Depois de uma longa pausa provocada pela pandemia do novo coronavírus, um grupo de ex-moradores do antigo distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, visita o que deve se tornar seu novo lar. A localidade foi a mais atingida pelos rejeitos da barragem de Fundão, das mineradoras Samarco, Vale e BHP, que rompeu em 5 de novembro de 2015 e iniciou a maior tragédia socioambiental da história do país.
É uma manhã chuvosa de sábado, às vésperas do quinto aniversário do desastre. A comissão de atingidos, representada por cinco membros nesta vistoria, é recebida por uma equipe da Fundação Renova, constituída pelas mineradoras para reparar os estragos provocados. A equipe da DW Brasil pediu com antecedência permissão, mas não foi autorizada a acompanhar os futuros moradores durante a visita às obras.
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Na portaria do reassentamento em construção, José do Nascimento de Jesus, da comissão, reclama da demora. “A Renova foi criada pra sanar todos os danos do rompimento da barragem e até hoje ela não sanou nada. Sabe o que é nada? Nada”, declara à reportagem.
Das 235 casas previstas, apenas duas estão prontas. Da portaria, é possível avistar as estruturas da futura escola e da unidade de saúde. “Isso é um absurdo. Você vê que o andamento é uma lentidão que não tem tamanho”, critica Jesus.
Aos 75 anos, seu Zezinho, como é conhecido, diz que muitos moradores do antigo distrito na idade dele não têm mais expectativa de morar no novo Bento Rodrigues. “O que aconteceu o mundo inteiro já sabe. É um crime escandaloso da Vale, Samarco e BHP. E hoje é essa burocracia que você tem. Isso aqui pra nós já era pra estar adiantado. Eles não estão pensando nos atingidos”, diz.
Enquanto isso, a Samarco se prepara para voltar às atividades em Mariana no fim do ano. A Vale, que detém parte da mineradora, informou uma semana antes de o desastre completar cinco anos o lucro líquido obtido pela empresa apenas no terceiro trimestre: R$ 15,615 bilhões.
Sem casa e sem perspectiva
O colapso da barragem de Fundão despejou 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos no ambiente. Da mineradora, a lama escorreu pelo rio Gualaxo do Norte, até chegar ao Carmo, desaguar no Doce e encontrar o mar, no Espírito Santo.
A onda de lama matou 19 pessoas e deixou mais de 300 famílias desabrigadas por onde passou, nos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu, em Mariana; distrito de Gesteira, em Barra Longa, e o centro dessa cidade. Desde então, essas pessoas moram em casas alugadas pela Fundação Renova e aguardam a reforma de suas moradias ou a construção de reassentamentos.
A lista dos que sofrem os impactos na bacia do rio Doce é longa e inclui muitos trabalhadores informais. Segundo a Renova, 321 mil pessoas receberam indenizações e auxílios financeiros até agosto.
Os números, no entanto, são vistos com desconfiança por promotores e defensores públicos que atuam no caso. “É um malabarismo estatístico”, afirma Rafael Portella, defensor no Espirito Santo, à DW Brasil.
“Essa projeção não condiz com a realidade. Quando estamos falando de indenização, do pescador, agricultor, comerciante, inúmeras categorias atingidas ao longo do rio Doce e litoral, estamos falando de 10 mil famílias, ou seja, 35 mil pessoas na média. É muito discrepante com esses 321 mil que a Renova apresenta”, alega.
O correto, segundo Portella, seria dividir o número de pessoas que receberam por tipo de dano (falta de água, moral, por exemplo), por município e estado. “Eu mesmo tenho dificuldade de ter acesso aos números do Espírito Santo”, complementa.
Ainda segundo o defensor, de 100 mil a 150 mil pessoas aguardam para entrar no cadastro da Renova como atingido, ou uma resposta a esse pedido.
“Nenhum grupo de atingidos foi integralmente indenizado. Meio ambiente também não foi recuperado. Nem sequer Bento Rodrigues foi reconstruído”, critica a procuradora federal Silmara Goulart, coordenadora da Força-Tarefa Rio Doce, que reúne instituições de Justiça que investigam o caso.
Poluição ambiental e riscos à saúde
Para Andressa Lanchotti, coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente em Minas Gerais, falta transparência nos indicadores apresentados. “A gente não tem, por mais que tenha sido cobrado da Renova, transparência para falar quantos por cento houve de recuperação ambiental real”, diz.
A Fundação Renova afirma que, cinco anos depois, a qualidade da água no rio Doce voltou aos patamares pré-rompimento e que pode ser consumida, desde que tratada. Um estudo de dezembro de 2019, contestado pelos atingidos e fontes ouvidas pela DW Brasil, afirma que “não há metais, decorrentes do rompimento da barragem de Fundão, que representem risco toxicológico à saúde humana”. O resultado desse estudo e sua metodologia foram questionados na Justiça.
A ausência de estudo confiável sobre os riscos à saúde humana e ecológica é vista como ponto crítico. “A gente precisa desse estudo pra ter uma decisão definitiva sobre manutenção ou não do rejeito. Várias áreas, principalmente propriedades rurais, foram recuperadas mantendo-se o rejeito no local”, comenta Lanchotti sobre o perigo ainda desconhecido.
No Espírito Santo, a Rede Rio Doce Mar, formada para monitorar os impactos da tragédia no ambiente aquático e coordenada pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), foi surpreendida com a suspensão abrupta do contrato pela Renova.
