ALGUNS DOS PRIMEIROS PESQUISADORES DE DOENÇAS, como Edward Jenner, Louis Pasteur e William Farr, suspeitaram que vacinar um número considerável de pessoas poderia erradicar uma determinada doença. No início do século 20, veterinários mais interessados em gado do que em pessoas conceberam a noção e cunharam o termo “imunidade de rebanho”. Na década de 1920, estudos geniais com centenas de milhares de ratos popularizaram o conceito otimista de que imunizar uma fração da população poderia evitar um surto devastador.
Mas até mesmo os pesquisadores pioneiros da imunidade de rebanho não sabiam ao certo como ela funcionaria na prática. Essa questão esteve presente na luta contra diversas epidemias modernas, como a varíola, a poliomielite e o sarampo. E agora retorna ao debate com a resistência da pandemia de covid-19 em grande parte do mundo.
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Alguns líderes importantes questionam se a imunidade de rebanho proporcionada pelo contágio natural de pessoas com o coronavírus SARS-CoV-2 seria suficiente para restabelecer a normalidade na sociedade. Como evidência disso, apontam aos epicentros duramente atingidos como a cidade de Nova York, onde aproximadamente 20% dos residentes foram contaminados e o número de casos está baixo e estável há meses. Alega-se que essa estabilidade na recuperação pode ser devido à proteção de rebanho.
Entretanto cálculos simples, experiências anteriores com surtos e novas evidências sobre a atual pandemia indicam que essa afirmação não passa de uma fantasia.
“Se a cidade de Nova York tivesse alcançado imunidade de rebanho suficiente, os casos deveriam reduzir e não apresentar estabilidade”, afirma Virginia Pitzer, epidemiologista da Escola de Saúde Pública de Yale, especializada em modelagem matemática na propagação de doenças.
A realidade é que a maior parte do mundo — incluindo 90% dos Estados Unidos — continua suscetível à contaminação pelo coronavírus, apesar do aumento no número de casos mundialmente. Contar com um contágio natural para controlar o surto demoraria meses, talvez anos, passando por um ciclo estarrecedor de altas e baixas nos casos. Ainda que fosse obtida tal proteção mediada pela comunidade, seria constantemente afetada pelo nascimento de crianças e pela possibilidade concreta de redução de imunidade das pessoas anteriormente contaminadas.
Apenas duas doenças infecciosas já foram completamente erradicadas: a catastrófica varíola e a peste bovina. Todas as demais afecções conhecidas — incluindo epidemias do Velho Mundo como a raiva, a hanseníase e a peste bubônica — foram contidas pela intervenção humana ou estão limitadamente controladas.
“É bastante improvável que a covid-19 seja erradicada na população simplesmente pelo aumento da imunidade natural”, afirma Pitzer. Contudo, se uma vacina altamente eficaz for desenvolvida, prossegue Pitzer, “então é teoricamente possível a eliminação do vírus” ou ao menos seu controle.
Um relatório com 237 páginas elaborado pela ONG National Academy of Medicine, publicado em 2 de outubro, descreve uma forma de distribuição igualitária da vacina — e também explica a dificuldade desse processo. Uma etapa crucial será informar o grau necessário de eficácia da vacina para interromper a transmissão. Embora os principais órgãos de saúde, como a Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) e a Organização Mundial da Saúde, afirmem que uma vacina contra a covid-19 deve ter ao menos 50% de eficácia para ser aprovada, esse critério seria, na realidade, baixo demais para alcançar uma imunidade protetora de rebanho.
“Não significa que uma vacina abaixo desse limite não será útil”, afirma Bruce Y. Lee, professor e diretor executivo de Pesquisa Computacional e Operacional em Saúde Pública (PHICOR) da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Municipal de Nova York. “Contudo, para eliminar a necessidade de manter distanciamento social e outras precauções, a vacina precisa ter uma eficácia superior a 80%”.
O verdadeiro significado da imunidade de rebanho
O estudo sobre a imunidade de rebanho no combate a epidemias começou a ficar conhecido na década de 1920, na Universidade de Manchester, na Inglaterra. Em um laboratório da universidade, cerca de 15 mil ratos por ano corriam por recintos semelhantes a bases lunares em miniatura. Compartimentos residenciais labirínticos — cada um com cerca de 30 centímetros de largura — eram conectados por túneis cilíndricos, permitindo a livre circulação dos roedores pelas cidades em miniatura.
