Desde fevereiro de 2020, quando os primeiros focos de incêndio já ameaçavam o Pantanal, Neiva Guedes, uma das maiores referências mundiais no estudo de psitacídeos – família que engloba papagaios, periquitos e araras –, não dormia tranquila. O fogo se intensificou entre julho e setembro, queimando quase 30% da área do bioma.
“Eu sinto as chamas na minha própria pele”, me contou a bióloga em videochamada ainda em setembro.
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Um mês depois das chamas arrefecerem, conversei novamente com Neiva, que acaba de publicar o relatório da última expedição à fazenda São Francisco do Perigara, em Mato Grosso, um dos locais mais importantes para a conservação das araras-azuis, principal foco no Instituto Arara Azul, fundado há mais de 30 anos pela bióloga.
A fazenda tem a maior concentração de araras-azuis do mundo e ardeu com intensidade entre julho e final de agosto – mais de 90% de sua área foi afetada. Neiva Guedes mora em Campo Grande (MS) e faz de duas a três visitas por ano à fazenda, distante cinco horas de carro, em estrada de terra, a partir de Cuiabá.
Desta vez, na viagem que aconteceu entre 23 a 30 de setembro, ela e os pesquisadores que a acompanharam estavam mais ansiosos do que o normal, pois queriam monitorar o impacto do fogo nos animais, especialmente no dormitório, onde centenas de aves se reúnem para descansar.
“Fiquei paralisada por três dias, pensando que trinta anos de trabalho tinham acabado”, disse Neiva. Mas indícios alentadores começaram a aparecer a partir do terceiro dia de viagem.
“Fomos nos lugares tradicionais de encontrar as araras, e nos dois primeiros dias encontramos bandos muito pequenos. Ficamos preocupados”, disse a bióloga. “No dormitório, assim que chegamos, começamos a contagem. Onde antes tinham 600 aves, vimos só 68 no primeiro dia, mas, no terceiro dia, encontramos um grupão numa baia, mais ou menos umas 532 araras. Êxtase total.”
A equipe comemorou o indício positivo. No total, 736 indivíduos foram contados na fazenda, apenas 14 a menos que no mesmo período de 2019 – sinal de que elas estão na área da fazenda Perigara, mas não exatamente no dormitório, que foi afetado parcialmente pelo fogo. Também não foram encontradas araras adultas mortas.
Além disso, pelo menos 136 aves de outras espécies foram avistadas, muitas delas indicadoras de saúde ambiental.
A contagem é feita pelo ornitólogo Pedro Scherer Neto, PSN Foundation, que participou da expedição e desenvolveu a técnica de contagem das araras na fazenda há mais de quinze anos.
Também participaram da viagem os biólogos Luciana Pinheiro Ferreira, Fernanda Mussi Fontoura, do Instituto Arara Azul, Bruno Henrique Grolli, da PSN, e Gonçalo Rodrigues da Silva, o Pixico, assistente de pesquisa. A expedição contou com recursos da Fundação Toyota do Brasil, Uniderp, WWF-Brasil e doações por vaquinha virtual.
A natureza surpreende
As araras-azuis terão importância destacada na recuperação do Pantanal. Além de engenheiras da natureza – por construir ninhos que são utilizados por outras espécies –, elas também são excelentes dispersoras de sementes, podendo espalhá-las por até um quilômetro de distância da árvore mãe.
Outro fio de esperança vem de novos estudos conduzidos no Refúgio Ecológico Caiman, um importante centro de reprodução monitorado de perto pelo Instituto Arara Azul. O refúgio não foi atingido este ano, mas sofreu com as queimadas de 2019, quando teve 69% de sua área destruída e metade dos 110 ninhos de araras-azuis atingidos.
“O que vimos no ano passado na Caiman, e a gente espera que possa se repetir na fazenda Perigara também, é que as araras são muito resilientes. Elas ficam e não abandonam. Tivemos muitos casais fazendo nova postura [de ovos]”, diz Neiva. “Em média, são dois a três casais de araras por ano, e no ano passado tivemos quatorze novas posturas na Caiman.” Após a perda de filhotes ou ovos, as araras chocam novamente, no mesmo período reprodutivo. O resultado surpreendeu a equipe.
