A preocupante conexão entre desmatamento, mineração e malária pode desencadear surtos mais graves ainda em 2020.
Enxames de mosquitos surgem logo depois das queimadas na floresta.
Quando ateiam fogo nas árvores, uma fileira após outra, os garimpeiros escavam minas profundas na área desmatada para extrair ouro. Muitas dessas escavações invadem terras protegidas que ficam próximas às regiões de queimada, destruindo ainda mais a cobertura florestal da qual diversas pessoas dependem para viver. As crateras no formato de caverna se enchem de água, que fica ainda mais estagnada depois que as minas são abandonadas. É assim que as doenças transmitidas por mosquitos, como a malária, começam a se propagar com mais facilidade.
“Todo esse acúmulo de água se transforma em local perfeito para reprodução”, explica Marcia Castro, diretora do departamento de saúde global e população da Universidade de Harvard. “Desde a década de 1980, é possível encontrar diversos exemplos na Amazônia de aberturas de minas que desencadearam picos de transmissão de malária.”
Essa conexão — entre desmatamento e doenças — chamou a atenção de especialistas da Amazônia e moradores locais este ano. As taxas de desmatamento recorde do ano passado na região aumentaram novamente no primeiro semestre de 2020 e a previsão é que esse número não diminua, considerando que a temporada de queimadas florestais está começando e falta agilidade por parte do governo para monitorar a destruição.
Com o preço do ouro em alta, valendo mais de R$ 10 mil (US$ 2 mil) a onça, o mais alto em dez anos, a exploração ilegal do metal, geralmente em áreas de conservação e terras indígenas, provavelmente deixará a Amazônia repleta de criadouros que favorecem a reprodução de mosquitos — e mais uma crise de saúde pública para controlar.
Conexão entre desmatamento, mineração e malária
Embora qualquer tipo de desmatamento possa aumentar a taxa de disseminação de doenças transmitidas por mosquitos, os poços deixados pela exploração ilegal de ouro estão criando condições ideais para a reprodução do mosquito Anopheles, hospedeiro da malária, diz Rachel Lowe, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
Entre 2017 e 2019, a extração de ouro destruiu 10,2 mil hectares de terra em três territórios indígenas — Munduruku, Ianomâmi e Caiapó — localizados na Amazônia Legal, área sociogeográfica que inclui todos os nove estados da bacia amazônica criada pelo governo brasileiro em 1948 para ajudar a planejar o desenvolvimento econômico e social da região. Trata-se de uma área equivalente a 14 mil campos de futebol, de acordo com a organização sem fins lucrativos Amazon Conservation.
Em terras munduruku, o desmatamento causado pela exploração de ouro mais que dobrou entre 2018 e 2019, destruindo dois mil hectares no ano passado.
A perda de árvores continuou em 2020 e se estende além dessas terras indígenas. O desmatamento em toda a Amazônia cresceu 25% no primeiro semestre do ano, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) — estatística confirmada de forma independente pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, instituição de pesquisa sem fins lucrativos que estuda conservação e sustentabilidade.
O instituto também constatou que 43% desse desmatamento ocorreu no estado do Pará, na região norte do Brasil. Em junho, mês que marca o início da estação seca na Amazônia, época em que os incêndios se espalham com mais facilidade, 22% do desmatamento da Amazônia Legal ocorreu em áreas de conservação e 3% em terras indígenas.
Entretanto, o governo do estado do Pará afirma que a taxa de transmissão de malária em áreas de mineração aumentou 17,8% no primeiro semestre de 2020. Essa taxa, no entanto, pode ser muito maior, pois muitos casos não são notificados. De forma mais ampla, as doenças transmitidas por mosquitos em geral aumentaram 32% na região de Itaituba em comparação com o mesmo período de 2019. Nas terras indígenas do estado, esse número é de 46,7%.
Interrompendo o ciclo da malária
As condições nas áreas de extração clandestina são parte do problema. Áreas maiores desmatadas para a criação de pasto também podem causar a propagação da malária, mas são as áreas menores de terra desmatada utilizadas para mineração que apresentam maior risco de disseminação da doença.