E ocasionalmente, as cidades de ratos passavam por epidemias — iniciadas intencionalmente por William Whiteman Carlton Topley e Graham Selby Wilson, líderes do projeto. Os membros de uma cidade eram expostos a bactérias letais, enquanto outros em uma cidade separada recebiam doses de uma vacina junto com o germe perigoso. As conclusões da dupla — publicadas em 1923 — demonstraram que a imunidade em uma parcela da população poderia retardar um surto e proteger indivíduos que ficariam suscetíveis sem essa imunidade.
“O fenômeno foi denominado epidemiologia experimental”, conta Paul Fine, professor de epidemiologia de doenças transmissíveis na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, que realizou pesquisas extensas sobre as origens da imunidade de rebanho. Topley e Wilson — e também outros pesquisadores contemporâneos — contribuíram para a popularização do conceito, sobretudo por meio de um compêndio ainda utilizado até hoje nas faculdades.
No entanto, quando a maioria das pessoas fala sobre imunidade de rebanho atualmente, está de fato fazendo alusão ao que é conhecido como “teorema do limiar epidêmico”. É a esse conceito que se referem os cientistas ao afirmar que 75% da população precisa adquirir imunidade contra a covid-19 para conter a transmissão da doença, sendo um percentual surpreendentemente simples de calcular.
Suponhamos que um germe chegue a um novo planeta, onde uma população inteira é vulnerável. E suponhamos que uma pessoa contaminada transmita o germe a quatro outras pessoas em média — um valor conhecido como o número de reprodução basal do germe, representado por um R e um zero subscrito e, por isso, chamado R-zero. Para achatar a curva de crescimento do surto, a situação ideal é que os infectados contaminem apenas uma em cada quatro pessoas.
“Para tanto, é necessário que três dentre quatro pessoas já tenham imunidade. O infectado espirra em quatro rostos, mas três desses indivíduos já estão imunes”, afirma Fine. Três em cada quatro são três quartos, o que significa que é necessário um limiar de 75% para alcançar a imunidade de rebanho.
As taxas de reprodução de cada vírus são diferentes, portanto, cada um tem seu próprio limiar de imunidade de rebanho. Se for feito o cálculo para o sarampo, em que um caso pode contaminar 18 pessoas suscetíveis, o resultado será de 94%. A poliomielite possui um R-zero igual a sete, então seu limiar epidêmico é de 85%. Esses percentuais servem como metas para vacinação em massa. Se forem alcançados, haverá pessoas suficientes na comunidade em questão protegidas da doença e uma pessoa de fora portadora do germe não seria capaz de desencadear um surto contínuo.
Embora os fundamentos do teorema do limiar tenham surgido no início do século 20, George Macdonald, epidemiologista britânico, foi o primeiro a incorporar o número de reprodução em seus estudos sobre a malária na África na década de 1950. Foi nesse continente que um ponto cego causado pela rigorosa adesão ao conceito logo seria descoberto.
Por que apenas a vacinação em massa não foi capaz de erradicar a varíola?
William Foege, como bombeiro voluntário do Serviço Florestal dos Estados Unidos, com 16 anos na época, aprendeu um princípio fundamental que acabaria por salvar milhões de pessoas do tormento da varíola: “Separe o combustível das chamas e o fogo cessa”, escreveu Foege em seu livro de memórias House on Fire (“Casa em Chamas”, em tradução livre).
Esse mantra permaneceu com Foege após ingressar na agência atualmente conhecida como Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos em 1962 e ele acabou servindo na Nigéria como funcionário do programa Serviço de Inteligência Epidêmica.
Três anos antes, a Assembleia Mundial da Saúde da Organização das Nações Unidas e a OMS lançaram uma campanha global de erradicação da varíola. O programa de vacinação em massa rapidamente eliminou a doença na Europa e na América do Norte, porém, quase uma década depois, a doença permaneceu endêmica em grande parte da África, Ásia e América do Sul, onde dezenas de milhares de casos ainda são notificados a cada ano. O vírus continuou encontrando refúgio — tanto em áreas rurais quanto em cidades com alta densidade onde a contaminação ficou facilitada — e segue ameaçando áreas que estão livres de determinadas doenças, uma vez que a imunidade da vacina durou apenas cinco anos.
