Segundo indígenas, fluxo de garimpeiros brasileiros rumo à Guiana Francesa aumentou devido à enfraquecimento do controle na fronteira em meio à pandemia de coronavírus. Governos negam redução do efetivo.
As fronteiras estão fechadas, mas o fluxo de barcos clandestinos pelo rio Oiapoque, que divide Brasil e Guiana Francesa, aumentou. Embora a pandemia provocada pelo novo coronavírus tenha levado ao fechamento da fronteira terrestre entre o país e o território francês, garimpeiros brasileiros chegam em maior quantidade a terras amazônicas habitadas por indígenas, denunciam lideranças locais.
“Nunca foram capazes de erradicar o garimpo ilegal de ouro. Com a pandemia, a situação piorou”, disse à DW Brasil Claudette Labonté, presidente da Federação Parikweneh da Guiana Francesa e parte da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica).
Segundo Labonté, a ameaça da covid-19, doença respiratória provocada pelo novo coronavírus, fez com que a vigilância nas fronteiras esmorecesse. “A polícia baixou a guarda”, afirma a líder. “Estamos numa emergência de saúde. A diminuição da vigilância do tráfego nos rios não deveria acontecer.”
Para conter a disseminação do coronavírus, o governo brasileiro anunciou na semana passada o fechamento de todas as suas fronteiras terrestres, inclusive com a Guiana Francesa, para estrangeiros, o que, em tese, deveria significar maior vigilância.
Segundo relatos das comunidades que vivem na Amazônia do território francês, os invasores também chegam por terra. Eles transitam pela floresta para garimpar em áreas onde os indígenas caçam e pescam. “Essas pessoas andam armadas e são perigosas”, dizem os indígenas.
Denúncias semelhantes também chegaram ao WWF. “Recebemos um testemunho de uma jovem que mora lá. Ela diz: ‘Hoje em dia a tensão é alta, a água está realmente suja, e os garimpeiros ilegais são muito numerosos'”, disse Laurent Kelle, diretor da ONG na Guiana Francesa.
Segundo o relato, o rio Maroni, na fronteira entre a Guiana Francesa e o Suriname, está contaminado pelos rejeitos dos garimpos, e não é mais possível pescar ou nadar sem que o corpo sinta os efeitos. “Precisamos de ajuda. Estamos em perigo”, diz a mensagem recebida por Kelle.
Questionado sobre a vigilância na fronteira com a Guiana Francesa durante a pandemia, o Ministério da Defesa brasileiro respondeu por e-mail: “As Forças Armadas continuam com sua atuação nas fronteiras em apoio aos órgãos de segurança federais com o mesmo efetivo.” A nota, por outro lado, não detalhou a quantidade de oficiais que cuidam da tarefa.
Embora confirmem ter recebido dos indígenas relatos sobre o aumento de garimpeiros ilegais, as autoridades da Guiana Francesa disseram à DW Brasil que não observam esse fluxo maior.
“A proteção das populações indígenas é uma prioridade do governo, e relatórios recentes que sugerem um aumento do garimpo de ouro ilegal na área estão sendo levados muito a sério”, afirma Marc Del Grande, representante do governo francês na Guiana Francesa.
Caso nenhuma medida seja tomada, os indígenas disseram que planejam barrar a passagem dos barcos no rio por conta própria.
“Garimpeiro é sinônimo de brasileiro”
Com uma área de 84 mil quilômetros quadrados, a Guiana Francesa, coberta pela Floresta Amazônica, é um departamento ultramarino da França. Dos seus 290 mil habitantes, 15 mil são indígenas, de seis etnias. O território é historicamente marcado pela exploração do ouro desde a chegada dos europeus, e a presença de brasileiros em garimpos ilegais é conhecida e estudada por pesquisadores.
Segundo a pesquisadoras Joana Domingues Vargas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Jania Diógenes Aquino, da Universidade Federal do Ceará, estimativas apontam que 480 garimpos clandestinos estão em operação nas florestas da Guiana Francesa. Dez mil brasileiros em situação ilegal fazem parte da força de trabalho.
A ilegalidade movimenta a maior parte do mercado: apenas 20% do ouro extraído vem da mineração legal, e a principal rota do contrabando passa por Oiapoque, cidade do Amapá fronteiriça, apontam as pesquisadoras.
Décio Horita Yokota, coordenador executivo adjunto do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), também acompanha o cenário na região de fronteira. “Na Guiana Francesa, garimpeiro e brasileiro são sinônimos”, resume.
O maior impacto desse mercado recai sobre as populações indígenas dos dois lados da fronteira. “O uso intensivo do mercúrio no garimpo, assim como as atividades da máfia ligada ao garimpo, ameaçam indígenas na Guiana e no Brasil”, afirma Yokota. “É uma região de indígenas isolados e de etnias que transitam entre os dois territórios”, complementa.
As etnias teko, wayana and wayãpi são as que mais sofrem os impactos, afirma Labonté, da Coica.
Diferentemente da Constituição brasileira, a da França não reconhece as populações indígenas como povos originários que têm direito ao território habitado ancestralmente.
“O governo francês se recusa a reconhecer os indígenas, e essa recusa é ameaça ainda maior que a trazida pela mineração, pois nos impede de acessar nossos direitos internacionais, como o direito da consulta prévia e informada em caso de empreendimentos nos territórios indígenas”, critica Labonté. “Esses direitos estão intimamente ligados à proteção da própria Floresta Amazônica”, afirma a líder indígena.
Ameaça e confinamento devido à covid-19
Além das invasões, a pandemia de coronavírus trouxe mais dificuldade aos indígenas. Isolados em suas comunidades com famílias numerosas, eles não têm como se comunicar com hospitais em caso de uma emergência.
“Muito dinheiro está sendo gasto, e o preço do ouro subiu. Então, a mineração deve aumentar, e temos que nos preparar para o pior depois da pandemia”, prevê Labonté.
Sobre o combate ao garimpo ilegal, o governo francês afirma que militares, policiais e agentes da alfândega do Brasil e da França cooperam ao longo da fronteira com ações planejadas entre Caiena, capital da Guiana Francesa, e Brasília.
“Em 2008, foi assinado um acordo para garantir o combate coordenado à mineração ilegal de ouro, ratificado em 2013, com entrada em vigor em 2015. Desde então, várias operações conjuntas são realizadas”, diz Del Grande.
Os indígenas afirmam que, na prática, nada mudou. “As coisas estão muito ruins agora, mas os garimpeiros brasileiros são um problema há algum tempo. Eles não só destroem o meio ambiente e a qualidade da água, mas têm dinheiro, e, por causa disso, os preços sobem”, diz Labonté.
“Com tudo mais caro, a comunidade não consegue pagar pelos alimentos e outros itens básicos. E com o confinamento por causa da pandemia, está ainda mais difícil pra gente denunciar e combater essa situação”, lamenta.
Fonte: Deutsche Welle