Nos mais de 40 anos em que frequenta a Lagoa do Peri, localizada no sul da ilha de Florianópolis e conhecida por ser a maior lagoa de água doce da costa de Santa Catarina, o pescador Osni nunca havia visto tamanha estiagem. O rio que conecta a lagoa à casa da família, no alto de um morro por onde passam cachoeiras, está praticamente seco. Para sair de onde mora, Osni, que há alguns anos tornou a casa na lagoa sua residência permanente, precisa carregar a canoa por alguns metros de lodo até finalmente alcançar a água — são cerca de 20 minutos de remada até uma trilha que desemboca na estrada, que ele percorre de bicicleta.
Com pouco mais de 5 quilômetros de extensão e 11 metros de profundidade, a lagoa é cercada por vestígios de Mata Atlântica primária. Os cerca de 2 mil hectares que compõem o ecossistema são considerados unidade de conservação. Além da mata em regeneração, abriga animais típicos, como a lontra e o macaco-prego, e aves ameaçadas de extinção, caso da gralha azul. É fundamental também para o abastecimento de água de população da Ilha, atendendo entre 102 mil e 113 mil habitantes, principalmente nas regiões leste e sul.
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O desequilíbrio é preocupante. Em visitas técnicas, pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) já identificaram a morte de peixes, o aparecimento de gaivotas e gaviões que não fazem parte da fauna local e a proliferação de cianobactérias tóxicas. A proximidade com o Oceano Atlântico e a presença de um sangradouro entre o mar e a lagoa também aumentam o risco de que, se o processo de erosão continuar, a água salgada acabe contaminando a doce. Mas, além dos perigos locais, a situação na Lagoa do Peri serve de alerta para uma crise muito mais grave: os biomas brasileiros nunca estiveram tão ameaçados.
Segundo o primeiro Relatório Anual do Desmatamento do Brasil, divulgado no fim de maio pelo Map Biomas, o país perdeu em 2019 ao menos 1,2 milhão de hectares de vegetação nativa, área equivalente a oito vezes o município de São Paulo. Mais da metade (60%) de toda área desmatada está na Amazônia, com 770 mil hectares perdidos. No início de junho, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) constatou que entre agosto de 2018 e julho de 2019 foram desmatados 10.129 km² de floresta, área equivalente a mais de oito vezes a da cidade do Rio de Janeiro e maior índice desde 2008.
Mas a destruição também foi significativa no Cerrado (408,6 mil hectares), no Pantanal (16,5 mil hectares), na Caatinga (12,1 mil hectares) e na Mata Atlântica (10,6 mil hectares). Mesmo figurando como última da lista, a Mata Atlântica, bioma ameaçado desde o início do processo de colonização do país, teve um desmatamento significativo, com um crescimento de quase 30% entre 2018 e 2019 em relação ao ano anterior (2017-2018), de acordo com a Fundação SOS Mata Atlântica.
Os dados e o exemplo da situação da Lagoa do Peri evidenciam a gravidade de um efeito cascata generalizado da ameaça aos biomas brasileiros. “Pensar no estado de Santa Catarina não é só olhar para a Mata Atlântica. Ela está conectada com a Amazônia, por exemplo, não dá para pensar em uma coisa sem a outra”, explica o professor Lindberg Nascimento Júnior, do departamento de Geociências da UFSC. A bióloga Marlúcia Martins, pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, completa: “quando pensamos em respirar, beber água, comer e até se relacionar, precisamos lembrar que para cada uma dessas atividades existe algum serviço que os ecossistemas prestam.”
Caminho sem volta
Um bioma é o conjunto de ecossistemas animais e vegetais que têm um certo nível de homogeneidade ou características próximas entre si. No Brasil, há seis principais: segundo o IBGE, a Amazônia é o maior deles, ocupando 49,5% do território nacional; o Cerrado é o segundo mais extenso, correspondendo a 23,3% da área do país; em seguida vêm Mata Atlântica (13%) Caatinga (10,1%), Pampa (2,3%) e Pantanal (1,8%). Há ainda o Sistema Costeiro-Marinho, que ocupa 1,7% do território em sua parte continental (superpondo-se aos outros biomas).
Embora possam ser separados conforme suas características, no fundo, todos estão interligados. Na questão das chuvas, por exemplo, tão importante quanto sistemas de ventos e nuvens nos oceanos é a trajetória da água pelos chamados “rios voadores”. Isso depende muito do equilíbrio dos biomas que abastecem a atmosfera com água — papel desempenhado especialmente pela Amazônia — e a retêm no solo. É por isso que o desmatamento no norte tem efeito direto na estiagem do sul do país e, por sua vez, em ecossistemas locais.