Tudo mudou em 4 de dezembro de 1966, quando um missionário na região sudeste de Ogoja na Nigéria entrou em contato com Foege para alertar sobre um novo possível surto. Após percorrer quase 150 quilômetros de motocicleta, Foege e seu centro de varíola confirmaram quatro casos em um vilarejo — mas imediatamente enfrentaram um dilema. O protocolo padrão exigia vacinar todos os moradores em todos os vilarejos dentro de um determinado raio, mas a equipe não dispunha de doses suficientes. Foi preciso improvisar.
“O que o vírus da varíola, com o objetivo de se manter vivo, faria para perpetuar sua árvore genealógica?”, escreveu Foege. “A resposta, é claro, era encontrar a pessoa vulnerável mais próxima para assegurar a reprodução.”
Assim, decidiram monitorar e vacinar os indivíduos mais propensos a entrar em contato com os casos conhecidos. Essa estratégia denominada “vacinação em anel” ou “vigilância e contenção” ajudou a eliminar os últimos focos de varíola.
Foi explorada uma peculiaridade do teorema do limiar epidêmico. Essa equação básica pressupõe que todos os indivíduos de uma população estão igualmente em contato uns com os outros e transmitem o vírus infeccioso da mesma forma.
“O mundo real não segue esses pressupostos”, afirma Jeffrey Shaman, epidemiologista da Faculdade de Saúde Pública Mailman da Universidade de Colúmbia. Basta observar a covid-19. Jovens adultos respondem pela maior parte da transmissão em parte porque possuem maior interação social.
Esse risco desigual de infecção — ou heterogeneidade — cria pontos com concentrações maiores e menores de propagação viral. Se uma equipe de saúde pública for capaz de conter o contágio pelos principais transmissores, será possível controlar um surto com menos doses de vacina. Essa é uma grande vantagem — sobretudo quando uma epidemia está próxima da eliminação e a vacinação em massa se torna muito dispendiosa.
Em 1971, um epidemiologista chamado John Fox começou a formular modelos de imunidade de rebanho que incorporavam melhor a heterogeneidade e, décadas depois, ainda é uma prática padrão utilizada pelos pesquisadores de saúde pública. A prática é semelhante à limpeza de árvores, arbustos e outros detritos inflamáveis feita por bombeiros para cercar um incêndio florestal descontrolado e explica por que profissionais de saúde, socorristas e pessoas em locais com surtos como prisões provavelmente serão os primeiros a receber uma vacina aprovada contra a covid-19.
“Ao eliminar o combustível um passo à frente do vírus, estabelecemos uma linha de fogo”, escreve Foege, que passou a ser diretor do CDC em 1977, mesmo ano da erradicação da varíola na África. Atualmente, ele atua como copresidente do painel responsável pelo relatório da National Academy of Medicine, além de ser um renomado professor emérito de saúde internacional na Universidade Emory, em Atlanta.
“A filosofia da ciência consiste em eliminar as barreiras da ignorância”, disse Foege na coletiva de imprensa de divulgação do relatório em 2 de outubro. “A filosofia inerente à medicina busca a verdade para cada paciente individual, mas a filosofia inerente à saúde pública busca a verdade para todos.”
Mas sua revelação sobre linhas de fogo também implica que é necessária a imunidade de menos pessoas para conter a transmissão — menos do que o previsto pelo teorema do limiar e pelas metas de vacinação em massa. Atualmente, essa noção inadvertidamente impulsionou o equívoco de que é possível conter a covid-19 com segurança alcançando um limiar mais baixo por meio do contágio natural.
Nosso futuro com a covid-19 depende de nós
Em 14 de agosto, Tom Britton, matemático da Universidade de Estocolmo, na Suécia, e dois outros cientistas lançaram um modelo na revista científica Scienceque estima como a atividade social pode influenciar o limiar de imunidade de rebanho. Eles partiram do pressuposto válido de que as gerações Y e Z possuem maior interação social do que pessoas mais velhas e, assim, transmitem mais facilmente o vírus. A equipe de Britton chegou a um limiar epidêmico de 43% — muito menor do que os 60% a 75% obtidos utilizando a equação clássica.
“Não estamos alegando que o número obtido no nosso modelo seja aplicável ao mundo real”, adverte Britton, acrescentando que o modelo apenas demonstra o alcance do papel da imunidade induzida por doenças. “A intenção de nossa pesquisa não é tranquilizar as pessoas a ponto de abandonarem as restrições e esperarem pela imunidade de rebanho.”