No Perigara, o que pode acontecer com as aves neste momento pós fogo são só hipóteses e estão relacionadas principalmente ao comportamento e a disponibilidade de alimentos. Um bom sinal são cachos novos e verdes em alguns acuris, uma palmeira que produz uma das principais comidas das araras.
Mas a maioria dos acuris e bocaiuvas foram queimados e estão escassos. Funcionários da fazenda dispõe alimentos para os animais enquanto esperam a recomposição da paisagem. O mesmo acontece no vizinho Sesc Pantanal, uma reserva privada de mais 100 mil hectares, que tem disponibilizado três toneladas de frutas e verduras para a fauna por semana.
Esses fatores podem ajudar a manter as araras por lá. No entanto, como ressalva Neiva Guedes, são só hipóteses.
“Pode ser que elas continuem lá porque não têm para onde fugir. Uma arara pode voar 60 km, mas vai ser difícil encontrar comida”, diz Neiva. “É até possível que ela mude alguns hábitos alimentares, que coma alguns frutos que não comia. Pode ser que faça migrações mais curtas – realmente… a gente não sabe o que vai acontecer.”
Uma outra expedição está programada para as próximas semanas e deve ajudar a entender melhor o futuro das araras-azuis na fazenda Perigara.
Novas situações, novas linhas de pesquisa
O estudo no Refúgio Caiman trouxe boas notícias sobre a resiliência das araras, mas pesquisadores também observaram situações preocupantes que podem dar um vislumbre de como a fauna se comportará depois do incêndio deste ano no resto do Pantanal.
Neiva relatou araras-azuis sendo predadas dentro do ninho por irara e jaguatirica e filhotes de arara-azul foram encontrados no chão sem sinal de feridas ou ataques. O mais chocante, no entanto, foi ver uma arara-azul matando indivíduo da mesma espécie em briga por ninho – comportamento absolutamente inédito. Como ela tinha previsto no ano passado, o desequilíbrio chega depois que o fogo passa.
Para Neiva, ciência viva é assim: “É como se estivéssemos começando de novo. Trinta anos de estudos e a gente ainda não tem respostas para muitas coisas. Cada voo agora é uma vitória.”
No meio da entrevista, ela lê algumas mensagens de antigos parceiros de trabalho no Pantanal, pessoas aguerridas que estiveram meses trabalhando incessantemente para apagar as chamas e resgatar animais e pessoas. Eram relatos emocionados contando da chuva forte que caía na Serra do Amolar, local onde ainda persistiam alguns focos de incêndio.
Neiva Guedes ressaltou o fator humano como uma das formas que encontrou para seguir o caminho da conservação. De doações, de interações nas redes sociais, de anônimos e conhecidos. Um sentimento de união.
Uma dessas figuras, certamente não anônima, é o cantor Luan Santana.
Nascido em Mato Grosso do Sul, Luan cresceu junto aos animais do Pantanal e diz ter sofrido vendo o bioma onde passou a infância queimar como queimou. “Deve ser um sentimento coletivo o que sinto. E ver o nosso Pantanal assim deixa o peito em chama de desespero”, disse ele em entrevista por e-mail.
O cantor tem uma relação com o trabalho de Neiva Guedes desde 2014, quando participou da campanha Adote um Ninho. Hoje, é embaixador do instituto e vai leiloar o figurino de seu último DVD para destinar o valor ao Arara Azul.
Além disso, o cantor se apresenta em uma live em 22 de novembro, às 17h, com transmissão do National Geographic Brasil ao vivo, direto do rio Paraguai, em Mato Grosso do Sul. “O Pantanal é o coração do nosso país. Todos nós, independentes de qualquer situação, precisamos nos voltar para esta causa e salvar nosso bioma.” O objetivo é arrecadar fundos para restaurar e proteger o Pantanal – o dinheiro será revertido à ONG SOS Pantanal.
Neiva Guedes encerrou nossa última conversa dizendo que se sente aliviada, menos triste e mais esperançosa do que no período do fogo. Parece que, mais uma vez, a energia para trabalhar na conservação das araras é realimentada pelo exemplo que as aves têm lhe mostrado neste período tão difícil: resiliência e permanência.
Fonte: National Geographic Brasil