É também nos biomas onde vivem bilhões de agentes polinizadores, como abelhas, vespas, formigas, moscas, borboletas, entre outros insetos. Esse conjunto das espécies que habitam sistemas, explica Martins, são fundamentais para a manutenção dos sistemas agrícolas. São eles que levam o pólen de um vegetal para outro, possibilitando reprodução e crescimento. Sem eles, o cultivo de soja, café, laranja e maçã, alguns dos principais produtos agrícolas do país, seria praticamente impossível, causando um grande prejuízo.
Um levantamento de 2019 da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos mostra que, em 2018, as culturas que dependeram desses agentes responderam por US$ 12 bilhões na economia brasileira. “O impacto da degradação de um bioma não é só ambiental, mas econômico”, explica Rubens Benini, líder da estratégia de restauração florestal da The Nature Conservancy (TNC) na América Latina. Desmatar a Amazônia, na visão do especialista, seria “matar a galinha dos ovos de ouro” do país.
“A curto prazo, o efeito negativo é termos nossa imagem internacional arranhada”, explica a pesquisadora do Emílio Goeldi. E isso já vem acontecendo: na última semana de junho, fundos internacionais de investidores, que gerenciam cerca de R$ 21 trilhões, cobraram do Brasil mais efetividade na área ambiental. “A médio prazo, precisaremos de um projeto de socorro. E, a longo prazo, perderemos a sustentabilidade natural, iremos à bancarrota, como muitas civilizações já foram, sem futuro mesmo para o agronegócio.”
É o que os especialistas chamam de tipping point, ponto a partir do qual um sistema não consegue mais se recuperar — em geral, estimado entre 20% e 25% de degradação. A Amazônia está hoje em 19%, segundo um artigo publicado em fevereiro de 2020 na revista Nature.
Como chegamos aqui
“A situação é mais grave do que parece”, diz Carlos Nobre, pesquisador aposentado do Inpe e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN). “Depois de grande sucesso nas políticas ambientais do país até 2012, voltamos a ter um aumento gradual no desmatamento, mas a partir de 2018 até o presente 2020 isso vem acontecendo com uma velocidade muito grande.”
Em junho, o sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou 1.034,4 km² de área com risco de ser desmatada. Esse número é o maior desde que o acompanhamento começou a ser feito, em 2015. No primeiro semestre deste ano, os alertas de desmatamento aumentaram 25% em comparação com o mesmo período de 2019, segundo o Inpe divulgou nesta sexta-feira (10).
Ao longo de 40 anos, principalmente a partir da Constituição de 1988, primeira a ter um capítulo específico para o meio ambiente e a impor o dever de defendê-lo e preservá-lo para gerações presentes e futuras, o Brasil vinha se posicionando bem nas questões ambientais, conforme avaliam os especialistas. Foram sendo criadas também leis e uma série de estruturas e aparatos para garantir que fossem cumpridas, como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em 1989, e o próprio Ministério do Meio Ambiente, em 1992.
“Nos anos 1990, 1992, o Brasil liderou as discussões com o conceito de desenvolvimento sustentável, seguindo um tripé social, econômico e ambiental”, diz Benini, do TNC. Até 2012, foram instituídas também leis como a dos crimes ambientais, prevendo sanções penais e administrativas para atividades que prejudicam o meio ambiente, e a de unidades de conservação. O Estatuto das Cidades, de 2001, teve entre os objetivos permitir que o desenvolvimento dos municípios não ocorresse em detrimento do meio ambiente.
Em 2012, porém, a situação começou a mudar. Um novo Código Florestal, mais permissivo que os anteriores, foi aprovado depois de cinco anos de discussões. De lá para cá, especialmente a partir de 2015, os índices foram aumentando gradualmente, até começarem a bater recorde atrás de recorde a partir de 2018. O que deu errado?
A primeira hipótese dos especialistas é a redução da fiscalização, que desde 2005 se tornou bastante rigorosa. Ainda que não prendessem diretamente os envolvidos, que em geral conseguiam escapar, os agentes capturavam e queimavam as ferramentas que eles deixavam para trás. “Os financiadores passaram a perder muito dinheiro com isso, pois o custo de cada trator daqueles [usados para derrubar árvores] é alto”, explica Nobre. Em 2019, no entanto, um dos principais órgãos fiscalizadores, o Ibama, teve o orçamento cortado em 24%. Com a redução das ações de controle, os criminosos ambientais voltaram a se sentir impunes.