O caso foi levado à Justiça, e um juiz concedeu uma liminar obrigando a fundação a manter o contrato com a Rede por mais 120 dias. Questionada, a Fundação Renova disse que avalia a decisão.
O trabalho de monitoramento, que começou três anos depois do rompimento e conta com 350 pesquisadores, mostrou em seu primeiro relatório, em 2019, que os rejeitos da mineração afetam a biodiversidade.
“Existem várias evidências de presença de rejeito na foz do Doce, de recontaminação de metais (ferro, alumínio, manganês, cromo) na água e no sedimento. Quando há cheia do rio ou entrada de frentes frias, esses valores ficam bem elevados”, detalha Alex Bastos, coordenador da Rede Rio Doce Mar. “Isso afeta a toxicidade do pescado”, pontua.
No mar, a pluma de rejeitos atingiu regiões ao norte do rio, até o fim do litoral capixaba. No sul da Bahia, os resultados foram inconclusivos. “O que compensa o que está acontecendo é o monitoramento para o gestor público criar uma maneira de identificar momentos em que, por exemplo, tenha que proibir a pesca, ou em que a balneabilidade pode estar mais prejudicada”, diz sobre a importância do trabalho.
O problema, na visão de Lanchotti, está no fato de o comando da Renova ser das empresas poluidoras. “Elas acabam se escondendo por trás da fundação para não assumirem as responsabilidades e levar a negociação de forma que seria melhor pra elas”, analisa.
Ninguém responsabilizado
Até hoje, ninguém foi preso ou responsabilizado pelo rompimento de Fundão. Segundo Gustavo Henrique de Oliveira, procurador da República em Minas Gerais, cinco pessoas respondem pelos crimes ligados ao rompimento e crimes ambientais. No total, há sete pessoas físicas no processo – duas delas respondem por fatos laterais.
Um desse fatos é o lançamento clandestino de lama pela Vale no reservatório de Fundão, que rompeu. “Era desconhecido dos órgãos ambientais, e a quantidade de rejeitos lançada não era informada nos relatórios”, afirmou Oliveira. “Da lama existente em Fundão, 27% vieram da Vale, o que tornava a barragem propicia a se liquefazer”, complementou.
A investigação do Ministério Público Federal afirma que o desastre de Fundão vai além das equivocadas intervenções de engenharia na estrutura: foi também uma escolha econômica da empresa.
De 2011 a 2015, a queda de 77% do preço do minério de ferro no mercado internacional não levou à redução de lucros da Samarco, pelo contrário, afirma Oliveira. “Ela produziu intensamente neste período, gerando muito rejeito e, com isso, submeteu a barragem a um alteamento muito intenso, e o maciço ficou com uma pressão muito grande”, detalhou durante coletiva.
Outro fator teria sido a redução de custos constatada pela perícia. “Se em 2015 a Samarco fosse manter os valores de investimentos de 2012 em geotecnia, deveria investir aproximadamente R$ 30 milhões. Mas o orçamento no ano do rompimento era de R$ 18 milhões. Para o ano seguinte, a previsão era de R$ 15 milhões”, disse Oliveira, apontando a redução observada no orçamento na área geotécnica, ligada a obras e monitoramento de barragens.
“A tragédia continua”
No meio das ruínas do antigo Bento Rodrigues, que tem a entrada controlada por uma contratada da Renova, a reportagem se depara com as irmãs Maria das Graças Quintão Santos e Simaria Caetano Quintão preparando o almoço e aguardando a chegada de mais membros da família.
Elas passam os finais de semanas ali, ficam numa casa de uma outra irmã que resistiu à lama, mas foi saqueada após o desastre. Improvisaram um novo telhado e janelas, usam bateria de carro quando precisam de eletricidade e ergueram um fogão a lenha.
“A gente volta pra repor energia e também pra brigar com eles. É estressante ficar lá [no centro de Mariana], ir às reuniões [de negociação com a Renova]”, justifica Santos enquanto prepara o almoço. “E vamos levando a vida assim. Se não fosse isso, muitos de nós já teríamos pirado. Tem muita gente que já morreu de depressão, que não vai dar conta nem de esperar – se é que vai ter um novo povoado, que a gente nem acredita nisso”, adiciona.
O Ministério Público pediu na Justiça que a Fundação Renova se comprometesse com um prazo para encerrar as obras, e ficou estabelecido, depois de a entidade recorrer, que seria fevereiro de 2021. Numa coletiva de imprensa, a Renova disse que a pandemia atrasou o cronograma.
“Eles nunca se comprometeram com o prazo, continuam recorrendo, e o prazo que eles mesmos declararam, que era março de 2019, não cumpriram. Espontaneamente eles não fizeram nada”, analisa Guilherme Meneghin, promotor em Mariana.
Cinco anos depois da tragédia, Meneghin associa a Renova à “má fé, desonestidade, mentira”. “Uma das piores coisas que já aconteceram na história judicial brasileira e na reparação de direitos foi essa coisa chamada Fundação Renova”, opina o promotor.
Para seu Zezinho, a paciência também acabou. Ele vai ao local das obras do novo Bento todos os dias, mas não consegue retornar ao antigo distrito. As lembranças da correria para salvar a vida dos moradores naquele 5 de novembro de 2015 ainda são muito vivas.
“O que tem sido é uma tragédia que continua. Ela não morreu. Ela só vai morrer mesmo assim depois de uma adaptação nossa”, diz sobre a esperada mudança para o novo Bento.
Fonte: Deutsche Welle