de Caratinga, a perda foi de cerca de 100 indivíduos em dois anos. Mas Karen é categórica, e mais uma vez ponderada, com os números e as associações. “No surto da febre amarela que nós usamos como referência, entre os meses de outubro de 2016 e abril de 2017, perdemos 31 muriquis, que desapareceram, mas não temos como dizer que foi febre amarela”, conta Karen. “Eu comparei os mesmos meses com os de outros anos e nunca tivemos uma perda de tantos animais em um prazo tão curto. Então, é muito provável que, pelo menos em parte, esses animais morreram por causa da febre amarela ou algo ligado a doenças.” O número de mortes representou, na época, um declínio de 10% da população de muriquis da RPPN Feliciano Miguel Abdala em apenas seis meses.
Apesar do desespero que tomou conta da pesquisadora, ela prefere ser realista e pensar nos que sobreviveram. “Ainda com 250 muriquis, isso já é cinco vezes mais do que era quando eu comecei em Caratinga, quando havia dois grupos, cada um com uns 22 indivíduos”, comenta ela. “O que se vê é a potência da natureza em se recuperar e a fragilidade de ser perdida.”
Em Conceição do Ibitipoca, o projeto de um grupo de pesquisadores tenta salvar umapopulação de muriquis-do-norte que foi diminuindo até sobrarem apenas dois machos. Existia o medo de perder as informações genéticas dessa população e só restariam duas opções: levar para o cativeiro ou deixar se extinguirem. O projeto foi discutido no âmbito do Plano de Ação Nacional (PAN dos Muriquis), uma iniciativa do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodivesidade (ICMBio) para salvar duas espécies – Brachyteles hypoxanthus, o muriqui-do-norte, e Brachyteles arachnoides, muriqui-do-sul – da extinção.
Todos os pesquisadores envolvidos decidiram tentar recuperar a população, criando um novo grupo social ao introduzir novas fêmeas entre os machos restantes. Os cientistas escolheram duas fêmeas que estavam isoladas ou a procura de outro grupo. Esse projeto é tocado pelo Muriqui Instituto de Biodiversidade através de dois colaboradores que já passaram, de alguma forma, por Karen e o Muriqui de Caratinga. Fabiano de Melo é colaborador de Karen e fez pós-doutorado com ela nos EUA. Já a bióloga Fernanda Tabacow fez mestrado com Karen na Universidade Federal de Viçosa e foi bolsista do projeto em 2005.
Passamos dois dias acompanhando as reuniões e expectativas com relação ao projeto e conhecendo a Casa do Muriqui, onde estão os quatro indivíduos. Se tudo der certo, e os animais conseguirem se reproduzir, será a primeira vez que uma população de muriquis é recuperada.
Encerramos a viagem inspirados por Karen e todo um grupo de cientistas que trabalham incansavelmente pela conservação. Percebemos que a natureza, quando ajudada, responde de maneira contundente. O espírito conservacionista dessas pessoas é de amor pela biodiversidade. É de fazer parte dela. E, no fim, vejo que a generosidade, a colaboração, o espírito livre – meio hippie – dos muriquis-do-norte, também trasbordam em Karen Strier.
Certa vez, ela me contou sobre sua admiração desde criança pela Mulher-Maravilha e como costuma inserir a personagem em suas palestras. Depois de testemunhar a predominância das mulheres na primatologia, confirmada por Russell Mittermeier, e de ter convivido durante alguns dias com uma de suas maiores referências, não tenho dúvidas de que Karen Strier também é, pelo menos no mundo da conservação da biodiversidade, uma super-heroína.
Esta reportagem foi parcialmente financiada pela Fundação Toyota do Brasil. Paulina Chamorro é jornalista e João Marcos Rosa, fotógrafo, ambos colaboradores da National Geographic Brasil. Conheça o trabalhos deles no Instagram: @Pauli_Chamorro e @JoaoMarcosRosa.
Fonte: Paulina Chamorro – National Geographic