O maior problema, concordam os estudiosos, foi a mudança drástica no discurso político, escancarado com a fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante a reunião ministerial de 22 de abril. Nas imagens divulgadas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, Salles falou sobre o que considerava ser uma oportunidade em meio à pandemia da Covid-19. Para ele, o governo deveria aproveitar o momento, em que o foco das notícias estava voltado para a saúde, e mudar regras que poderiam vir a ser questionadas na Justiça. “Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos neste momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de Covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, disse o ministro na ocasião.
“Está havendo um desmonte na estrutura nacional de proteção ao meio ambiente”, diz Marlúcia Martins. Esse desmonte, explica, vem ocorrendo com tentativas de rearranjos nas instituições que não poderiam ser feitos de forma “tão descarada”. “A legislação não pode ser tão alterada, mas todos os bons funcionários podem ser identificados, desautorizados e destituídos de suas funções”, diz. Um exemplo marcante foi a exoneração do chefe de fiscalização do Ibama e do responsável por operações contra crimes ambientais, que ocorreu em abril, após operações contra garimpos ilegais.
“O discurso adotado pelo Ministério do Meio Ambiente é como um sinal verde para o crime ambiental”, opina Nobre. “Por mais que a política ambiental do país tenha avançado muito, ela ganhou um ponto de vista conservador, no qual crescimento equivale a desenvolvimento econômico, colocando em xeque os recursos naturais”, completa o especialista da UFSC. “A natureza está hoje reduzida a ser fonte de recursos, não é exagero dizer que hoje o maior problema é político.”
Antes que seja tarde demais
Na tentativa de conter o desmatamento na Amazônia, o governo criou, em fevereiro, o Conselho Nacional da Amazônia Legal. Composto por militares e sem a participação de representantes do Ibama e da Fundação Nacional do Índio (Funai), o conselho não está atrelado ao Ministério do Meio Ambiente, e sim à vice-presidência da república, sob o comando do general da reserva Hamilton Mourão (PRTB). O objetivo é propor e acompanhar políticas públicas regionais, além de coordenar ações de prevenção, fiscalização e repressão a atos ilícitos.
Mas o conselho até o momento não teve o resultado esperado. Em entrevista à Agência Senado, a coordenadora do Observatório do Clima, Suely Vaz, criticou o modelo: as Forças Armadas, na sua visão, não substituem a atuação de agentes especializados na fiscalização e custam caro. “Manter até 2022, como o general Mourão está pretendendo, significa gastar R$ 60 milhões por mês só com os militares. Dois meses de ações, ou R$ 120 milhões, pagam o salário anual de 100 fiscais do Ibama. Esse é o déficit de fiscais para todo o Brasil”, disse. Procurados pela reportagem da GALILEU, tanto o Ministério do Meio Ambiente quanto a vice-presidência da república não retornaram as tentativas de contato.
Para o especialista da RECN, a maioria das pessoas envolvidas com a causa ambiental está pessimista. “Não achamos que exército vai ganhar essa guerra [contra o desmatamento]”, diz Carlos Nobre. Para Benini, da TNC, é preciso tomar medidas efetivas o quanto antes. “Nem tudo está perdido, mas é importante agir agora, não é mais possível tapar o sol com a peneira”, opina.
A maior urgência é frear o desmatamento ilegal — o que é menos complicado do que parece, segundo os especialistas. “A curto prazo, precisamos acabar com o crime [99% do desmatamento é ilegal]. Isso não é difícil, os satélites veem na hora que está acontecendo. Leva de um a dois meses para desmatar fazendas de mil, 2 mil hectares, é facílimo achar o lugar da ilegalidade”, explica Nobre.
Mas a população também deve se atentar para a questão. Uma ferramenta de controle é praticar o consumo responsável, exigindo o certificado de origem dos produtos que consomem — hoje, cerca de 76% da carne produzida nas pastagens que tomam conta da Amazônia é destinada ao consumo interno, segundo Nobre. “Exigir o certificado de origem é dar uma vantagem para quem pratica a pecuária legal”, opina.
Afinal, por mais que pareçam imperceptíveis, as ações individuais têm impactos que não se limitam a proximidades geográficas. Assim como nos biomas, tudo está interligado. Por isso, não é exagero dizer que nossa própria sobrevivência depende da deles.
Fonte: Galileu