“Tenhamos cuidado com os sabotadores da estabilidade. O povo mobilizado é que evitará, sempre, qualquer fracasso”, advertira às milhares de pessoas que o escutavam. “Falo agora ao sentimento mais patriótico de cada um de nós, para que a nação não esmoreça no seu direito e dever de zelar pelo êxito do Plano Cruzado.”
O plano de combate à inflação, baseado no aumento salarial e congelamento de preços, vinha dando sinais de desgaste precoce. De um lado, consumidores eufóricos lotavam açougues, padarias e supermercados; do outro, indústria e comércio alegavam prejuízos, negando-se a repor seus produtos pelos valores fixados em tabela. Resultado: filas quilométricas, escassez de mercadorias, lojas fechadas e rumores de toda ordem.
Naquela sexta-feira, 25 de abril, Sarney havia obrigado seu porta-voz para assuntos econômicos, o jornalista Frota Neto, a desmentir boatos sobre possíveis reajustes nos preços. O assessor declarou à imprensa que o congelamento vigoraria enquanto não fosse “apagado da memória de todos o fenômeno inflacionário” e mandou uma indireta para o secretário especial de Abastecimento, José Carlos Braga, apontado como responsável pelos burburinhos da semana: “Quem fala em descongelamento é sabotador.”
Braga, enfurnado em seu gabinete na Avenida Prestes Maia, no centro da capital paulista, se explicaria no início da noite. “Não falei em descongelamento de preços. Quem sabe o momento e a hora de terminar esta medida é o presidente da República. Eu defendo a atual política econômica”, disse. Por fim, o secretário adiantou: “O governo também poderá importar produtos necessários que faltarem no mercado”.
Um clarão no céu de Pripyat
A 11 mil quilômetros dali, um novo dia se delineava. Na Ucrânia, segunda república mais populosa da União Soviética, os relógios já marcavam as primeiras horas de sábado, dia 26.
Ao norte do país, nas imediações da fronteira com a Bielorrússia, os 50 mil habitantes de Pripyat aglomeravam-se em varandas para contemplar o cenário insólito que emergia no horizonte. À 1h23, um clarão tingira de tons brilhantes e avermelhados o céu da cidadezinha, lar dos trabalhadores da Central Nuclear de Chernobyl.
Pouco antes, técnicos da usina avaliavam quanto tempo suas turbinas permaneceriam girando após uma queda abrupta de energia. O teste resultou numa explosão de vapor e num incêndio de grandes proporções, que derreteu o núcleo do reator número 4. Dois funcionários morreram e uma gigantesca nuvem radioativa tomou a atmosfera, deixando rastros cancerígenos ao longo de sua travessia pelo continente europeu.
Pripyat estava prestes a ser evacuada. Nos próximos dias, os hospitais da região abrigariam pelo menos 40 mil indivíduos doentes e desesperados.
No resto do mundo, a catástrofe seria noticiada a partir da segunda-feira, dia 28, quando o governo soviético emitiu uma nota oficial sobre o caso. Daquele momento em diante, a perspectiva de um apocalipse nuclear disputaria a atenção dos brasileiros com problemas aparentemente mais triviais — como a crise de desabastecimento que se delineava no país.
Já na terça-feira, conforme previsto por José Carlos Braga, a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal), empresa vinculada ao Ministério da Agricultura, lançou um edital para a compra de 43 mil toneladas de leite em pó e 2,5 mil toneladas de manteiga, a serem adquiridas no mercado externo e incorporadas aos estoques reguladores do governo federal. Os trâmites, todavia, foram cancelados na esteira do desastre ucraniano, que gerou temores envolvendo a possibilidade de contaminação dos laticínios importados.
No dia 12 de junho, a licitação foi reaberta com novas cláusulas. Um dos itens previa que as mercadorias procedentes de países europeus deveriam, obrigatoriamente, vir acompanhadas de atestados oficiais garantindo sua não-contaminação radioativa. Mais adiante, o edital estabelecia: “Nos portos de destino, os produtos poderão ser analisados pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), a qual, dependendo do resultado dos exames realizados, terá amplos poderes para vetar a descarga ao navio, correndo por conta do importador todas as despesas decorrentes da imediata retirada do produto do Brasil.”
