Nove dias após o início do apagão que deixou a maior parte da população do Amapá sem energia elétrica, moradores da capital, Macapá, ainda relatam dificuldades para retomar a vida normal e reclamam de “descaso” e do “abandono” por parte dos governos, além de falta de visibilidade para o problema no restante do país.
“Meu sentimento é de abandono. A gente (amapaenses) sempre se sentiu muito excluído do resto do Brasil, do resto da população. Acho que agora só ficou mais claro”, diz o estudante André Luiz Fonseca, de 23 anos.
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A queda de energia, provocada por um incêndio em uma subestação da empresa Isolux, ocorreu na noite do dia 03 de novembro e atingiu 13 das 16 cidades do Estado. Cerca de 730 mil pessoas do Estado foram afetadas pelo corte, o que representa 85% da população local.
O Ministério de Minas e Energia afirmou hoje que aumentou o fornecimento de energia para 80% do Estado. Na sexta-feira, o ministro da pasta, Bento Albuquerque, disse que o completo restabelecimento é “complexo” e deve demorar pelo menos dez dias.
Já o governador do Amapá, Waldez Góes (PDT), culpou o governo federal. “Quem deve dar resposta ao desastre em termos de punição é a Agência Nacional de Energia Elétrica e o Operador Nacional do Setor Elétrico. Quem deve dar resposta da transmissão também é o governo federal, porque já que a iniciativa privada é contratada, o governo federal deve dar resposta”, disse há dois dias, em entrevista à Globonews.
Há 48 horas, a eletricidade tem chegado a parte da população apenas por algumas horas ao dia, e em caráter de rodízio.
Na casa de André Luiz Fonseca, por exemplo, a energia funciona duas vezes por dia, das 6h às 12h e das 18h à 0h. Na noite de terça, porém, a família só teve luz elétrica durante uma hora.
“Pra dormir, a casa fica toda aberta por causa do calor, mesmo com medo da violência. Nessa semana uma farmácia na esquina de casa foi saqueada”, conta.
Por causa do rodízio e dos problemas causados pelo apagão, muito amapaenses saíram às ruas para protestar, o que gerou episódios de violência e repressão policial. Um adolescente foi atingido no olho por uma bala de borracha disparada pela polícia.
Na semana passada, filas quilométricas se formaram nos poucos pontos onde havia caixas eletrônicos em funcionamento, pois máquinas de cartões de débito e crédito não estavam ativas. Além disso, houve aglomerações em postos de gasolina e locais com fornecimento de água potável.
‘Dormindo na universidade’
Na casa de Ana Rita Pinheiro Barcessat, 43, pesquisadora da Universidade Federal do Amapá, só há eletricidade por seis horas ao dia. O problema é a madrugada.
“Por causa do calor e dos mosquitos, a gente costuma dormir com ventilador ou ar-condicionado. Sem energia, fica praticamente impossível dormir. Sou privilegiada, moro num bairro central e em uma casa boa. Mas nos bairros mais pobres, as pessoas estão sofrendo muito”, diz.
Durante o dia, quando há energia, ela tem recebido amigos em casa, pessoas em busca de uma temperatura mais amena para descansar e de água para tomar banho.
Em Macapá, boa parte das casas tem poços artesianos para armazenar água. Porém, ela é retirada por meio de bombas, que precisam de eletricidade para funcionar.
“Alguns colegas, professores e pesquisadores, estão dormindo e tomando banho na universidade, onde há energia por causa do hospital universitário. Também levei um colchão para o meu laboratório, caso eu precise dormir aqui”, diz Ana Rita, que está grávida de cinco meses.
Ela conta ter cancelado as consultas odontológicas que dá em outro hospital público de Macapá. “Se eu ligar o compressor do consultório, a quimioterapia do hospital desliga. É uma situação desesperadora”, diz.
“O Amapá já teve dois presidentes do Senado (José Sarney e o atual senador Davi Alcolumbre). Mas isso nunca se reverteu em melhorias. Como esse tipo de coisa acontece?”, questiona.
#SOSAmapá
Já a administradora Daylane Barreto, 31, reclama que o rodízio tem favorecido bairros mais ricos. “Há comunidades de periferia onde a energia só chega por 2 hora ao dia, às vezes só por 20 minutos”, diz.
“A gente liga para os números de reclamação da empresa de energia e do governo, mas nada funciona. Não estamos só às escuras porque não tem eletricidade, mas também por falta de informação. É um descaso total”, afirma.
Ela e um grupo de amigos diariamente levam galões de água mineral e cestas básicas para moradores de bairros mais pobres de Macapá, como Macapaba e Novo Horizonte, onde a energia elétrica está bastante instável.
Barreto também critica a cobertura da imprensa sobre o caos enfrentado pelo povo amapaense, uma reclamação bastante citada nas redes sociais sob a hashtag #SOSAmapá.
“Se fosse no Sudeste, isso jamais estaria acontecendo. Teria plantão 24 horas na televisão, o dia inteiro falando do problema, influenciadores da internet cobrando uma solução. O que a gente tem visto são reportagens de um minuto, coisa rápida. Aí volta o apresentador, falando: ‘agora vamos falar mais sobre as eleições nos Estados Unidos'”, diz.
O estudante André Luiz Fonseca faz a mesma reclamação. “Aqui está todo mundo comentando sobre a resto do Brasil não dar a devida atenção pra gente. Fica todo mundo apreensivo, esperando os jornais na TV, pra ver se haverá atualização, e nada. Muitas vezes são matérias recicladas do jornal local”, afirma, por telefone.
“As pessoas esquecem que Amazônia não é só floresta. São pessoas, animais, cidades. É muito fácil colocar uma hashtag para salvar a Amazônia, pra gerar engajamento. Se o apagão fosse em São Paulo, estaria esquecido ou tendo uma comoção nacional?”, questiona.
Fonte: BBC