“Eles estão confinados, mas geralmente há pessoas morando perto, que ficam altamente expostas a todas as mudanças ambientais”, diz Castro. “As condições favorecem a formação de ainda mais criadouros, aumentando a densidade dos mosquitos e, consequentemente, a propagação de doenças.”
O uso de redes mosquiteiras e outras medidas preventivas praticamente não existem e, embora o Brasil conte com o SUS, sistema público de saúde, o acesso ao atendimento médico em áreas remotas da Amazônia é praticamente impossível, observa André Siqueira, infectologista e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Rio de Janeiro. Mesmo se houvesse clínicas ou hospitais próximos, os garimpeiros provavelmente não buscariam tratamento médico devido ao caráter ilegal de seu trabalho.
Em vez disso, os garimpeiros, que geralmente desconhecem as medidas de prevenção e tratamento de doenças como a malária, “acabam se automedicando, tomando uma dose mais baixa do medicamento e permanecendo infectados por vários dias, ou tomando remédios antimaláricos para qualquer febre que eventualmente tenham”, diz Siqueira.
A movimentação desses garimpeiros pela floresta faz com que a malária também circule. A transmissão da doença não ocorre diretamente de pessoa para pessoa. Mas se um mosquito picar uma pessoa já infectada com malária, ele pode carregar o parasita que causa a doença e transmiti-lo a outras pessoas. A doença pode ser transmitida para as pessoas que moram nas cidades onde os garimpeiros vivem e eventualmente retornam, ou para os indígenas que vivem nas regiões próximas da Amazônia
Karo Munduruku viveu na Reserva Indígena Praia do Mangue a vida toda. A reserva está localizada nos arredores de Itaituba, município do Pará chamado de ‘cidade pepita’ pelos moradores. Os garimpeiros ilegais começaram a invadir as terras munduruku muito antes de ele ter nascido.
“Nunca vou me acostumar com a destruição que eles deixam para trás”, diz ele.
Com a atenção voltada para o número crescente de casos e mortes por covid-19 no país, e com as ações do governo federal que enfraqueceram as leis de proteção à Amazônia, Munduruku teme que o desmatamento comece a afetar a saúde de sua família. Ele se recorda de seus dois irmãos mais novos sofrendo durante semanas com febre, calafrios, suores noturnos e náuseas quando contraíram malária anos atrás. Ele não quer que isso aconteça novamente.
A migração na região amazônica também aumentou nos últimos anos, com os venezuelanos entrando e saindo do Brasil e de outros países da América do Sul para escapar da crise econômica e política de seus países. Um viajante que contrai malária na Amazônia brasileira pode, mais tarde, desencadear um surto da doença em outro país.
“Isso pode fazer com que a transmissão recomece”, diz Lowe, cuja pesquisa está voltada para a forma como a interação dos fatores ambientais e socioeconômicos define o risco de transmissão de doenças. E devido à conexão global entre pessoas e doenças, é crucial encontrar uma maneira de livrar o mundo desse desequilíbrio entre saúde humana e meio ambiente.
Para que a região recupere o equilíbrio, Castro acredita ser necessária uma transformação total. O modelo de desenvolvimento na Amazônia, ela diz, sempre foi de exploração de recursos naturais, desde o aumento da extração de borracha no início da década de 1900 até a corrida do ouro que continua até hoje. Considerar os povos indígenas e outros grupos tradicionais que vivem na Amazônia é o primeiro passo para a criação de um modelo que permita o uso e a proteção dos recursos naturais da floresta.
“As pessoas sabem como utilizar a floresta de forma sustentável e há diversos dados que mostram que é possível tornar a Amazônia lucrativa e produtiva sem aumentar o desmatamento”, diz ela. “Se estamos enfrentando esses problemas hoje, é porque nosso modelo falhou completamente.”
Fonte: National Geographic Brasil