Em 23 de agosto, uma matéria do jornal O Estado de S.Paulo revelou que parte do leite adquirido na licitação estava contaminado por radioatividade. A denúncia levaria a Secretaria de Planejamento da Presidência da República (Seplan) a produzir um relatório sobre o caso. Finalizado no dia 3 de outubro daquele ano, o documento integra um conjunto de dossiês confidenciais que a BBC News Brasil obteve durante uma pesquisa nos fundos do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão criado no início da ditadura militar e dissolvido em 1990, durante o governo Collor.
O acervo do SNI tornou-se público em 2005, após a assinatura do decreto 5.584 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e hoje pode ser consultado por qualquer pessoa através do Sistema de Informações do Arquivo Nacional. O material obtido pela reportagem totaliza quase 200 páginas, que jogam luz sobre os bastidores de um episódio controverso e praticamente esquecido da história brasileira recente — a distribuição, via governo federal, de alimentos contaminados pela radiação da usina soviética.
A licitação da Cobal, primeiro capítulo dessa história, contemplou quatro empresas diferentes, segundo o dossiê da Seplan. A maior beneficiada foi a Econtrading Comércio Exterior, sediada na Bahia, que forneceu ao governo 20 mil toneladas de leite em pó. Destas, 3 mil apresentavam índices de contaminação radioativa.
A CNEN, porém, não impediu que o lote fosse descarregado do navio.
Cientistas alertaram
A carga da Econtrading chegara ao Rio de Janeiro no dia 15 de agosto de 1986, vinda da Irlanda. Seu recebimento pelos órgãos fiscalizadores, aponta o relatório da Seplan, contrariava “item específico do edital” e demonstrava um “tratamento discriminatório” na condução do processo. Nas palavras do relator anônimo, a imagem institucional da Cobal havia sido “seriamente abalada, com reflexos na área do Ministério da Agricultura.”
Após a constatação de radioatividade, o leite irlandês foi submetido a análise no Instituto de Radioproteção e Dosimetria (IRD), vinculado à CNEN. O laudo pericial, emitido em 25 de agosto pelo engenheiro químico Haroldo Lessa Peixoto de Azevedo e pelo engenheiro nuclear Luiz Fernando de Carvalho Conti, apresentava dados alarmantes.
Conforme observações dos peritos, o índice de césio-137 presente nas amostras ultrapassava os encontrados “em diversos países do Hemisfério Norte”, sendo cerca de mil vezes superior às médias obtidas pelo instituto desde 1979. Entretanto, o laudo atestava também que o leite era plenamente “apropriado para o consumo humano”. A carga, naquele momento, já havia chegado ao porto de Santos, no litoral paulista, onde permanecia retida.
Em entrevista publicada pelo Jornal do Brasil dois dias depois, os técnicos minimizaram os efeitos da radiação. Conti disse: “Não é tão perigoso quanto se imagina”. Azevedo declarou: “Meu filho tomaria esse leite”.
Mas nem todos os especialistas estavam tranquilos.
A desconfiança predominante nos meios acadêmicos se intensificaria dali a um mês, quando a CNEN equiparou os limites de radioatividade permitidos nos alimentos importados aos padrões europeus. A resolução, publicada pelo Diário Oficial da União no dia 26 de setembro, apontava o sistema vigente na Comunidade Econômica Europeia como o “mais restritivo dentre os existentes” e estabelecia os valores máximos de césio-137 a serem aceitos no Brasil — 3700 becquerel por quilograma de leite em pó e 600 becquerel por quilograma de qualquer outro produto.
A medida permitiu que a carga da Econtrading ganhasse as prateleiras dos supermercados, contrariando parte da comunidade científica.
Luiz Pinguelli Rosa, físico nuclear e atualmente professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi um dos vários especialistas a se posicionarem contra a resolução. Em entrevista à BBC News Brasil, ele associa o episódio à ressaca da ditadura militar, que havia chegado ao fim no ano anterior.
“Sarney foi um herdeiro dos militares”, afirma. “A estrutura de seu governo se baseava num autoritarismo muito grande, que atingia inclusive a CNEN. As decisões tomadas naquele ambiente eram bastante sui generis. Nós importamos tudo aquilo que os europeus evitavam consumir.”
