Além do uso na saúde e em equipamentos de proteção, plástico ganha terreno com a profusão de embalagens em serviços de entrega. Trabalhadores da reciclagem pararam para evitar contato com lixo contaminado.
Julho é marcado, desde 2011, como o “mês sem plástico”. Muitas hashtags em diferentes países dominam as redes, impulsionando e estimulando atitudes que questionam os plásticos de uso único. O movimento, iniciado pelo Plastic Free July, chegou com força ao Brasil há dois anos. Julho de 2020, entretanto, será diferente.
É possível diminuir o uso de plásticos descartáveis durante uma pandemia?
Nos dias que correm, espalham-se pelas redes sociais imagens de praias e mares repletos de máscaras e luvas descartáveis – a maioria provavelmente usada para prevenir a covid-19. Também já se tem notícias do aumento do consumo de plástico descartável, principalmente de embalagens. Era de se esperar, já que o maior produtor de matéria plástica é o setor de embalagens. O descarte delas responde por mais da metade de todos os resíduos plásticos gerados globalmente – a maior parte nunca é reciclada ou incinerada.
O aumento do consumo de plástico é um problema que afeta o todo o planeta e traz novos desafios para uma cadeia de reciclagem ainda muito vulnerável. No Brasil, a questão ganha uma importante dimensão social: salvas raras exceções (como as únicas duas centrais de reciclagem mecanizadas de São Paulo), quase todo lixo reciclado passa pelas mãos de catadores.
Mudança de perfil do lixo brasileiro
Relatório da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) mostra que a quantidade de resíduos recicláveis coletados por serviços de limpeza urbana aumentou 28% em maio de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. O dado contrasta com uma queda de 9% na coleta de resíduos sólidos urbanos – juntando a coleta domiciliar e limpeza pública –, que vai direto para aterros sanitários. No entanto, o aumento na coleta não quer dizer aumento da reciclagem.
Essa mudança no perfil do consumo doméstico e as medidas de isolamento social afetaram profundamente o ciclo da reciclagem. “O impacto do nosso trabalho na cadeia da reciclagem foi algo que nós não imaginávamos”, observa Roberto Rocha, presidente Associação Nacional de Catadores e Catadoras do Brasil (Ancat). “Com a parada do trabalho dos catadores, a cadeia parou.”
Enquanto algumas cooperativas fecharam pela insegurança sanitária, outras chegaram a acordos com as prefeituras, inclusive de remuneração para os trabalhadores durante o período de pandemia. Os autônomos, catadores em situação de rua, também diminuíram o ritmo. Algumas cooperativas continuaram trabalhando, cumprindo contratos com prefeituras que não quiseram conversa.
Agora, à medida que a reciclagem se mostra essencial e a demanda pelo serviço aumenta, a pandemia deixou os trabalhadores do setor muito vulneráveis. “O Cempre [Centro Empresarial para a Reciclagem] calcula que pelo menos 90% de todo o material reciclável passa pela mão destes trabalhadores, informais ou cooperados, em algum momento”, diz Roberto Rocha.
Como o manuseio do lixo para coleta e separação é inevitável, havia, no começo da pandemia, medo de contaminação através do vírus que sobrevive em superfícies, principalmente de resíduos plásticos. Com o tempo, a Ancat passou a entender melhor a lógica de transmissão. A associação aguarda dois estudos para saber como retomar as atividades nas cooperativas e orientar a categoria.
A situação da pandemia aumentou a quantidade de recicláveis em lixões e aterros, e governos e empresas tiveram que investir no aumento da coleta, pois os catadores estavam parados. “O papel destes trabalhadores [catadores] não é visto como tinha que ser”, diz Rocha. “Não é remunerado dentro dessa cadeia que ele alimenta. Esse trabalho é também um trabalho essencial.”
Autoestima em tempos de crise
Contribuir para a valorização do serviço prestado por catadores – tanto do ponto de vista da autoestima, quanto do reconhecimento da sociedade e indústria a esses trabalhadores – é um dos objetivos do artista e ativista Mundano.
Nos últimos anos, Mundano fundou o projeto Pimp my carroça e o aplicativo Cataki. No primeiro, ele convida catadores para terem suas carroças grafitadas por ele e por outros artistas em diferentes cidades do Brasil. A ideia já se espalhou por pelo menos 12 países, segundo os organizadores. Já o aplicativo Cataki conecta quem quer reciclar com catadores e catadores que recolhem o material e o destinam.