Outra limitação da modelagem da heterogeneidade, segundo Shaman, da Universidade de Colúmbia, é que ninguém de fato sabe como ocorre a transmissão entre as pessoas na rua e, por isso, é difícil afirmar quais são as repercussões desses limiares menores na vida real.
“A heterogeneidade também está em constante alteração ao longo do tempo por causa das medidas colocadas em prática. O trabalho em casa, o fechamento das escolas e o uso de máscaras estão interrompendo todas as interações normais que aumentam a sobrevivência do vírus”, conta Shaman. “Essas medidas mudam completamente a situação.”
Além disso, estudos recentes sobre surtos explosivos de covid-19 em duas regiões diferentes sugerem que o teorema clássico de rebanho pode ser válido. No Catar, o limiar de imunidade do rebanho parece ter sido alcançado em cerca de 10 comunidades da classe trabalhadora.
“De tal modo, 60% da população do Catar é formada por trabalhadores imigrantes, quase todos homens e provenientes do sul da Ásia”, afirma Shaman. “Vivem em dormitórios. Comem em refeitórios. Em termos de interações, possuem a máxima homogeneização possível.
Em julho, pesquisadores começaram a estudar essas populações em busca de anticorpos, que indicam se houve contágio anterior. Foi constatado que entre 60% e 70% desses técnicos e operários — geralmente adultos jovens — haviam contraído covid-19 e desenvolvido imunidade. Os casos no país permaneceram baixos apesar da reabertura das fronteiras no meio do ano.
Outro estudo informou que Manaus, no Brasil, atingiu esse limiar e reduziu seu surto no meio do ano depois que o coronavírus contaminou entre 44% e 66% de sua população. Mas um novo surto de casos levanta dúvidas sobre a real proteção comunitária alcançada pela cidade — ou ainda pior, sobre a redução da imunidade contra o coronavírus.
Se confirmada a última hipótese, o vírus retornará ainda que seja atingido o limiar de imunidade do rebanho por vias naturais. Essa vulnerabilidade seria reforçada por crianças, que nascem sem defesas imunológicas e, portanto, são suscetíveis a contrair e transmitir a doença. Outra preocupação relacionada a uma diminuição da imunidade seriam reinfecções frequentes que resultem em sintomas graves, explica Shaman.
“Isso sugeriria que a pandemia não desaparecerá tão cedo e que a exposição anterior não reduz a chance hospitalização”, diz ele. Apesar da divulgação global de uma reinfecção grave, ainda não há evidências de reinfecções em larga escala.
Para eliminar essas possibilidades desoladoras e voltar à vida normal sem distanciamento social e uso de máscaras, a sociedade precisa de uma vacina que ofereça de forma suficiente a chamada imunidade esterilizadora, o que significa que a substância bloqueia a transmissão do coronavírus.
“Eu considero 80% ideal”, afirma Lee, da Universidade Municipal de Nova York, coautor de um artigo publicado em julho sobre as metas de eficácia almejadas para a vacina contra covid-19. O padrão mínimo de 50%, estabelecido pela FDA e pela OMS, só protegeria metade da população se todos fossem vacinados. Ficaria muito abaixo do limiar do teorema para a covid-19, calculado entre 60% e 75%. Esse cenário seria semelhante à vacina contra a gripe sazonal, cuja eficácia de transmissão varia entre 20% e 60%. A vacinação em massa não elimina a gripe, embora reduza a carga da doença na sociedade.
“É preciso esclarecer que a primeira vacina a chegar ao mercado pode não atingir esses níveis de eficácia”, afirma Lee. “Não é muito fácil obter uma eficácia tão elevada com um vírus respiratório.”
O motivo é que a orientação atual prevê que as primeiras vacinas poderão ser aprovadas ainda que forneçam apenas “imunidade funcional”, ou seja, proteção principal apenas contra os sintomas da doença.
O objetivo dos atuais estudos sobre vacinas contra covid-19 não é avaliar o impacto produzido pelas vacinas candidatas sobre a transmissão, escrevem os autores do relatório da National Academy of Medicine, que acrescentam ser possível que esse impacto permaneça desconhecido por muito tempo após a aprovação da FDA. Como explicam, a maior prioridade é impedir a morte de pessoas mais vulneráveis, sobretudo idosos com doenças pré-existentes e os escassos socorristas e especialistas de saúde atuando na linha de frente.
“Grande parte do objetivo tem sido o retorno à normalidade”, afirma Lee, “e não podemos ter expectativas tão elevadas.”
Fonte: National Geographic Brasil