Passados mais de trinta anos, Pinguelli se mantém categórico em sua avaliação do incidente. “Aquela medida violava um princípio básico de precaução. As partículas não são homogêneas, e os lotes tinham diferentes níveis de radioatividade”, explica. “Dentro de uma média supostamente tolerável, poderiam existir alimentos impróprios para consumo. A segurança da população foi colocada em risco.”
Sete mil toneladas de carne radioativa
Um mês após a chegada do leite contaminado, o país recebeu um lote contendo 100 mil toneladas de carne bovina e suína, provenientes dos EUA e da Europa. A importação havia sido autorizada pelo ministro da Fazenda, Dilson Funaro, através da Interbras, extinta estatal de comércio exterior vinculada à Petrobras.
A mercadoria, estocada nos frigoríficos da Companhia Brasileira de Armazenamento (Cibrazem), no município gaúcho de Canoas, a 18 quilômetros de Porto Alegre, foi submetida a testes pela CNEN. Houve constatação de radioatividade em mais de sete mil toneladas do lote, mas sua comercialização seria interrompida apenas no dia 30 de abril de 1987, mediante uma ação cível ajuizada por Amir Sarti, procurador regional da República.
Os frigoríficos locais responderam à interdição com uma proposta, aceita pelo procurador em janeiro de 1988: oferecer a carne sob certas condições, tais como a divulgação prévia dos pontos de venda e a fixação de cartazes alertando aos consumidores para a radioatividade. Em seguida, lotes de carne deveriam ser remetidos aos açougues paulistas e fluminenses, onde o produto estava em falta.
No dia 21 daquele mês, o vereador Paulo Emilio Oliveira, do PDT carioca, enviou a Sarney um telegrama em que expressava sua “indignação” com a medida. Presidente da Comissão de Higiene, Saúde Pública e Bem-Estar Social da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Oliveira exigia “providências imediatas para recolhimento e tratamento como lixo atômico desses produtos lesivos a qualquer ser vivo”.
No dia 4 de fevereiro, o telegrama foi anexado a um dossiê do Conselho de Segurança Nacional (CSN). Flávio Jussiani Ramos, secretário-adjunto de Sarney, solicitara ao órgão que examinasse a mensagem e o instruísse das “providências julgadas cabíveis”. No dia 22, o general Bayma Denys, secretário-geral do CSN, desaprovou a “linguagem contundente e imprópria” que Oliveira empregara para “dirigir-se à mais alta autoridade da Nação” e concluiu que ao vereador não cabia “resposta de qualquer órgão do governo federal”.
Destino: África e Caribe
Àquela altura, a venda da carne já havia sido novamente barrada, dessa vez pelo Tribunal Federal de Recursos, extinto órgão do Poder Judiciário. O fato causava certa angústia à administração Sarney: noutro relatório confidencial, emitido em 24 de maio de 1988, um funcionário do SNI se queixava do “considerável prejuízo” causado pela interdição e da impossibilidade de distribuir o alimento “para os programas assistenciais do governo”.
O Ministério da Justiça, tentando se eximir do impasse, formara uma comissão técnica para avaliar os estoques da Cibrazem. Além de Haroldo Peixoto, da CNEN, e Epaminondas Ferraz, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, vinculado à USP, a equipe contava com dois membros do Departamento de Medicina Legal da Unicamp — Nelson Massini e Fortunato Badan Palhares, que haviam trabalhado na exumação do médico nazista Josef Mengele e na perícia do acidente com o césio-137 em Goiânia.
O laudo expedido pelo grupo no dia 9 de março informava que as amostras de carne suína continham “traços de césio-137, embora abaixo do limite de detecção”, sendo, sob aspectos radiológicos, “próprias para o consumo humano”. A carne bovina, por sua vez, não teria apresentado “indícios de contaminação radioativa artificial”.
No entanto, o aval dos peritos não serviu para grande coisa. Após anos de congelamento, a mercadoria começava a se deteriorar, adquirindo um aspecto desagradável e escurecido.
Antes mesmo que o laudo fosse divulgado, o SNI já tinha conhecimento do problema. Um relatório do dia 23 de fevereiro atestava que cerca de 130 toneladas de carne suína apresentavam “acidez excessiva para o consumo humano”.
Quatro meses depois, no dia 23 de junho, um memorando da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Agricultura relataria que a carne apresentava “desidratação superficial, ocasionada, principalmente, pelas más condições de embalagem.”