Desde o começo da pandemia, o trabalho de pintura das carroças está suspenso, mas a ajuda, não. Com parcerias e doações, o galpão do projeto se transformou em armazém de cestas básicas. A equipe de 17 pessoas também criou o programa Renda mínima para os catadores, que está distribuindo um cartão de ajuda financeira para os trabalhadores cadastrados no aplicativo Cataki.
No período da pandemia, o artista também lançou o Desafio Água e Sabão, um sistema de colaboração que tem impacto direto na saúde de pessoas em situação de rua. Trata-se de uma simples ideia: espalhar por pontos estratégicos das cidades kits de higiene pessoal. Nas redes sociais, o artista ensina o passo a passo.
Reutilizando
“Está vindo muita luva, muita máscara. E isso prejudica o trabalho dos catadores”, comenta Rocha. “Neste momento de incerteza, a gente pede aos moradores que tiveram situação de covid-19 em casa, que não entreguem seus materiais [para reciclar] aos catadores e nem à coleta [por caminhão], até que se recuperem do vírus.”
Para quem vive a pandemia na pele e segue coletando, o problema do aumento de plásticos descartáveis é visível. Anne Caroline Barbosa, 28 anos, é catadora de recicláveis junto com o marido e, por necessidade, continua saindo em São Paulo.
“Tenho visto, no dia-a-dia, o aumento de plásticos, mas de descartáveis. Por causa do novo hábito das pessoas de pedir delivery, de se alimentar em casa. Mas, para nós, catadores, é considerado lixo porque não tem reciclagem, não gerenciamos, e o ferro velho não compra”, conta Barbosa. “Infelizmente, vemos o aumento desse material, mas a maior quantidade vai para o aterro. Como não tem reciclagem, não tem valor para o catador, vai para o aterro ser queimado.” O isolamento social não é uma realidade para todos, ela pontua. E a necessidade de estar na rua é sua luta “pelo pão”.
A falta de cuidados no nosso manejo do lixo reciclável piora a situação. Barbosa explica que ainda existe muito desconhecimento sobre coisas simples, como limpar os descartáveis.
“Antes da pandemia, já corríamos o risco de doenças ao gerenciar materiais que poderiam estar contaminados, mas, agora, o perigo é dobrado”, alerta. “[Perigo de,] além de tudo, ter que lidar com uma doença que a gente não conhece. Ou a gente trabalha e se expõe a esse risco, ou a gente vê a fome bater a nossa porta.”
Volte duas casas
No momento em que politicas públicas de manejo de resíduos plásticos avançam em todo o mundo – com leis que restringem o uso de descartáveis como sacolas e canudinhos, por exemplo – a pandemia chegou para que voltássemos algumas casinhas neste jogo. No mundo e no Brasil.
De acordo com o WWF, o país é o quarto maior gerador de lixo plástico no mundo, pelo menos antes da pandemia. Mas dados sobre o destino dos resíduos ainda são raros e esse vácuo de informações vai demorar para ser atualizado com a nova realidade de uso de descartáveis.
A dificuldade em gerir o lixo e ampliar a reciclagem mostra como estamos atrasados na resolução de problemas que já deveriam ter sido encarados, antes de uma emergência como a da pandemia. A incorporação formal dos trabalhadores de recicláveis, por exemplo, já foi prevista na lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos, aprovada ainda em 2010, mas, até hoje, como a maioria dos termos da política, não saiu do papel.
Recentemente, o movimento Break Free From Plastic divulgou declaração de quase 120 pesquisadores, acadêmicos e médicos de 18 países, afirmando que materiais e objetos reutilizáveis, contando que há higienização básica, .
O manifesto deixa clara a importância do material plástico nos serviços de saúde e na proteção de trabalhadores essenciais. Porém, o movimento alega que há uma grande diferença entre o uso sanitário, como em equipamentos de proteção individual, e as embalagens comuns. Segundo os pesquisadores, a indústria do petróleo e do plástico tem, intencionalmente, levado consumidores a pensar que seus produtos só estarão livres do vírus se estiverem embalados por plástico descartável. Não é verdade: estudos apontam que, sim, é seguro reutilizar.
O que podemos fazer neste momento? Separar o material, um hábito que não se pode perder. Limpar vasilhas, garrafas e outros recicláveis antes de mandar para a coleta. Não descartar luvas e máscaras em dias de coleta seletiva e, se possível, separá-las em sacolas próprias ou no lixo do banheiro. Por último, é importante valorizar e contribuir com iniciativas que ajudem os trabalhadores de materiais recicláveis.
Fonte: National Geographic Brasil