José Lima de Castro, diretor do órgão, tornaria a alertar o SNI na semana seguinte: “Dentro de pouco tempo, essa carne entrará em processo de deterioração, com prejuízo total”, sentenciou via telegrama no dia 30.
Pelo menos até o início da década de 1990, a mercadoria permaneceu armazenada em Canoas. De lá, foi retirada pela Sola Indústrias Alimentícias, fábrica de enlatados responsável por processar a carne para outra empresa, a Iaco Trading, que obtivera o estoque em leilão. A Sola, sediada no município fluminense de Três Rios, tinha planos específicos para o produto: transformá-lo em charque e embutidos, numa tentativa de disfarçar sua aparência, e depois exportá-lo para o Caribe e países da África.
O processo teria gerado aproximadamente US$ 1,5 milhão em receitas de exportação, segundo matéria publicada pelo O Fluminense no dia 21 de junho de 1992. Em entrevista ao jornal, o diretor administrativo da Sola, José Carlos de Aquino Figueiredo, se referiu ao Caribe e ao continente africano como mercados baratos. “Com uma carne mais velha”, explicou, “conseguimos competitividade nessas regiões.”
Depois disso, nada mais foi noticiado sobre o caso.
A BBC News Brasil tentou contatar o presidente da indústria, o italiano Carlo Sola, atualmente ligado ao mercado imobiliário — a construtora que leva seu sobrenome foi aberta em 1999 e se apresenta como a “melhor empresa de incorporação, construção e comercialização das regiões centro-sul e serrana do Estado do Rio de Janeiro”.
Sauro Sola, filho e sócio do empresário, comunicou à reportagem que o pai “está com mais de oitenta anos e prefere se manter reservado a entrevistas”.
Diabetes, tumores malignos e disfunção erétil
Contrariando os laudos divulgados pelo governo federal na década de 1980, a Justiça brasileira admitiu, quase trinta anos depois, a possibilidade de riscos no manuseio e ingestão dos alimentos radioativos. Em julho de 2014, o juiz Márcio Lima do Amaral, da 5ª Vara do Trabalho de Canoas, condenou a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) a indenizar em R$ 462 mil o ex-funcionário José Antonio Oliveira dos Santos.
A Conab foi criada no início da década de 1990, por meio da fusão de três estatais do setor logístico: a Companhia de Financiamento da Produção, a Cobal e a Cibrazem. Oliveira trabalhou para a Cibrazem ao longo de dois anos, atuando na manutenção de câmaras frigoríficas. O contato com a carne radioativa teria trazido a ele uma série de problemas de saúde que perduram até hoje, incluindo três cânceres primários em diferentes partes do corpo.
Em 15 de julho de 2013, Oliveira ajuizou uma ação trabalhista contra a empresa, reivindicando indenizações por danos materiais e morais. Um ano depois, ganhou o direito a receber R$ 62 mil para arcar com despesas médicas e R$ 400 mil por danos morais, em valores da época. A sentença, publicada no dia 22 de julho de 2014, assegurava que o valor era compatível “com toda a via crúcis” que o ex-funcionário enfrentara “em face da sua condição de saúde”. Destacava, ainda, que ele havia sido “acometido por doença ocupacional, com sequelas graves”.
Oliveira ingressou na Cibrazem em janeiro de 1988, como assistente técnico especializado. O trabalho consistia em adentrar as câmaras frias, verificar o funcionamento delas e, vez ou outra, efetivar pequenos consertos. Durante o expediente, o ex-funcionário permanecia exposto a milhares de toneladas de carne radioativa — que, segundo ele, a empresa utilizava nas refeições dos trabalhadores.
“Eu tinha a impressão de estar sendo bem cuidado”, afirma em entrevista à BBC News Brasil. “Nunca fomos informados de nada. Nunca recebemos nenhum equipamento para trabalhar com supostas contaminações. Até consumimos daquela carne.”
Oliveira deixou a Cibrazem em fevereiro de 1990, ao ser aprovado num concurso público do Senai. Os primeiros problemas surgiriam dali a alguns anos. “Tudo começou com a minha dificuldade em ter filhos”, lembra.
No dia 12 de julho de 1993, o ex-funcionário recebeu um diagnóstico de oligospermia, condição médica caracterizada pela secreção insuficiente de esperma. Em 17 de janeiro de 1994, uma biópsia nos testículos revelou que ele também sofria de hipoespermatogênese (baixa formação de espermatozoides).
Oito anos depois, Oliveira foi acometido por um tumor maligno na tireoide, submetendo-se a sessões de radioterapia e a um procedimento cirúrgico para a retirada da glândula. Em 2008, passou a sofrer de disfunção erétil. Em 2010, enfrentou um câncer de pele que atacou seu rosto e couro cabeludo — a remoção do tumor o deixou com uma cicatriz na cabeça. Em 2012, foi novamente internado — dessa vez, para a extração de um linfoma próximo aos pulmões.
Ao todo, passou por quatorze procedimentos cirúrgicos. “Eu estava muito abalado com a minha condição física, sem entender o que acontecia”, diz.
Lembrando-se das antigas polêmicas envolvendo a importação de alimentos durante o Plano Cruzado, Oliveira realizou uma pesquisa na internet sobre a carne de Chernobyl. Deparou-se, então, com um acórdão proferido em 1989 pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que desaconselhava o consumo do lote. Por fim, decidiu buscar ajuda especializada.
“Ele veio ao meu consultório em março de 2013”, diz Rosemarie Stahlschmidt, radioterapeuta do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. “Dei a ele orientações para que encontrasse literatura científica sobre os efeitos da radiação em tecidos sadios.”
Esses efeitos, explica Stahlschmidt à reportagem, dependem de diversos fatores: o tipo específico de radiação, a dose, o tempo de exposição e o volume de tecido irradiado. A exposição, por sua vez, pode ocorrer em várias situações cotidianas: pela prática médica diagnóstica (como as tomografias e exames de raio-x), pela presença de gás radônio no ar e radiação gama no solo, pelo contato de aeronaves com a radiação cósmica e, também, pela ingestão de alimentos.
“Cada tecido tem seu limite próprio para radiação, a partir do qual pode apresentar algum dano”, diz a médica. “Tecnicamente qualquer uma dessas exposições apresenta algum tipo de risco, mas em sua grande maioria estão presentes no ambiente sem que a gente se dê conta.”
Stahlschmidt, no entanto, evita associar as doenças de Oliveira à sua antiga rotina de trabalho. “Não há como afirmar com certeza que o paciente tenha sido efetivamente exposto, pois não existe nenhum registro dosimétrico dessa exposição”, argumenta.
O ex-funcionário, porém, acreditava estar sofrendo os efeitos da radiação. Quatro meses após a consulta, ajuizou uma ação contra a Conab. A sentença proferida no ano seguinte atestava: “O perito médico de confiança do Juízo é contundente ao afirmar que há nexo causal entre as lesões apresentadas pelo demandante e as condições de trabalho a que foi submetido (radiação)”.
“A Conab nunca admitiu o problema”, afirma Oliveira. “Pelo contrário. Me submeteu à perícia médica e fez de tudo para protelar a ação.”
Ao longo do processo, a Conab negou que suas dependências apresentassem níveis danosos de radiação. Alegou, também, que os direitos de Oliveira já haviam prescrito e atribuiu à Previdência a responsabilidade pelo pagamento de eventuais indenizações, mediante o Seguro de Acidente de Trabalho. Em mensagem enviada à BBC News Brasil, a empresa contestou as denúncias do ex-funcionário, classificando o processo como um “fato isolado”.
“Embora a Justiça do Trabalho tenha julgado procedente a ação, não há nos autos comprovação técnica por meio de perícia especializada de que a carne estivesse contaminada”, alega a Conab. “Além disso, não há registro de outra pessoa que tenha trabalhado no mesmo local e contraído os mesmos sintomas ou doenças.”
Germano Schwartz, advogado do ex-funcionário, diz o contrário. “Há pessoas que contatamos e que sabem ter sido vítimas”, relata. “Contudo, não quiseram ingressar com a ação.”
Oliveira ainda hoje se recorda dos colegas: “Alguns já faleceram, mas nunca saberemos o real motivo de suas doenças.” Aos 53 anos, ele mantém os exames em dia e passa por tratamento de diabetes — sequela da remoção da tireoide.
“Graças a Deus, não tive mais nenhum tumor maligno”, afirma. “Preciso estar sempre alerta com tudo o que aparece na minha pele. Não há dinheiro no mundo que pague a saúde de uma pessoa.”
Fonte: BBC